DOROTÉIA
(FARSA IRRESPONSÁVEL EM TRÊS ATOS)
NELSON RODRIGUES
(1949)
TERCEIRO ATO
(ABRE O PANO. D. FLÁVIA E DOROTÉIA ESTÃO AGACHADAS NUMA DAS EXTREMIDADES DO PALCO. OLHAM, APAVORADAS, PARA O JARRO, QUE ACABA DE APARECER. DESLOCAM-SE, EM PÂNICO, DE UM LUGAR PARA O OUTRO. MAS NEM ASSIM SE LIBERTAM DA VISÃO.)
D. FLÁVIA (com mímica de choro)
- O jarro!
DOROTÉIA (justificando-se)
- Deve ser algum engano... (para D. Flávia) eu agora sou direita!... Com certeza ele não sabe ainda... Então é preciso avisar...
D. FLÁVIA (rosto a rosto com Dorotéia) (baixo)
Acho que ele veio porque (vacila, olhando para Dorotéia) ... resta alguma coisa em ti... (baixa a voz) Resta em tia alguma coisa de tua beleza... Algo que ainda não foi condenado...
DOROTÉIA (em pânico)
- Não...
(D. FLÁVIA APANHA, NUMA DAS MÃOS, UMA TRANÇA DE DOROTÉIA)
D. FLÁVIA
- Quem sabe se o jarro veio, continua vendo, por causa de teus cabelos?
DOROTÉIA (espantada)
- Meus cabelos... aperta a fronte entre as mãos) São tão calados que a gente até esquece que eles existem...
D. FLÁVIA
- Se eu fosse homem ,gostaria deles...
DOROTÉIA (meio assustada)
- Acredito...
D. FLÁVIA (com brusco ódio)
- Por isso mesmo, devem ser arrancados de ti!... (lenta e grave) Teus cabelos devem morrer, Dorotéia...
DOROTÉIA (apavorada)
- Eu sei que não fica bem para uma senhora honesta ter cabelos assim... Não convém.. Mas....
D. FLÁVIA (agressiva)
- Ou tens medo?
DOROTÉIA
- E se nós os perdoássemos?
D. FLÁVIA (feroz)
- Não ... o jarro não te deixaria em paz nunca... O jarro não perdoaria...
DOROTÉIA
- Sei que não... ou imagino... e desde que me regenerei que não me penteio... me esqueci de minha cabeleira.. nem ligo.. é como se não existisse... (com angústia) Mas vê só o silêncio dos meus cabelos... presta atenção... Nenhum rumor, como se já estivessem mortos...
D. FLÁVIA (num sopro)
- Tudo em ti precisa ser castigado!
DOROTÉIA
- Tudo?
D. FLÁVIA
- Sim.
DOROTÉIA (excitada)
- Sei... e é justo... muito justo, até... nem pense que estou reclamando. (categórica) Deus me livre! Tudo deve pagar – cabelos, joelhos, olhos...
D. FLÁVIA (espantada)
- Olhos... Eu falei neles, sim... mas só de passagem... sem ódio... sem odiá-los como eles merecem... (doce, tomando o rosto de Dorotéia entre as mãos) Deixa eu olhar bem no fundo dos teus olhos... assim.
DOROTÉIA
- Vê um e depois outro...
D. FLÁVIA
- Parece incrível! Eu ia-me esquecendo de odiá-los... Deixa eu ver se eles conservam o mesmo brilho... Ou se já é uma luz ensangüentada...
DOROTÉIA (apavorada)
- É cedo, ainda...
D. FLÁVIA (violenta)
- Mas as chagas já deviam ter vindo...
DOROTÉIA (com súbito desespero)
- Não!
D. FLÁVIA
- Já, sim! Numa volta de sol nascem as estrelas... Uma por uma... (exasperada) E eu queria que tuas chagas nascessem já...
DOROTÉIA (chorando)
- Eu também...
D. FLÁVIA (suplicante
- E por que não nascem, se eu as espero? Há quanto tempo estamos aqui?... (de novo feroz) Por que demoram, se está tudo preparado?
DOROTÉIA (olhando os próprios braços)
- Tudo!
D. FLÁVIA
- Não é mesmo? ... A vista, o seio, o lábio, o ombro... Elas poderão morder em paz... cravar na tua carne a fome silenciosa... (num grito) Mas tardam!
DOROTÉIA
- A culpa não é minha!
D. FLÁVIA (desesperada)
- E a náusea de minha filha que também não veio?
DOROTÉIA
- Que coisa!...
D. FLÁVIA
- Mas deve estar chegando... Agora falta pouco, tem que faltar pouco...
DOROTÉIA
- Tomara!
D. FLÁVIA (um súbito grito)
- Das Dores!
(DAS DORES ESTÁ MERGULHADA NO SEU IDÍLIO COM AS BOTINAS.)
DAS DORES (em sonho)
- Não ouvi teu chamado, mãe... Grita outra vez...
D. FLÁVIA (num grito maior)
- Minha filha!
DAS DORES (sempre doce)
- Ainda não ouvi... Talvez ouça o grito seguinte...
D. FLÁVIA
- Já veio a náusea?
DAS DORES
- Ainda não.
D. FLÁVIA (com voz de choro)
- Não veio...
DOROTÉIA
- Virá?...
D. FLÁVIA (suplicante)
- Tens certeza, minha filha?... Tens certeza que não veio?
DAS DORES (sonhadora)
- Certeza absoluta.
D. FLÁVIA (num lamento, para Dorotéia)
- Sempre veio... sempre...
DOROTÉIA
- Vamos esperar.
D. FLÁVIA (aproximando-se da filha, sob a proteção do leque)
- Pede, minha filha... Implora esta náusea... Que venha depressa... porque, se não vier o teu fim, o nosso fim, a morte de tudo!
DAS DORES (lírica)
- Não sei se te ouço... Não sei se escuto tua voz...
D. FLÁVIA
- Ouve, minha filha; grava em ti estas palavras... Nossas cômodas, nossos gavetões... estão cheios de vestes conjugais... são roupas de falecidas parentas... (num crescendo oratório) De parentas que sofreram a náusea em plena noite de núpcias...
DAS DORES
- Não importa!
D. FLÁVIA
- Das Dores, invoca os espíritos da família... Chama os protetores.. implora!
DAS DORES
- Não!
D. FLÁVIA
- Porque, se não pedires, tudo te amaldiçoará nesta casa!... As rendas antigas, os velhos bordados, os armários, os espelhos... (profética) Sim, tudo gritará contra ti...
DOROTÉIA (feroz)
- Tudo!
DAS DORES
- Não quero.. Para chamar os protetores da casa eu teria que me ajoelhar e eu estou deitada...
D. FLÁVIA (num grito)
- Ajoelha!
DAS DORES
- Não quero ficar de joelhos...
DOROTÉIA
- É medo... Medo da indisposição...
DAS DORES (com certo medo)
- Nem escuto...
DOROTÉIA
- Arranca filha... Arrasta tua filha!...
D. FLÁVIA
- Não posso... Só depois da náusea!...
DOROTÉIA (baixo)
- Ou então...
D. FLÁVIA
- O quê?
(AS DUAS ESTÃO JUNTAS, ROSTO A ROSTO. ESTRANHO SEGREDO VAI UNI-LAS.)
DOROTÉIA
- Nós duas...
D. FLÁVIA (baixo também)
- Eu e você?
DOROTÉIA
- Adivinhou?
D. FLÁVIA (virando o rosto)
- Não adivinhei, nem quero... (muda de tom) Adivinhei sim... leio nos seus olhos... Sei em que você está pensando neste momento...
DOROTÉIA (excitada e ainda em surdina)
- E não seria crime...
D. FLÁVIA (ofegante)
- Claro que não... Seria até – bonito!
DOROTÉIA (com certa ferocidade)
- Então vamos!
D. FLÁVIA
- Mas... e quando a mãe viesse buscar o filho? Diríamos o quê?
DOROTÉIA
- Diríamos que tinha havido um (triunfante) acidente... Ou então (muda de tom) um suicídio... por desgostos íntimos”...
D. FLÁVIA
- Não! Não!
DOROTÉIA
- Ninguém saberia, aposto... Ninguém...s ria apenas um crime a mais... E o que é um crime?... Coisa comum... Garanto que, neste momento, alguém há de estar matando alguém, em algum lugar... (tentadora) E se você tem medo, eu farei tudo... (baixo) E você só ajuda a carregar...
D. FLÁVIA
- Não!
DOROTÉIA
- Covarde!
D. FLÁVIA
- Depois... Assim que Das Dores receber a náusea... e não antes...
(D. FLÁVIA ESTÁ AGORA DE JOELHOS DIANTE DA FILHA, MAS SEMPRE DEFENDENDO O PRÓPRIO ROSTO COM O LEQUE.)
D. FLÁVIA
- Nenhum sinal?
DAS DORES
- Nenhum.
D. FLÁVIA (ergue-se como uma possessa)
- Por que, Senhor, por quê? (num desespero maior) Misericórdia para mim, misericórdia... nasci com esta face de espanto e delírio... Nasci com este rosto que me acompanha como um destino!... E com esta dor de estrangulado gemendo... O sono cingiu minha fronte... E eu estou em vigília... Minha fronte vive em claro, minha fronte jamais adormeceu... Por que, no sonho, eu me queimaria em adoração... (desesperada) Mas eu beijo a flor de minha vigília... Senhor, nem os meus cabelos sonham! E por que um destino nega a náusea da minha filha?... Os meus dez dedos magros! Ó protetores desta casa... desta casa, onde todos os quartos morreram e só as salas vivem!
DAS DORES
- Mãe...
D. FLÁVIA (num apelo)
- Das Dores, minha filha... não sentes como se estivesse formando em ti, nas tuas profundezas, uma espécie de golfada?
DAS DORES
- Eu tive um aviso, mãe... e sei que não vou ter a náusea... nem quero...
DOROTÉIA (num sopro)
- Doida!
D. FLÁVIA
- Não blasfemes!
DAS DORES (com absoluto fervor)
- Não quero, agora não quero... Meu noivo contou coisas que eu não conhecia... Contou uma história muito bonita.. Disse que tinha dores de ouvido... Dessas que atravessaram de uma fronte à outra fronte... E conheceu uma menina que morreu assim... E gritando... gritando com essa dor... Tanto que foi enterrada com o seu martírio... (veemente) Meu noivo diz que a menina morreu porque não pingaram o remédio... Eu acredito, mãe! Preciso ficar junto de meu noivo, sempre!
D. FLÁVIA
- Queres perder a tua alma?
DAS DORES
- Talvez..
D. FLÁVIA
- E se eu te chamar de maldita?
DAS DORES
- Chama!
D. FLÁVIA
- Maldita!
DAS DORES
- Sou maldita.. Mil vezes maldita... Mas olha: (ergue as duas botinas na mãos)
D. FLÁVIA
- Não!
(D. FLÁVIA DEFENDE COM O LEQUE O AMEAÇADO PUDOR.)
DAS DORES
- Minhas mãos pousadas... Quietas... Queria que minhas mãos morressem assim... Podes me amaldiçoar...
D. FLÁVIA
- Já te amaldiçoei!
DAS DORES
- ... quantas vezes quiseres... Só não podes tirar o amor que já é meu...
D. FLÁVIA (virando-se, lenta)
- Posso!
DAS DORES (fremente)
- Nunca!
D. FLÁVIA
- Quem sabe... (para Dorotéia) Ela diz que eu não posso, mas... (rápida, na direção da filha, embora com o leque na frente) E se eu disser que vou matar teu amor? Não acreditarias?
DAS DORES (feroz)
- Não!
D. FLÁVIA
- E se eu disser que deixarás de amar? E de odiar... Se eu disse que de mim, só de mim, dependem a vida e a morte dos teus sentimentos?...
DAS DORES (erguendo-se)
- Mentira!
D. FLÁVIA
- Sim, tenho em mim este poder... (ri, cruel) Não acreditas, sei que “ainda” não acreditas... Nesse momento, tu estás-me olhando... Se eu disser que perderás todos os olhares teus?...
(DAS DORES ESTENDE AS MÃOS, NUM GESTO DE DEFESA)
D. FLÁVIA
- E que este gesto de mão tu não poderás repetir... (lenta) porque perderás o gesto e a mão... as duas mãos...
(DAS DORES, COMO A DEFENDER-SE DE UMA AMEAÇA ABOMINÁVEL, APANHA AS DUAS BOTINAS E PÕE DEBAIXO DO BRAÇO.)
DAS DORES
- Não acredito...
D. FLÁVIA
- É o que vai acontecer contigo... Por minha vontade...Porque eu quero... (bruscamente doce) Há uma coisa que ignoras... Uma coisa que eu nunca te disse e que o resto da família escondeu de ti.. Tenho uma testemunha – aquela mulher, outrora de vida airada e hoje de bom conceito... (grita) Dorotéia!
DOROTÉIA
- Eu.
D. FLÁVIA
- Serás testemunha...
DOROTÉIA
- De que se trata?
D. FLÁVIA
- ... Testemunha de minhas palavras, perante minha filha!
DOROTÉIA
- Se estiver no meu alcance!
D. FLÁVIA
- Maria das Dores, tu nasceste de cinco meses e morta...
DAS DORES
- Morta!
D. FLÁVIA
- Muito morta! Não te dissemos nada, com pena...
DOROTÉIA (condoída)
- Para não dar decepção...
D. FLÁVIA
- Tu não existes!
DAS DORES (atônita)
- Não existo?
D. FLÁVIA
- Tu não podias ser enterrada antes da náusea, sem teres tido a náusea... A família esperava que, na noite de núpcias, tu a sentisses... Então, voltarias para o teu nada, satisfeita, feliz... Dirias “que bom eu ter nascido morta! Que bom ter nascido de cinco meses.. Antes assim!”” Mas não aconteceu nada na tua noite de núpcias... O conto do teu noivo – essa história da dor de ouvidos – te enfeitiçou. (para Dorotéia) Minto?
DOROTÉIA (para Das Dores)
Sua mãe disse a pura verdade!
DAS DORES (espantada)
- Nasci de cinco meses... (desesperada) Então esse gesto... (Esboça, no ar, um movimento com a mão) Não tenho mão para fazê-lo?
D. FLÁVIA (feroz)
- Foi bom que tivesses nascido morta!... (lenta) Porque serias uma perdida... E não como nós... Não aceitasse em tia a náusea... em vez de enjôo, a volúpia...a adoração... Jamais serias como eu, que jamais amei ninguém, nem a mim mesma! (gritando) Por que continuas nesta casa, se és morta?
DAS DORES
- Vou partir!
D. FLÁVIA
- E já!
DAS DORES
- Mas antes quero que me ouças...
D. FLÁVIA (cruel)
- Fala, mas depressa... Diz tuas últimas palavras... E não te aproximes.. Quero-te longe de imi... Volta para o teu nada...
DAS DORES
- Para o meu nada, não... Voltarei a ti!
D. FLÁVIA (com medo)
- Não!
DAS DORES
- Nasci morta... Não existo, mas (incisiva) quero viver em ti...
D. FLÁVIA (apavorada)
- Nunca!
DAS DORES (histérica)
- Em ti... serei, de novo, tua carne e teu sangue.. e nascerei de teu ventre...
D. FLÁVIA (recuando)
- Não quero!
DAS DORES (para Dorotéia)
- E tu, Dorotéia...
DOROTÉIA (numa mesura)
- Às ordens...
DAS DORES
- Outrora de vida airada e hoje de bom conceito... Foste testemunha de minha mãe... agora serás de mim contra minha mãe... Escuta: serei, de novo, filha de minha mãe! E nascerei viva... e crescerei... e me farei mulher...
DOROTÉIA
- Acho difícil...
DAS DORES (feroz)
- Olha! (num gesto brusco e selvagem tira a própria máscara e coloca-a no peito de D. Flávia)
D. FLÁVIA
- Não! Não!
(A PRÓPRIA D. FLÁVIA, COM UMA DAS MÃOS, MANTÉM A MÁSCARA DE ENCONTRO AO PEITO. ESTE É O SÍMBOLO PLÁSTICO DA NOVA MATERNIDADE)
D. FLÁVIA (gritando histericamente)
- Não te quero na minha carne! Não te quero no meu sangue!
(D. FLÁVIA DIRIGE SUAS PALAVRAS À MÁSCARA)
D. FLÁVIA
- Eu seria mãe até de um lázaro, menos de ti!
(SEGURANDO A MÁSCARA DE ENCONTRO AO PEITO D. FLÁVIA SE TORCE E RETORCE NO SEU MEDO E NO SEU ÓDIO.)
DOROTÉIA
- É tua sina, mulher!
D. FLÁVIA
- Não posso!
DOROTÉIA (baixo)
- E nem ao menos poderás esconder tua nova maternidade... um vestido largo não bastaria... Todos vão saber que serás mãe... (lenta, espantada) E que vais dar à luz uma filha já falecida...
D. FLÁVIA (num soluço maior)
- Salva-me! Salva-me!
DOROTÉIA
- Eu?
D. FLÁVIA (histérica)
- Sim... Só tu, entre todas as mulheres, me poderás salvar!
DOROTÉIA
- Conforme...
D. FLÁVIA (agarrando-se a Dorotéia)
- Pensamos, hoje tantas vezes, em crime... primeiro houve – não foi? – a idéia de te esganar... Depois minhas primas pediram que eu as livrasse do pecado e assim fiz...
DOROTÉIA
- Ótimo!
D. FLÁVIA
- Estão, ali, com a morte que eu lhes dei... Por fim tu quiseste (indica as botinas) esganar o noivo...
DOROTÉIA
- Foi...
D. FLÁVIA (baixando a voz, espantada)
- Mas a idéia do crime está voltando sempre . . . Agora mesmo, neste
momento, eu a tenho em mim, gravada em mim... (convulsiva) Mas desta vez é para me salvar...
DOROTÉIA
- Ainda não percebi!
D. FLÁVIA (rosto a rosto com Dorotéia)
- Tu me salvarias se destruísses minha filha!
DOROTÉIA
- Eu, logo eu?... mas, por que se eu sou apenas uma prima, quase uma estranha?... Não eu. (gritando) mas você... (segredando com a outra) Você que é mãe da menina... Você, que vai dar à luz duas vezes, pode soprar essa luz, cegar essa luz... Ninguém melhor que uma mãe, com mais autoridade, para sufocar aquilo que ela mesma gerou... A mãe pode pegar uma filha e lhe abrir o rosto ao meio, sendo que um perfil para cada lado...
D. FLÁVIA (em desespero)
- Não posso... Queria, mas não posso... (persuasiva) Escuta: ela não aceitaria uma morte que viesse de mim, que eu lhe desse. Mas você pode. Das Dores não teria nada contra você... E se deixaria estrangular pelas tuas mãos...
(DIZENDO ISSO, D. FLÁVIA OFERECE A MÁSCARA A DOROTÉIA QUE RECUA, COM MEDO.
D. FLÁVIA
- Toma!
DOROTÉIA
- Esganar a menina?... Mas ela não deve morrer para sempre... e por que castigar a sua inocência?...
D. FLÁVIA
- Não é inocente, juro! Pecou contra a náusea!
DOROTÉIA (feroz)
- Outra vida deve morrer!
(D. FLÁVIA COLOCA, NOVAMENTE, A MÁSCARA DE ENCONTRO AO PEITO.)
D. FLÁVIA (num sussurro)
- Quem?
(DOROTÉIA APONTA PARA O PAR DE BOTINAS. D. FLÁVIA SOBE NUMA CADEIRA PARA OLHAR POR CIMA DO LEQUE.)
D. FLÁVIA (virando o rosto)
- Não!
DOROTÉIA
- Viras o rosto!
D. FLÁVIA (dolorosa)
- Olhei por cima do leque... e não devia... Maura olhou e morreu... (em desespero) Desde que elas chegaram eu desejaria ser cega... Erro meu ter estes olhos...
DOROTÉIA (feroz)
- Porém eu não tenho medo!
D. FLÁVIA
- Se, ao menos, não estivessem desabotoadas...
DOROTÉIA
- Por isso devem expiar... Numa casa, onde tem senhoras.. Maura e Carmelita mortas, nós duas vivas... Não podemos viver sabendo que, perto de nós, estão (lenta) as botinas desabotoadas... Vamos?
D. FLÁVIA
- E eu seria criminosa se a vítima estivesse com todos os botões em suas casa.. Mas assim não... Não posso... não devo.
(OLHA OUTRA VEZ POR CIMA DO LEQUE.)
DOROTÉIA
- Tu, uma senhora de bom proceder e farta virtude, com medo!... E eu não ... Eu sem medo algum... Posso me aproximar...
(APROXIMA-SE DAS BOTINAS)
DOROTÉIA
- Dar os meus carinhos, até...
D. FLÁVIA (num grito, cobrindo-se com leque)
- Não!
DOROTÉIA
- Posso olhá-las, não um minuto ou dois, mas dia após dia... E não sinto anda... É como se estivessem mortas... Vem, por vir!
D. FLÁVIA
- Nunca!
DOROTÉIA
- Te dou a minha palavra de que não acontecerá nada...
D. FLÁVIA
- Não é por medo, que medo não tenho, graças a Deus... se disse que tinha, me enganei... (furiosa) Pensas que sou como tu, uma perdida?
DOROTÉIA (fremente)
- Já fui!... Mas agora me corrigi... Agora que tenho em mim as chagas... E as espero... (maravilhada) Elas vão reinar em mim... Vão nascer num seio, numa vista... vão me devorar em silêncio... Menos os cabelos... ou os cabelos também? Talvez acabe como o Sr. Nepomuceno que vive sozinho, acompanhado apenas pelos próprios gritos...
D. FLÁVIA (num lamento)
- Só nós duas nesta casa... Nós duas e um par de botinas...
DOROTÉIA
- Não queres olhar?
D. FLÁVIA
- Não!
(DOROTÉIA ERGUE AS BOTINAS NA ALTURA DO PRÓPRIO ROSTO.)
DOROTÉIA
- Posso fazer isso... Já não sou mulher.. Tudo que era mulher morreu em mim.. Aproximo meu rosto...
(OS CALCANHARES DAS BOTINAS ESTÃO TOCANDO O ROSTO DE DOROTÉIA)
DOROTÉIA
- ... da tentação... e estou fria... Eu própria sinto um frio de morte... meus cabelos estão gelados...
D. FLÁVIA
- Elas te queimam...
DOROTÉIA (violenta)
- Vamos matá-las agora?
D. FLÁVIA
- Juro que nada me fará olhar...
(AO MESMO TEMPO EM QUE DIZ ISSO D. FLÁVIA VIRA-SE RÁPIDA E OLHA.)
D. FLÁVIA
- Não quero vê... Não darei um passo nessa direção...
DOROTÉIA (num grito)
Vem!
(D. FLÁVIA FAZ O CONTRÁRIO DO QUE DIZ)
D. FLÁVIA (gritando)
- Seja eu a última das mulheres, se me aproximar, se...
(CONTINUA CAMINHANDO)
DOROTÉIA (arquejante)
- Mais um passo!
D. FLÁVIA
-... E que minha virtude se transforme em vergonha e minha febre em sonho se eu avançar ainda... (avança mais)
DOROTÉIA (num sopro)
- Perdeste o medo...
D. FLÁVIA (atônita)
- Quem? Eu?
(D. FLÁVIA PARECE CAIR EM SI. VIRA-SE BRUSCAMENTE. ESTÁ, AGORA, DE FRENTE PARA A PLATÉIA.)
D. FLÁVIA (com medo)
- Minha filha está dentro de mim...
(ERGUE O LEQUE, COBRINDO O ROSTO. AFASTA-SE DAS BOTINAS. COLOCA-SE NA OUTRA EXTREMIDADE DO PALCO, AGACHADA)
D. FLÁVIA
- Minha filha é, de novo, minha carne e minha alma... Quer que eu tenha pensamentos... e que tudo em mim sonhe...
(DE COSTAS PARA A PLATÉIA, D. FLÁVIA ERGUE, NAS DUAS MÃOS, A MÁSCARA DA FILHA. TRAVA-SE, ENTÃO, ESTRANHO DIÁLOGO.)
D. FLÁVIA
- A mim não me enganas... Imagino qual seja o teu delírio... Desgraçar minha virtude... queimar meu pudor...a gora me arrastas... me puxas...
(PARECE REALMENTE QUE ALGUÉM ESTÁ ARRASTANDO D. FLÁVIA PARA AS BOTINAS. CONTINUA O DIÁLOGO COM A MÁSCARA.)
D. FLÁVIA (num grito)
- ... e um abismo grita por mim... Mas não vou... não irei...
(NA MEDIDA EM QUE SE APROXIMA AS BOTINAS SE AFASTAM COMO SE REFUGASSEM A VIÚVA.)
DOROTÉIA
- Fogem de ti...
D. FLÁVIA
- Fogem... sinto que fogem...
DOROTÉIA
- Têm horror de ti... (recomeça o diálogo de D. Flávia com a máscara)
D. FLÁVIA
- Estás me dando visões que nunca tive... E este gesto não é meu... Nem esta alegria... Tenho ódio de mim. (patética) Por que me fazes rir? (ri sinistramente) Por que me dás vontade de cantar?
(D. FLÁVIA COMEÇA A CANTAR, MAS É UM MISTO DE CANTO E CHORO.)
DOROTÉIA (gritando)
- Você está parecida com alguém... alguém que eu conheço... Quem? Já sei! Agora me lembro (cruel) com a minha senhoria, a dona do meu quarto... igualzinha... quando bebia ficava assim... cantava assim... muito liberal, dada ... Ri, anda, ri!
D. FLÁVIA
- Não!
(MAS CONTRA A PRÓPRIA VONTADE OBEDECE, NUMA MISTURA REPULSIVA DE RISO E SOLUÇO. SEU RISO VOLUNTÁRIO SE FUNDE NUM INVOLUNTÁRIO SOLUÇO.)
DOROTÉIA
- Parece uma velha bêbeda!
(D. FLÁVIA CORTA BRUSCAMENTE O PRÓPRIO SOLUÇO. ESTAVA COM A MÁSCARA ERGUIDA NAS DUAS MÃOS. COLOCA-A NA ALTURA DO PEITO.)
D. FLÁVIA
- Voltei a meu normal... Me sinto eu mesma... Minha filha agora está quieta, não está?
DOROTÉIA
- Parece.
D. FLÁVIA (para a máscara)
- Estou descansando um pouco do teu ódio... (vira-se na direção das botinas, já com a máscara na altura do peito) E se elas viessem ao meu encontro...
DOROTÉIA (num grito)
- Vem sim! Vem em nossa direção!
(O MESMO FANTASMA QUE TROUXERA O JARRO ESTÁ EMPURRANDO AS BOTINAS, PELOS CALCANHARES. AS DUAS MULHERES SE COLOCAM NUMA DAS EXTREMIDADES DA CENA.)
D. FLÁVIA
- Agora não tenho medo... estou, de novo, forte... senhora de mim mesma e de minha virtude... e nem importa que estejam desabotoadas...
(AS BOTINAS INCLINAM-SE DEFINITIVAMENTE A FAVOR DE DOROTÉIA)
DOROTÉIA (rápido e baixo)
- Me procuram...
D. FLÁVIA (num grito)
- A ti?
DOROTÉIA (iluminada)
- Sim!
D. FLÁVIA (com acento doloroso)
- Te escolheram...
DOROTÉIA
- Explica-lhes que mudei... diz que já não sou a mesma... e que já deixei a profissão...
(DOROTÉIA AFASTA-SE LEVANDO AS BOTINAS E, MAIS ADIANTE, COLOCA-AS NO CHÃO)
DOROTÉIA
- Para onde eu vou elas vão... como se, nesta casa, eu fosse a única mulher. (muda de tom, veemente) Cita as chagas que pedi a Nepomuceno...
D. FLÁVIA
- Citarei... (frenética) Ela vai ter chagas... não uma nem duas, mas cinco... cinco! (para Dorotéia) Continua! Talvez não acreditem em mim... Talvez pensem que estou despeitada... Mas eu seria incapaz, nunca... É verdade ou não o que eu estou dizendo?
DOROTÉIA
- Claro!
D. FLÁVIA (tranqüila)
- Agora que ele sabe, que tem a certeza das chagas, te deixará em paz... Então, ficaremos nós duas unidas, cada uma com a sua desgraça...
DOROTÉIA
- Cada uma com o seu gemido...
(AS DUAS JUNTAM-SE NO MEIO DA CENA)
DOROTÉIA (segredando)
- Vieram atrás de mim...
D. FLÁVIA
- Então não acreditaram no que eu disse...
(SEGURA DOROTÉIA PELOS DOIS BRAÇOS. OLHA NOS SEUS OMBROS, BUSTO, ROSTO.)
D. FLÁVIA
- E eu sei por que duvidaram.... Por que continuas com a pele boa.. as chagas não vieram... (feroz) talvez não venham nunca!
DOROTÉIA
- Hão de vir... O senhor Nepomuceno garantiu...
(SEM NOÇÃO DO QUE ESTÁ FAZENDO, DOROTÉIA PENTEIA-SE)
DOROTÉIA (caindo em si)
- Que faço?
D. FLÁVIA
- Teu penteado.
DOROTÉIA
- Mas não sou eu...s ao os meus movimentos que me penteiam... juro...
D. FLÁVIA
- Bem que eu disse – teus cabelos deviam estar mortos!
DOROTÉIA
- Talvez... (apavorada) Estou sorrindo, não estou? Porém é contra a minha vontade... e agora, tenho certeza, que vou botar pó... (começa a botar pó) nos ombros, no pescoço....
D. FLÁVIA
- Basta!
DOROTÉIA
- E agora debaixo do braço...
D. FLÁVIA (indicando as botinas)
- É por isso que elas te perseguem, te espreitam, não te largam!
DOROTÉIA
- Sinto que meu hálito é doce...nunca foi tão doce... Mas porque, se não espero ninguém... o jarro apareceu, eu sei.... mas tanto pode ser para mim como para você... ou quem sabe se veio por engano? Bobagem minha, estar me enfeitando...
D. FLÁVIA
- Não querias matá-las? Tu mesma tiveste a idéia... E disseste que era fácil... Te salvarei, Dorotéia!
DOROTÉIA (dolorosa)
- Salvar a mim... (veemente) E a ti não?
D. FLÁVIA
- A mim também...
DOROTÉIA
- Só não queria que as fizesses sofrer... e não te ajudarei... não carregarei nada!
D. FLÁVIA (grave)
- Farei tudo sozinha... tudo... e pelas costas... à traição... para que não se possam defender...
DOROTÉIA
- Covardia!
(DE RASTROS D. FLÁVIA FAZ A VOLTA PARA SURPREENDER AS BOTINAS PELOS CALCANHARES. ABRE AS MÃOS, COMO SE FOSSE ESTRANGULÁ-LAS)
D. FLÁVIA
- Estou vendo daqui... Desabotoadas... (cobre-se com o leque) E teria preferido uma vítima mais composta... (baixa o leque) Mas é preciso, por ti, por mim.. Não serão tuas...
DOROTÉIA (Cobre o rosto com uma das mãos. D. Flávia a contragosto esboça uma carícia que Dorotéia surpreende)
- Mata se quiseres, mas não lhes faça carinho!
(D. FLÁVIA ERGUE-SE EM DESESPERO, RECUA PARA O FUNDO DA CENA)
D. FLÁVIA (chorando)
- Não posso!
DOROTÉIA
- Graças...
D. FLÁVIA
- Só tuas chagas nos poderão salvar... olha no teu ombro... examina tua pele... Nada ainda?
DOROTÉIA
- Nada!
D. FLÁVIA
- Nem ao menos uma espinha? Uma irrupção?
(ILUMINA-SE, NO FUNDO DA CENA, O JARRO; AS DUAS VOLTAM-SE MARAVILHADAS)
DOROTÉIA
- O aviso... a minha sina... (cai, de joelhos diante das botinas) Bem que eu queria mudar de proceder. Porém o destino é mais forte...
D. FLÁVIA (possessa)
- Nunca, ouviste, nunca! Teus poros vão explodir...
DOROTÉIA (eufórica)
- As chagas não vieram... nem virão mais... Minha pele é uma maravilha... (avança para D. Flávia de dedo em riste) Como poucas... se olhares nas minhas costas, não encontrarás uma espinha... nem sarda... por isso nenhuma mulher gosta de mim... por isso até minha sabedoria implicava comigo... porque não tenho manchas... Há no meu corpo sempre um cheiro bom...
D. FLÁVIA (chorando)
- Danada!
DOROTÉIA (selvagem)
- E agora , vai para teu canto...
D. FLÁVIA
- Não...
DOROTÉIA
- Vai! (ri sem transição) Fica no teu canto agachada – ruminando, com olhos de pavor... tua boca torta... Ri, agora!
(D. FLÁVIA TEM UM RISO SOLUÇANTE.)
DOROTÉIA
- Riso aleijado! (riso musical de Dorotéia para fixar o contraste) Esconde teu rosto debaixo de qualquer coisa...
D. FLÁVIA (gritando)
- Amaldiçôo tuas feições... E cada um dos teus ombros... maldito esse hálito bom... cada seio teu... malditas tuas costas sem espinhas...
DOROTÉIA
- Sou tão linda que, sozinha num quarto, seria amante de mim mesma...
(NA SUA EXALTAÇÃO NARCISISTA DOROTÉIA FAZ UM MOVIMENTO RÁPIDO: VIRA AS COSTAS PARA A PLATÉIA E AO VOLTAR-SE ESTÁ COM UMA MÁSCARA HEDIONDA.)
D. FLÁVIA (assombrada)
- Teu rosto!
DOROTÉIA (de joelhos diante das botinas)
- Minha sombra tem perfume... sou linda...
D. FLÁVIA
- Agora nem Nepomuceno te aceitaria!
DOROTÉIA (imersa em sonho)
- Respira meu hálito bom... (ergue-se espantada) Por que citaste Nepomuceno? Não me aceitaria, por quê? Se foi tão amável comigo?
(O JARRO É LEVADO DE CENA)
D. FLÁVIA (feroz)
- Ri!
DOROTÉIA (espantada)
- Vou rir... (começa a rir. O som é apavorante) Eu não ria assim... Deve ser engano... este riso não é meu... (continua rindo contra a vontade)
D. FLÁVIA (exultante)
- Fica no teu canto... rumina tua boca torta... e tua vista de sangue... esconde teu rosto de bicho debaixo de qualquer coisa...
(AS BOTINAS SE AFASTAM)
D. FLÁVIA
- Elas te renegam....
(ENTRA D. ASSUNTA DA ABADIA. PÉ ANTE PÉ, OLHANDO PARA TODOS OS LADOS. NÃO VÊ NEM D. FLÁVIA NEM DOROTÉIA. ESTAS, RÁPIDAS, ESTÃO COLADAS À PAREDE.)
D. ASSUNTA
- Ninguém... (devagarinho, com muitíssimo cuidado para não fazer barulho, aproximando-se das botinas. Faz psiu para o filho) Silêncio, meu filho – psiu... (ralhando) Não faça barulho para não incomodar...(descobre um papel e põe-se a embrulhar o filho e a comentar com ele a noite de núpcias) Já sei, não precisa contar, que já imagino tudo, tudinho... Em certa altura sua noiva teve a náusea etc... Pois é, aqui nesta família é assim, sempre foi assim e pronto. Diabo de barbante. (está, no momento, amarrando o embrulho do filho com barbante de presente) E agora vamos andando, que já está amanhecendo e (suspira) tenho muito o que fazer em casa... A louça está em cima da pia, ainda por lavar.... (pé ante pé, com o embrulho das botinas debaixo do braço, D. Assunta abandona a cena)
DOROTÉIA
- Eu não merecia ser destratada... nunca ninguém me fez a desfeita de me recusar... eu tinha muita sorte, muita... Basta dizer que, até nas segundas-feiras, de manhã, havia quem me quisesse...
D. FLÁVIA
- Nesse tempo não tinha as chagas...
DOROTÉIA
- Elas chegaram tão de repente que nem as senti... Acho que nem o nascimento de uma espinha passa tão despercebido... Foi preciso que avisasses...
D. FLÁVIA
- Foi...
DOROTÉIA
- E já começam a me devorar... Várias no rosto, como desejavas... eu pensei que só fossem cinco... agora o jarro não quer me acompanhar...deve estar interessado em alguma mulher de pele boa... Eu não poderei mais ser leviana... (violenta para D. Flávia) Qual será o nosso destino?
(AS DUAS FICAM JUNTAS DE FRENTE PARA A PLATÉIA. MUITO ERETAS E UNIDAS. FAZEM A FUSÃO DE SUAS DESGRAÇAS. D. FLÁVIA CONTINUA SEGURANDO A MÁSCARA DA FILHA NA ALTURA O PEITO. E DÁ À COMPANHEIRA A MÃO LIVRE. SÃO PARA SEMPRE SOLIDÁRIAS.)
DOROTÉIA (num apelo maior)
- Qual será o nosso fim?
D. FLÁVIA (lenta)
- Vamos apodrecer juntas.
(FIM DO TERCEIRO E ÚLTIMO ATO.)
(ABRE O PANO. D. FLÁVIA E DOROTÉIA ESTÃO AGACHADAS NUMA DAS EXTREMIDADES DO PALCO. OLHAM, APAVORADAS, PARA O JARRO, QUE ACABA DE APARECER. DESLOCAM-SE, EM PÂNICO, DE UM LUGAR PARA O OUTRO. MAS NEM ASSIM SE LIBERTAM DA VISÃO.)
D. FLÁVIA (com mímica de choro)
- O jarro!
DOROTÉIA (justificando-se)
- Deve ser algum engano... (para D. Flávia) eu agora sou direita!... Com certeza ele não sabe ainda... Então é preciso avisar...
D. FLÁVIA (rosto a rosto com Dorotéia) (baixo)
Acho que ele veio porque (vacila, olhando para Dorotéia) ... resta alguma coisa em ti... (baixa a voz) Resta em tia alguma coisa de tua beleza... Algo que ainda não foi condenado...
DOROTÉIA (em pânico)
- Não...
(D. FLÁVIA APANHA, NUMA DAS MÃOS, UMA TRANÇA DE DOROTÉIA)
D. FLÁVIA
- Quem sabe se o jarro veio, continua vendo, por causa de teus cabelos?
DOROTÉIA (espantada)
- Meus cabelos... aperta a fronte entre as mãos) São tão calados que a gente até esquece que eles existem...
D. FLÁVIA
- Se eu fosse homem ,gostaria deles...
DOROTÉIA (meio assustada)
- Acredito...
D. FLÁVIA (com brusco ódio)
- Por isso mesmo, devem ser arrancados de ti!... (lenta e grave) Teus cabelos devem morrer, Dorotéia...
DOROTÉIA (apavorada)
- Eu sei que não fica bem para uma senhora honesta ter cabelos assim... Não convém.. Mas....
D. FLÁVIA (agressiva)
- Ou tens medo?
DOROTÉIA
- E se nós os perdoássemos?
D. FLÁVIA (feroz)
- Não ... o jarro não te deixaria em paz nunca... O jarro não perdoaria...
DOROTÉIA
- Sei que não... ou imagino... e desde que me regenerei que não me penteio... me esqueci de minha cabeleira.. nem ligo.. é como se não existisse... (com angústia) Mas vê só o silêncio dos meus cabelos... presta atenção... Nenhum rumor, como se já estivessem mortos...
D. FLÁVIA (num sopro)
- Tudo em ti precisa ser castigado!
DOROTÉIA
- Tudo?
D. FLÁVIA
- Sim.
DOROTÉIA (excitada)
- Sei... e é justo... muito justo, até... nem pense que estou reclamando. (categórica) Deus me livre! Tudo deve pagar – cabelos, joelhos, olhos...
D. FLÁVIA (espantada)
- Olhos... Eu falei neles, sim... mas só de passagem... sem ódio... sem odiá-los como eles merecem... (doce, tomando o rosto de Dorotéia entre as mãos) Deixa eu olhar bem no fundo dos teus olhos... assim.
DOROTÉIA
- Vê um e depois outro...
D. FLÁVIA
- Parece incrível! Eu ia-me esquecendo de odiá-los... Deixa eu ver se eles conservam o mesmo brilho... Ou se já é uma luz ensangüentada...
DOROTÉIA (apavorada)
- É cedo, ainda...
D. FLÁVIA (violenta)
- Mas as chagas já deviam ter vindo...
DOROTÉIA (com súbito desespero)
- Não!
D. FLÁVIA
- Já, sim! Numa volta de sol nascem as estrelas... Uma por uma... (exasperada) E eu queria que tuas chagas nascessem já...
DOROTÉIA (chorando)
- Eu também...
D. FLÁVIA (suplicante
- E por que não nascem, se eu as espero? Há quanto tempo estamos aqui?... (de novo feroz) Por que demoram, se está tudo preparado?
DOROTÉIA (olhando os próprios braços)
- Tudo!
D. FLÁVIA
- Não é mesmo? ... A vista, o seio, o lábio, o ombro... Elas poderão morder em paz... cravar na tua carne a fome silenciosa... (num grito) Mas tardam!
DOROTÉIA
- A culpa não é minha!
D. FLÁVIA (desesperada)
- E a náusea de minha filha que também não veio?
DOROTÉIA
- Que coisa!...
D. FLÁVIA
- Mas deve estar chegando... Agora falta pouco, tem que faltar pouco...
DOROTÉIA
- Tomara!
D. FLÁVIA (um súbito grito)
- Das Dores!
(DAS DORES ESTÁ MERGULHADA NO SEU IDÍLIO COM AS BOTINAS.)
DAS DORES (em sonho)
- Não ouvi teu chamado, mãe... Grita outra vez...
D. FLÁVIA (num grito maior)
- Minha filha!
DAS DORES (sempre doce)
- Ainda não ouvi... Talvez ouça o grito seguinte...
D. FLÁVIA
- Já veio a náusea?
DAS DORES
- Ainda não.
D. FLÁVIA (com voz de choro)
- Não veio...
DOROTÉIA
- Virá?...
D. FLÁVIA (suplicante)
- Tens certeza, minha filha?... Tens certeza que não veio?
DAS DORES (sonhadora)
- Certeza absoluta.
D. FLÁVIA (num lamento, para Dorotéia)
- Sempre veio... sempre...
DOROTÉIA
- Vamos esperar.
D. FLÁVIA (aproximando-se da filha, sob a proteção do leque)
- Pede, minha filha... Implora esta náusea... Que venha depressa... porque, se não vier o teu fim, o nosso fim, a morte de tudo!
DAS DORES (lírica)
- Não sei se te ouço... Não sei se escuto tua voz...
D. FLÁVIA
- Ouve, minha filha; grava em ti estas palavras... Nossas cômodas, nossos gavetões... estão cheios de vestes conjugais... são roupas de falecidas parentas... (num crescendo oratório) De parentas que sofreram a náusea em plena noite de núpcias...
DAS DORES
- Não importa!
D. FLÁVIA
- Das Dores, invoca os espíritos da família... Chama os protetores.. implora!
DAS DORES
- Não!
D. FLÁVIA
- Porque, se não pedires, tudo te amaldiçoará nesta casa!... As rendas antigas, os velhos bordados, os armários, os espelhos... (profética) Sim, tudo gritará contra ti...
DOROTÉIA (feroz)
- Tudo!
DAS DORES
- Não quero.. Para chamar os protetores da casa eu teria que me ajoelhar e eu estou deitada...
D. FLÁVIA (num grito)
- Ajoelha!
DAS DORES
- Não quero ficar de joelhos...
DOROTÉIA
- É medo... Medo da indisposição...
DAS DORES (com certo medo)
- Nem escuto...
DOROTÉIA
- Arranca filha... Arrasta tua filha!...
D. FLÁVIA
- Não posso... Só depois da náusea!...
DOROTÉIA (baixo)
- Ou então...
D. FLÁVIA
- O quê?
(AS DUAS ESTÃO JUNTAS, ROSTO A ROSTO. ESTRANHO SEGREDO VAI UNI-LAS.)
DOROTÉIA
- Nós duas...
D. FLÁVIA (baixo também)
- Eu e você?
DOROTÉIA
- Adivinhou?
D. FLÁVIA (virando o rosto)
- Não adivinhei, nem quero... (muda de tom) Adivinhei sim... leio nos seus olhos... Sei em que você está pensando neste momento...
DOROTÉIA (excitada e ainda em surdina)
- E não seria crime...
D. FLÁVIA (ofegante)
- Claro que não... Seria até – bonito!
DOROTÉIA (com certa ferocidade)
- Então vamos!
D. FLÁVIA
- Mas... e quando a mãe viesse buscar o filho? Diríamos o quê?
DOROTÉIA
- Diríamos que tinha havido um (triunfante) acidente... Ou então (muda de tom) um suicídio... por desgostos íntimos”...
D. FLÁVIA
- Não! Não!
DOROTÉIA
- Ninguém saberia, aposto... Ninguém...s ria apenas um crime a mais... E o que é um crime?... Coisa comum... Garanto que, neste momento, alguém há de estar matando alguém, em algum lugar... (tentadora) E se você tem medo, eu farei tudo... (baixo) E você só ajuda a carregar...
D. FLÁVIA
- Não!
DOROTÉIA
- Covarde!
D. FLÁVIA
- Depois... Assim que Das Dores receber a náusea... e não antes...
(D. FLÁVIA ESTÁ AGORA DE JOELHOS DIANTE DA FILHA, MAS SEMPRE DEFENDENDO O PRÓPRIO ROSTO COM O LEQUE.)
D. FLÁVIA
- Nenhum sinal?
DAS DORES
- Nenhum.
D. FLÁVIA (ergue-se como uma possessa)
- Por que, Senhor, por quê? (num desespero maior) Misericórdia para mim, misericórdia... nasci com esta face de espanto e delírio... Nasci com este rosto que me acompanha como um destino!... E com esta dor de estrangulado gemendo... O sono cingiu minha fronte... E eu estou em vigília... Minha fronte vive em claro, minha fronte jamais adormeceu... Por que, no sonho, eu me queimaria em adoração... (desesperada) Mas eu beijo a flor de minha vigília... Senhor, nem os meus cabelos sonham! E por que um destino nega a náusea da minha filha?... Os meus dez dedos magros! Ó protetores desta casa... desta casa, onde todos os quartos morreram e só as salas vivem!
DAS DORES
- Mãe...
D. FLÁVIA (num apelo)
- Das Dores, minha filha... não sentes como se estivesse formando em ti, nas tuas profundezas, uma espécie de golfada?
DAS DORES
- Eu tive um aviso, mãe... e sei que não vou ter a náusea... nem quero...
DOROTÉIA (num sopro)
- Doida!
D. FLÁVIA
- Não blasfemes!
DAS DORES (com absoluto fervor)
- Não quero, agora não quero... Meu noivo contou coisas que eu não conhecia... Contou uma história muito bonita.. Disse que tinha dores de ouvido... Dessas que atravessaram de uma fronte à outra fronte... E conheceu uma menina que morreu assim... E gritando... gritando com essa dor... Tanto que foi enterrada com o seu martírio... (veemente) Meu noivo diz que a menina morreu porque não pingaram o remédio... Eu acredito, mãe! Preciso ficar junto de meu noivo, sempre!
D. FLÁVIA
- Queres perder a tua alma?
DAS DORES
- Talvez..
D. FLÁVIA
- E se eu te chamar de maldita?
DAS DORES
- Chama!
D. FLÁVIA
- Maldita!
DAS DORES
- Sou maldita.. Mil vezes maldita... Mas olha: (ergue as duas botinas na mãos)
D. FLÁVIA
- Não!
(D. FLÁVIA DEFENDE COM O LEQUE O AMEAÇADO PUDOR.)
DAS DORES
- Minhas mãos pousadas... Quietas... Queria que minhas mãos morressem assim... Podes me amaldiçoar...
D. FLÁVIA
- Já te amaldiçoei!
DAS DORES
- ... quantas vezes quiseres... Só não podes tirar o amor que já é meu...
D. FLÁVIA (virando-se, lenta)
- Posso!
DAS DORES (fremente)
- Nunca!
D. FLÁVIA
- Quem sabe... (para Dorotéia) Ela diz que eu não posso, mas... (rápida, na direção da filha, embora com o leque na frente) E se eu disser que vou matar teu amor? Não acreditarias?
DAS DORES (feroz)
- Não!
D. FLÁVIA
- E se eu disser que deixarás de amar? E de odiar... Se eu disse que de mim, só de mim, dependem a vida e a morte dos teus sentimentos?...
DAS DORES (erguendo-se)
- Mentira!
D. FLÁVIA
- Sim, tenho em mim este poder... (ri, cruel) Não acreditas, sei que “ainda” não acreditas... Nesse momento, tu estás-me olhando... Se eu disser que perderás todos os olhares teus?...
(DAS DORES ESTENDE AS MÃOS, NUM GESTO DE DEFESA)
D. FLÁVIA
- E que este gesto de mão tu não poderás repetir... (lenta) porque perderás o gesto e a mão... as duas mãos...
(DAS DORES, COMO A DEFENDER-SE DE UMA AMEAÇA ABOMINÁVEL, APANHA AS DUAS BOTINAS E PÕE DEBAIXO DO BRAÇO.)
DAS DORES
- Não acredito...
D. FLÁVIA
- É o que vai acontecer contigo... Por minha vontade...Porque eu quero... (bruscamente doce) Há uma coisa que ignoras... Uma coisa que eu nunca te disse e que o resto da família escondeu de ti.. Tenho uma testemunha – aquela mulher, outrora de vida airada e hoje de bom conceito... (grita) Dorotéia!
DOROTÉIA
- Eu.
D. FLÁVIA
- Serás testemunha...
DOROTÉIA
- De que se trata?
D. FLÁVIA
- ... Testemunha de minhas palavras, perante minha filha!
DOROTÉIA
- Se estiver no meu alcance!
D. FLÁVIA
- Maria das Dores, tu nasceste de cinco meses e morta...
DAS DORES
- Morta!
D. FLÁVIA
- Muito morta! Não te dissemos nada, com pena...
DOROTÉIA (condoída)
- Para não dar decepção...
D. FLÁVIA
- Tu não existes!
DAS DORES (atônita)
- Não existo?
D. FLÁVIA
- Tu não podias ser enterrada antes da náusea, sem teres tido a náusea... A família esperava que, na noite de núpcias, tu a sentisses... Então, voltarias para o teu nada, satisfeita, feliz... Dirias “que bom eu ter nascido morta! Que bom ter nascido de cinco meses.. Antes assim!”” Mas não aconteceu nada na tua noite de núpcias... O conto do teu noivo – essa história da dor de ouvidos – te enfeitiçou. (para Dorotéia) Minto?
DOROTÉIA (para Das Dores)
Sua mãe disse a pura verdade!
DAS DORES (espantada)
- Nasci de cinco meses... (desesperada) Então esse gesto... (Esboça, no ar, um movimento com a mão) Não tenho mão para fazê-lo?
D. FLÁVIA (feroz)
- Foi bom que tivesses nascido morta!... (lenta) Porque serias uma perdida... E não como nós... Não aceitasse em tia a náusea... em vez de enjôo, a volúpia...a adoração... Jamais serias como eu, que jamais amei ninguém, nem a mim mesma! (gritando) Por que continuas nesta casa, se és morta?
DAS DORES
- Vou partir!
D. FLÁVIA
- E já!
DAS DORES
- Mas antes quero que me ouças...
D. FLÁVIA (cruel)
- Fala, mas depressa... Diz tuas últimas palavras... E não te aproximes.. Quero-te longe de imi... Volta para o teu nada...
DAS DORES
- Para o meu nada, não... Voltarei a ti!
D. FLÁVIA (com medo)
- Não!
DAS DORES
- Nasci morta... Não existo, mas (incisiva) quero viver em ti...
D. FLÁVIA (apavorada)
- Nunca!
DAS DORES (histérica)
- Em ti... serei, de novo, tua carne e teu sangue.. e nascerei de teu ventre...
D. FLÁVIA (recuando)
- Não quero!
DAS DORES (para Dorotéia)
- E tu, Dorotéia...
DOROTÉIA (numa mesura)
- Às ordens...
DAS DORES
- Outrora de vida airada e hoje de bom conceito... Foste testemunha de minha mãe... agora serás de mim contra minha mãe... Escuta: serei, de novo, filha de minha mãe! E nascerei viva... e crescerei... e me farei mulher...
DOROTÉIA
- Acho difícil...
DAS DORES (feroz)
- Olha! (num gesto brusco e selvagem tira a própria máscara e coloca-a no peito de D. Flávia)
D. FLÁVIA
- Não! Não!
(A PRÓPRIA D. FLÁVIA, COM UMA DAS MÃOS, MANTÉM A MÁSCARA DE ENCONTRO AO PEITO. ESTE É O SÍMBOLO PLÁSTICO DA NOVA MATERNIDADE)
D. FLÁVIA (gritando histericamente)
- Não te quero na minha carne! Não te quero no meu sangue!
(D. FLÁVIA DIRIGE SUAS PALAVRAS À MÁSCARA)
D. FLÁVIA
- Eu seria mãe até de um lázaro, menos de ti!
(SEGURANDO A MÁSCARA DE ENCONTRO AO PEITO D. FLÁVIA SE TORCE E RETORCE NO SEU MEDO E NO SEU ÓDIO.)
DOROTÉIA
- É tua sina, mulher!
D. FLÁVIA
- Não posso!
DOROTÉIA (baixo)
- E nem ao menos poderás esconder tua nova maternidade... um vestido largo não bastaria... Todos vão saber que serás mãe... (lenta, espantada) E que vais dar à luz uma filha já falecida...
D. FLÁVIA (num soluço maior)
- Salva-me! Salva-me!
DOROTÉIA
- Eu?
D. FLÁVIA (histérica)
- Sim... Só tu, entre todas as mulheres, me poderás salvar!
DOROTÉIA
- Conforme...
D. FLÁVIA (agarrando-se a Dorotéia)
- Pensamos, hoje tantas vezes, em crime... primeiro houve – não foi? – a idéia de te esganar... Depois minhas primas pediram que eu as livrasse do pecado e assim fiz...
DOROTÉIA
- Ótimo!
D. FLÁVIA
- Estão, ali, com a morte que eu lhes dei... Por fim tu quiseste (indica as botinas) esganar o noivo...
DOROTÉIA
- Foi...
D. FLÁVIA (baixando a voz, espantada)
- Mas a idéia do crime está voltando sempre . . . Agora mesmo, neste
momento, eu a tenho em mim, gravada em mim... (convulsiva) Mas desta vez é para me salvar...
DOROTÉIA
- Ainda não percebi!
D. FLÁVIA (rosto a rosto com Dorotéia)
- Tu me salvarias se destruísses minha filha!
DOROTÉIA
- Eu, logo eu?... mas, por que se eu sou apenas uma prima, quase uma estranha?... Não eu. (gritando) mas você... (segredando com a outra) Você que é mãe da menina... Você, que vai dar à luz duas vezes, pode soprar essa luz, cegar essa luz... Ninguém melhor que uma mãe, com mais autoridade, para sufocar aquilo que ela mesma gerou... A mãe pode pegar uma filha e lhe abrir o rosto ao meio, sendo que um perfil para cada lado...
D. FLÁVIA (em desespero)
- Não posso... Queria, mas não posso... (persuasiva) Escuta: ela não aceitaria uma morte que viesse de mim, que eu lhe desse. Mas você pode. Das Dores não teria nada contra você... E se deixaria estrangular pelas tuas mãos...
(DIZENDO ISSO, D. FLÁVIA OFERECE A MÁSCARA A DOROTÉIA QUE RECUA, COM MEDO.
D. FLÁVIA
- Toma!
DOROTÉIA
- Esganar a menina?... Mas ela não deve morrer para sempre... e por que castigar a sua inocência?...
D. FLÁVIA
- Não é inocente, juro! Pecou contra a náusea!
DOROTÉIA (feroz)
- Outra vida deve morrer!
(D. FLÁVIA COLOCA, NOVAMENTE, A MÁSCARA DE ENCONTRO AO PEITO.)
D. FLÁVIA (num sussurro)
- Quem?
(DOROTÉIA APONTA PARA O PAR DE BOTINAS. D. FLÁVIA SOBE NUMA CADEIRA PARA OLHAR POR CIMA DO LEQUE.)
D. FLÁVIA (virando o rosto)
- Não!
DOROTÉIA
- Viras o rosto!
D. FLÁVIA (dolorosa)
- Olhei por cima do leque... e não devia... Maura olhou e morreu... (em desespero) Desde que elas chegaram eu desejaria ser cega... Erro meu ter estes olhos...
DOROTÉIA (feroz)
- Porém eu não tenho medo!
D. FLÁVIA
- Se, ao menos, não estivessem desabotoadas...
DOROTÉIA
- Por isso devem expiar... Numa casa, onde tem senhoras.. Maura e Carmelita mortas, nós duas vivas... Não podemos viver sabendo que, perto de nós, estão (lenta) as botinas desabotoadas... Vamos?
D. FLÁVIA
- E eu seria criminosa se a vítima estivesse com todos os botões em suas casa.. Mas assim não... Não posso... não devo.
(OLHA OUTRA VEZ POR CIMA DO LEQUE.)
DOROTÉIA
- Tu, uma senhora de bom proceder e farta virtude, com medo!... E eu não ... Eu sem medo algum... Posso me aproximar...
(APROXIMA-SE DAS BOTINAS)
DOROTÉIA
- Dar os meus carinhos, até...
D. FLÁVIA (num grito, cobrindo-se com leque)
- Não!
DOROTÉIA
- Posso olhá-las, não um minuto ou dois, mas dia após dia... E não sinto anda... É como se estivessem mortas... Vem, por vir!
D. FLÁVIA
- Nunca!
DOROTÉIA
- Te dou a minha palavra de que não acontecerá nada...
D. FLÁVIA
- Não é por medo, que medo não tenho, graças a Deus... se disse que tinha, me enganei... (furiosa) Pensas que sou como tu, uma perdida?
DOROTÉIA (fremente)
- Já fui!... Mas agora me corrigi... Agora que tenho em mim as chagas... E as espero... (maravilhada) Elas vão reinar em mim... Vão nascer num seio, numa vista... vão me devorar em silêncio... Menos os cabelos... ou os cabelos também? Talvez acabe como o Sr. Nepomuceno que vive sozinho, acompanhado apenas pelos próprios gritos...
D. FLÁVIA (num lamento)
- Só nós duas nesta casa... Nós duas e um par de botinas...
DOROTÉIA
- Não queres olhar?
D. FLÁVIA
- Não!
(DOROTÉIA ERGUE AS BOTINAS NA ALTURA DO PRÓPRIO ROSTO.)
DOROTÉIA
- Posso fazer isso... Já não sou mulher.. Tudo que era mulher morreu em mim.. Aproximo meu rosto...
(OS CALCANHARES DAS BOTINAS ESTÃO TOCANDO O ROSTO DE DOROTÉIA)
DOROTÉIA
- ... da tentação... e estou fria... Eu própria sinto um frio de morte... meus cabelos estão gelados...
D. FLÁVIA
- Elas te queimam...
DOROTÉIA (violenta)
- Vamos matá-las agora?
D. FLÁVIA
- Juro que nada me fará olhar...
(AO MESMO TEMPO EM QUE DIZ ISSO D. FLÁVIA VIRA-SE RÁPIDA E OLHA.)
D. FLÁVIA
- Não quero vê... Não darei um passo nessa direção...
DOROTÉIA (num grito)
Vem!
(D. FLÁVIA FAZ O CONTRÁRIO DO QUE DIZ)
D. FLÁVIA (gritando)
- Seja eu a última das mulheres, se me aproximar, se...
(CONTINUA CAMINHANDO)
DOROTÉIA (arquejante)
- Mais um passo!
D. FLÁVIA
-... E que minha virtude se transforme em vergonha e minha febre em sonho se eu avançar ainda... (avança mais)
DOROTÉIA (num sopro)
- Perdeste o medo...
D. FLÁVIA (atônita)
- Quem? Eu?
(D. FLÁVIA PARECE CAIR EM SI. VIRA-SE BRUSCAMENTE. ESTÁ, AGORA, DE FRENTE PARA A PLATÉIA.)
D. FLÁVIA (com medo)
- Minha filha está dentro de mim...
(ERGUE O LEQUE, COBRINDO O ROSTO. AFASTA-SE DAS BOTINAS. COLOCA-SE NA OUTRA EXTREMIDADE DO PALCO, AGACHADA)
D. FLÁVIA
- Minha filha é, de novo, minha carne e minha alma... Quer que eu tenha pensamentos... e que tudo em mim sonhe...
(DE COSTAS PARA A PLATÉIA, D. FLÁVIA ERGUE, NAS DUAS MÃOS, A MÁSCARA DA FILHA. TRAVA-SE, ENTÃO, ESTRANHO DIÁLOGO.)
D. FLÁVIA
- A mim não me enganas... Imagino qual seja o teu delírio... Desgraçar minha virtude... queimar meu pudor...a gora me arrastas... me puxas...
(PARECE REALMENTE QUE ALGUÉM ESTÁ ARRASTANDO D. FLÁVIA PARA AS BOTINAS. CONTINUA O DIÁLOGO COM A MÁSCARA.)
D. FLÁVIA (num grito)
- ... e um abismo grita por mim... Mas não vou... não irei...
(NA MEDIDA EM QUE SE APROXIMA AS BOTINAS SE AFASTAM COMO SE REFUGASSEM A VIÚVA.)
DOROTÉIA
- Fogem de ti...
D. FLÁVIA
- Fogem... sinto que fogem...
DOROTÉIA
- Têm horror de ti... (recomeça o diálogo de D. Flávia com a máscara)
D. FLÁVIA
- Estás me dando visões que nunca tive... E este gesto não é meu... Nem esta alegria... Tenho ódio de mim. (patética) Por que me fazes rir? (ri sinistramente) Por que me dás vontade de cantar?
(D. FLÁVIA COMEÇA A CANTAR, MAS É UM MISTO DE CANTO E CHORO.)
DOROTÉIA (gritando)
- Você está parecida com alguém... alguém que eu conheço... Quem? Já sei! Agora me lembro (cruel) com a minha senhoria, a dona do meu quarto... igualzinha... quando bebia ficava assim... cantava assim... muito liberal, dada ... Ri, anda, ri!
D. FLÁVIA
- Não!
(MAS CONTRA A PRÓPRIA VONTADE OBEDECE, NUMA MISTURA REPULSIVA DE RISO E SOLUÇO. SEU RISO VOLUNTÁRIO SE FUNDE NUM INVOLUNTÁRIO SOLUÇO.)
DOROTÉIA
- Parece uma velha bêbeda!
(D. FLÁVIA CORTA BRUSCAMENTE O PRÓPRIO SOLUÇO. ESTAVA COM A MÁSCARA ERGUIDA NAS DUAS MÃOS. COLOCA-A NA ALTURA DO PEITO.)
D. FLÁVIA
- Voltei a meu normal... Me sinto eu mesma... Minha filha agora está quieta, não está?
DOROTÉIA
- Parece.
D. FLÁVIA (para a máscara)
- Estou descansando um pouco do teu ódio... (vira-se na direção das botinas, já com a máscara na altura do peito) E se elas viessem ao meu encontro...
DOROTÉIA (num grito)
- Vem sim! Vem em nossa direção!
(O MESMO FANTASMA QUE TROUXERA O JARRO ESTÁ EMPURRANDO AS BOTINAS, PELOS CALCANHARES. AS DUAS MULHERES SE COLOCAM NUMA DAS EXTREMIDADES DA CENA.)
D. FLÁVIA
- Agora não tenho medo... estou, de novo, forte... senhora de mim mesma e de minha virtude... e nem importa que estejam desabotoadas...
(AS BOTINAS INCLINAM-SE DEFINITIVAMENTE A FAVOR DE DOROTÉIA)
DOROTÉIA (rápido e baixo)
- Me procuram...
D. FLÁVIA (num grito)
- A ti?
DOROTÉIA (iluminada)
- Sim!
D. FLÁVIA (com acento doloroso)
- Te escolheram...
DOROTÉIA
- Explica-lhes que mudei... diz que já não sou a mesma... e que já deixei a profissão...
(DOROTÉIA AFASTA-SE LEVANDO AS BOTINAS E, MAIS ADIANTE, COLOCA-AS NO CHÃO)
DOROTÉIA
- Para onde eu vou elas vão... como se, nesta casa, eu fosse a única mulher. (muda de tom, veemente) Cita as chagas que pedi a Nepomuceno...
D. FLÁVIA
- Citarei... (frenética) Ela vai ter chagas... não uma nem duas, mas cinco... cinco! (para Dorotéia) Continua! Talvez não acreditem em mim... Talvez pensem que estou despeitada... Mas eu seria incapaz, nunca... É verdade ou não o que eu estou dizendo?
DOROTÉIA
- Claro!
D. FLÁVIA (tranqüila)
- Agora que ele sabe, que tem a certeza das chagas, te deixará em paz... Então, ficaremos nós duas unidas, cada uma com a sua desgraça...
DOROTÉIA
- Cada uma com o seu gemido...
(AS DUAS JUNTAM-SE NO MEIO DA CENA)
DOROTÉIA (segredando)
- Vieram atrás de mim...
D. FLÁVIA
- Então não acreditaram no que eu disse...
(SEGURA DOROTÉIA PELOS DOIS BRAÇOS. OLHA NOS SEUS OMBROS, BUSTO, ROSTO.)
D. FLÁVIA
- E eu sei por que duvidaram.... Por que continuas com a pele boa.. as chagas não vieram... (feroz) talvez não venham nunca!
DOROTÉIA
- Hão de vir... O senhor Nepomuceno garantiu...
(SEM NOÇÃO DO QUE ESTÁ FAZENDO, DOROTÉIA PENTEIA-SE)
DOROTÉIA (caindo em si)
- Que faço?
D. FLÁVIA
- Teu penteado.
DOROTÉIA
- Mas não sou eu...s ao os meus movimentos que me penteiam... juro...
D. FLÁVIA
- Bem que eu disse – teus cabelos deviam estar mortos!
DOROTÉIA
- Talvez... (apavorada) Estou sorrindo, não estou? Porém é contra a minha vontade... e agora, tenho certeza, que vou botar pó... (começa a botar pó) nos ombros, no pescoço....
D. FLÁVIA
- Basta!
DOROTÉIA
- E agora debaixo do braço...
D. FLÁVIA (indicando as botinas)
- É por isso que elas te perseguem, te espreitam, não te largam!
DOROTÉIA
- Sinto que meu hálito é doce...nunca foi tão doce... Mas porque, se não espero ninguém... o jarro apareceu, eu sei.... mas tanto pode ser para mim como para você... ou quem sabe se veio por engano? Bobagem minha, estar me enfeitando...
D. FLÁVIA
- Não querias matá-las? Tu mesma tiveste a idéia... E disseste que era fácil... Te salvarei, Dorotéia!
DOROTÉIA (dolorosa)
- Salvar a mim... (veemente) E a ti não?
D. FLÁVIA
- A mim também...
DOROTÉIA
- Só não queria que as fizesses sofrer... e não te ajudarei... não carregarei nada!
D. FLÁVIA (grave)
- Farei tudo sozinha... tudo... e pelas costas... à traição... para que não se possam defender...
DOROTÉIA
- Covardia!
(DE RASTROS D. FLÁVIA FAZ A VOLTA PARA SURPREENDER AS BOTINAS PELOS CALCANHARES. ABRE AS MÃOS, COMO SE FOSSE ESTRANGULÁ-LAS)
D. FLÁVIA
- Estou vendo daqui... Desabotoadas... (cobre-se com o leque) E teria preferido uma vítima mais composta... (baixa o leque) Mas é preciso, por ti, por mim.. Não serão tuas...
DOROTÉIA (Cobre o rosto com uma das mãos. D. Flávia a contragosto esboça uma carícia que Dorotéia surpreende)
- Mata se quiseres, mas não lhes faça carinho!
(D. FLÁVIA ERGUE-SE EM DESESPERO, RECUA PARA O FUNDO DA CENA)
D. FLÁVIA (chorando)
- Não posso!
DOROTÉIA
- Graças...
D. FLÁVIA
- Só tuas chagas nos poderão salvar... olha no teu ombro... examina tua pele... Nada ainda?
DOROTÉIA
- Nada!
D. FLÁVIA
- Nem ao menos uma espinha? Uma irrupção?
(ILUMINA-SE, NO FUNDO DA CENA, O JARRO; AS DUAS VOLTAM-SE MARAVILHADAS)
DOROTÉIA
- O aviso... a minha sina... (cai, de joelhos diante das botinas) Bem que eu queria mudar de proceder. Porém o destino é mais forte...
D. FLÁVIA (possessa)
- Nunca, ouviste, nunca! Teus poros vão explodir...
DOROTÉIA (eufórica)
- As chagas não vieram... nem virão mais... Minha pele é uma maravilha... (avança para D. Flávia de dedo em riste) Como poucas... se olhares nas minhas costas, não encontrarás uma espinha... nem sarda... por isso nenhuma mulher gosta de mim... por isso até minha sabedoria implicava comigo... porque não tenho manchas... Há no meu corpo sempre um cheiro bom...
D. FLÁVIA (chorando)
- Danada!
DOROTÉIA (selvagem)
- E agora , vai para teu canto...
D. FLÁVIA
- Não...
DOROTÉIA
- Vai! (ri sem transição) Fica no teu canto agachada – ruminando, com olhos de pavor... tua boca torta... Ri, agora!
(D. FLÁVIA TEM UM RISO SOLUÇANTE.)
DOROTÉIA
- Riso aleijado! (riso musical de Dorotéia para fixar o contraste) Esconde teu rosto debaixo de qualquer coisa...
D. FLÁVIA (gritando)
- Amaldiçôo tuas feições... E cada um dos teus ombros... maldito esse hálito bom... cada seio teu... malditas tuas costas sem espinhas...
DOROTÉIA
- Sou tão linda que, sozinha num quarto, seria amante de mim mesma...
(NA SUA EXALTAÇÃO NARCISISTA DOROTÉIA FAZ UM MOVIMENTO RÁPIDO: VIRA AS COSTAS PARA A PLATÉIA E AO VOLTAR-SE ESTÁ COM UMA MÁSCARA HEDIONDA.)
D. FLÁVIA (assombrada)
- Teu rosto!
DOROTÉIA (de joelhos diante das botinas)
- Minha sombra tem perfume... sou linda...
D. FLÁVIA
- Agora nem Nepomuceno te aceitaria!
DOROTÉIA (imersa em sonho)
- Respira meu hálito bom... (ergue-se espantada) Por que citaste Nepomuceno? Não me aceitaria, por quê? Se foi tão amável comigo?
(O JARRO É LEVADO DE CENA)
D. FLÁVIA (feroz)
- Ri!
DOROTÉIA (espantada)
- Vou rir... (começa a rir. O som é apavorante) Eu não ria assim... Deve ser engano... este riso não é meu... (continua rindo contra a vontade)
D. FLÁVIA (exultante)
- Fica no teu canto... rumina tua boca torta... e tua vista de sangue... esconde teu rosto de bicho debaixo de qualquer coisa...
(AS BOTINAS SE AFASTAM)
D. FLÁVIA
- Elas te renegam....
(ENTRA D. ASSUNTA DA ABADIA. PÉ ANTE PÉ, OLHANDO PARA TODOS OS LADOS. NÃO VÊ NEM D. FLÁVIA NEM DOROTÉIA. ESTAS, RÁPIDAS, ESTÃO COLADAS À PAREDE.)
D. ASSUNTA
- Ninguém... (devagarinho, com muitíssimo cuidado para não fazer barulho, aproximando-se das botinas. Faz psiu para o filho) Silêncio, meu filho – psiu... (ralhando) Não faça barulho para não incomodar...(descobre um papel e põe-se a embrulhar o filho e a comentar com ele a noite de núpcias) Já sei, não precisa contar, que já imagino tudo, tudinho... Em certa altura sua noiva teve a náusea etc... Pois é, aqui nesta família é assim, sempre foi assim e pronto. Diabo de barbante. (está, no momento, amarrando o embrulho do filho com barbante de presente) E agora vamos andando, que já está amanhecendo e (suspira) tenho muito o que fazer em casa... A louça está em cima da pia, ainda por lavar.... (pé ante pé, com o embrulho das botinas debaixo do braço, D. Assunta abandona a cena)
DOROTÉIA
- Eu não merecia ser destratada... nunca ninguém me fez a desfeita de me recusar... eu tinha muita sorte, muita... Basta dizer que, até nas segundas-feiras, de manhã, havia quem me quisesse...
D. FLÁVIA
- Nesse tempo não tinha as chagas...
DOROTÉIA
- Elas chegaram tão de repente que nem as senti... Acho que nem o nascimento de uma espinha passa tão despercebido... Foi preciso que avisasses...
D. FLÁVIA
- Foi...
DOROTÉIA
- E já começam a me devorar... Várias no rosto, como desejavas... eu pensei que só fossem cinco... agora o jarro não quer me acompanhar...deve estar interessado em alguma mulher de pele boa... Eu não poderei mais ser leviana... (violenta para D. Flávia) Qual será o nosso destino?
(AS DUAS FICAM JUNTAS DE FRENTE PARA A PLATÉIA. MUITO ERETAS E UNIDAS. FAZEM A FUSÃO DE SUAS DESGRAÇAS. D. FLÁVIA CONTINUA SEGURANDO A MÁSCARA DA FILHA NA ALTURA O PEITO. E DÁ À COMPANHEIRA A MÃO LIVRE. SÃO PARA SEMPRE SOLIDÁRIAS.)
DOROTÉIA (num apelo maior)
- Qual será o nosso fim?
D. FLÁVIA (lenta)
- Vamos apodrecer juntas.
(FIM DO TERCEIRO E ÚLTIMO ATO.)