sexta-feira, 15 de agosto de 2008

LILI ARDEU COMO UMA ESTRELA

Ninguém confessa virtudes e repito: — a simples confissão de virtudes não interessa nem ao padre, nem ao psicanalista e nem ao médium, depois da morte. No caso particular desta sé­rie, não interessaria ao grande público. Meus leitores, se é que os tenho, acompanham minhas confissões com a mais cruel das expectativas. Ainda ontem, um colega, tomando cafezinho co­migo, perguntou-me, mexendo a xícara: — “Quando é que vais confessar tuas abjeções, tuas indignidades?”.
O amigo dizia isso num tom alegre ou, melhor dizendo, fal­samente alegre, frívolo e afetuoso. E, de fato, ou o sujeito con­fessa uma torpeza ou não está confessando nada. Por exemplo: — eu ia começar o capítulo de hoje dizendo o seguinte: — “A pior forma de solidão é a companhia de Flávio Rangel”. Tive este achado maligno e, ao mesmo tempo, comecei a questionar comigo mesmo. Por que Flávio Rangel, se provei muito pouco de sua companhia, muito pouco de sua solidão?
Eis a verdade: — conheço o jovem diretor teatral muito de passagem. Quase diria que a nossa relação pessoal se faz, escas­samente, na base de um “olá”, de um “como vai?”, de um “tu­do ok?”. Fora esse cumprimento de café, esquina e bar, não há mais nada entre nós. Minto: — há. Existe algo mais.
É a irritação. E essa irritação vale como um vínculo mais denso e mais ativo. (Não sei se também o irrito.) De vez em quan­do começo a especular: — por que me irritaria Flávio Rangel? Será a sua simples figura? É um rapaz, mas tem os cabelos bran­cos, como se ele próprio os repassasse de alvaiade. Não seria isso a origem da minha pobre e corrosiva irritação. Já sei: ele opera na minha área, que é o teatro. Sim, diante de mim, está o teatro, como um horizonte obsessivo e devorador.
(Mais para a frente contarei as minhas fundas e inconsoláveis frustrações dramáticas.) Ao mesmo tempo, sei que Flávio Rangel, como o Carlinhos de Oliveira, é de uma fragilidade cris­pada, indefesa e — penso, penso e descubro a palavra — lanci­nante. O êxito, o brilho, os rompantes, as poses, tudo, tudo é um disfarce de uma orfandade sem esperança (como a do Carli­nhos de Oliveira).
E eu ia falar da aridez de sua companhia, acrescentando mais ou menos o seguinte: — Flávio Rangel é diretor, não de teatro, mas de préstito carnavalesco. Devia fazer o carro-chefe dos Fenianos ou Tenentes e desfilar de cartola, na terça-feira gorda etc. etc. Eu ia dizer isso e mais, muito mais. Ocorreu, porém, uma coincidência: — o Cony bate o telefone para mim. Conversa daqui, dali, e o amigo me conta uma passagem de Flávio Ran­gel. Um pequeno incidente que, entretanto, deu uma dimen­são inesperada ao jovem diretor. E, então, descobri que ele tem um coração mais puro e mais atormentado do que se imagina. Em capítulo posterior direi como o artista agiu e reagiu no epi­sódio referido.
E assim, às pressas, tive que recriar, que pintar, que vestir, que calçar um novo Flávio Rangel. Mas tenho um compromisso com o assunto anterior e volto a Lili. Parei nos seus gritos. Ela gritava e ninguém se espantou. O que cada um imaginou é que Lili estava apanhando de cinto, como das outras vezes. Mas nem sempre foi de cinto. Numa das surras o velho deu-lhe uma moe­da e disse: — “Vai comprar uma vara de marmelo”. E, naquele dia, Lili apanhou com uma vara comprada por ela mesma.
Eu soube, depois, que a menina adorava o pai. Dizia uma tia surda que fazia o serviço da casa: — “É Deus no céu e o pai na Terra”. Nem se pense que os vizinhos tinham pena de Lili e raiva do pai. Absolutamente, ou por outra: — o único ódio da rua contra ele era o meu. O resto achava que o Fulano esta­va absolutamente certo. Lembro-me de alguém dizendo, lá em casa: — “Um pai tem que exemplar”. O homem vinha para a calçada e não fazia segredo: — “Prefiro ver minha filha mor­ta”. Pausa e continuava: — “Prefiro ver minha filha no caixão. Com tuberculoso não casa”. Lili, presente, baixava a vista, no enleio dos seus dezesseis anos.
(Em 1918, não havia família sem surras.) Lembro-me de um garoto, já taludo, que apanhava de chicote; um outro, de bengala; e as meninas, as mocinhas, de chinelo ou também de ben­gala e também de chicote. Duas, três, quatro gerações já são pas­sadas. E, outro dia, passo na casa de um amigo que me daria uma carona de carro. O amigo batia boca com o filho, um morenão, solidamente belo como um havaiano de filme. O rapaz queria um automóvel. Não trabalhava e queria um Fusca. O pai perdeu a cabeça: — “Olha que eu te...”. Nem precisou com­pletar. O filho encheu o tórax: — “Papai, fala mas não me en­costa a mão. Se me encostar a mão, te parto a cara”. Disse isso e abandonou a sala (e, ainda por cima, mascava chiclete). A mãe, presente, não disse uma palavra. Nem o pai, nem eu. E, súbito, o meu amigo corre para a janela. Pensei que fosse se matar. As golfadas vinham, tremendas. Lá do alto, do décimo andar, ele vomitou em cima das crianças que brincavam cá embaixo.
E Lili que, depois de cada surra, repetia, num gemido man­so: — “Papaizinho, papaizinho”. Mas repito: — naquela noite, Lili começou a gritar. Paulinho Varanda, na esquina, pensou no velho brabo. Mas o pai saíra para a sessão espírita. No portão lá de casa, o lábio tremendo, eu tinha vontade de atirar uma pe­dra na cabeça do pai. De repente, a tia surda chega na janela; esganiçou-se: — “Lili está morrendo! Lili está morrendo!”. Foi, por toda a rua, um corre-corre. E quando os primeiros chega­ram, a própria menina irrompia, em fogo. Ensopara o vestido em querosene, riscara um fósforo e agora ardia como uma es­trela. Viu o Paulinho e correu para ele. Mas o rapaz, na agilida­de do pânico, deu um furioso salto para trás. Alguém veio, por trás, e abafou as chamas com um cobertor.
Foi levada para o quarto. Do armazém, da farmácia, liga­ram para a Assistência. Mas, quando a ambulância chegou, esta­va morta. Eu me lembro do Paulinho Varanda. As espinhas ex­plodiam na sua cara. Vejo também a entrada do pai no quarto. Posteriormente, toda a rua o chamou de “forte”, porque não teve uma lágrima. Limitou-se a dizer ou, por outra, a declamar, de fronte alta: — “Foi Deus, foi Deus”. Na cama, a gordura es­corria, varava o colchão e pingava no soalho. A tia surda perce­beu e pôs uma bacia debaixo da cama. E. por muito tempo, aque­la goteira ficou tinindo na bacia. Lili foi minha primeira paixão. E morreu negra.

[13/12/1967]

Nenhum comentário: