sábado, 23 de agosto de 2008

A VÍTIMA OBRIGATÓRIA

O ser humano é o único que se falsifica. Um tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de preservar, até morrer, o seu nobilíssimo rugido. E assim o sapo nasce sapo e como tal envelhece e fenece. Nunca vi um marreco que virasse outra coi­sa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifi­ca e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo.
Não sei se me faço entender. Mas vamos lá. Por exemplo: Capri. Para nós, Capri não é uma paisagem, mas uma atitude. Ninguém vai a Capri ver a sua possível beleza. O que importa é a nossa postura diante da ilha. Chegamos lá e armamos o qua­dro plástico de nosso gesto e de nossa ênfase (e, realmente, es­quecemos de sentir a volúpia paisagística).
E nem precisamos mudar de continente. Aqui mesmo, fa­zemos as nossas falsificações. Temos o Antonio’s, um restau­rante que não é restaurante, mas uma simples atitude. Sua bebi­da não nos atrai, nem a sua comida. Vai-se lá por motivos ideo­lógicos, literários, e não alcoólicos, vejam bem, não alcoólicos. No Antonio’s come-se com desprazer e bebe-se com tédio. Mas fazemos a nossa pose, e basta.
Freqüentar certos lugares é uma maneira de ser intelectual ou socialista sem redigir uma frase e sem arriscar uma opinião. Do mesmo modo, o freguês do Paissandu (e pelo simples fato de ir ao Paissandu) toma uns ares de inteligência e de vanguar­da. Mais adiante escreverei sobre a geração do Paissandu. E, as­sim, falsários da vida, dos valores da vida, vamos fazendo as nos­sas poses políticas, ideológicas, literárias, religiosas etc. etc.
(Outro dia vou ao Antonio’s e vejo lá um rapaz, meu co­nhecido. Ele atropelava senhoras e mesas. De vez em quando varria o restaurante com uma saraivada de palavrões. Notei que as senhoras presentes não estavam assustadas com a pornogra­fia ululante. E, de repente, o pau-d’água me viu e sentou-se a meu lado. Fala comigo e eu percebo tudo. Estava maravilhosamente sóbrio e repito: — não bebera nem água da bica. Simulava o pileque e fingia até a baba que pendia, elástica, do lábio caído.)
Fiz a meditação acima, mas preciso ressalvar: — não estou dizendo, em absoluto, que o nosso tempo inventou os falsários de ambos os sexos. Cada época tem os seus, e repito: — cada época apresenta suas formas de falsificação. Por exemplo: — o ano de 1919. Era ainda o Rio do fraque e do espartilho (um e outro induziam ao sublime. Até o “bom-dia” era de uma ên­fase insuportável).
No Rio de 1919 ainda se respeitava a mulher grávida. Em qualquer lugar, nos bondes, nas esquinas, nas salas, a mulher grávida era uma figura sagrada. Quando subia num bonde apinhado, todos se arremessavam. Ah, não, não acontecia como agora. Outro dia vou eu num ônibus superlotado. Pára o ôni­bus e entra uma gravidez de oito ou, até, de nove meses. Vejam bem: — latagões imensos continuaram solidamente sentados. Ninguém lhe ofereceu um mísero cantinho.
E pior: — ainda a enxotaram, aos berros, para frente (sua fecundidade obstruía a passagem). Assim a mater espremida foi até o fim. Eu já imaginava que o garoto ia nascer ao primeiro solavanco. Tal descaro seria inviável em 1919. Naquele tempo, tirava-se o chapéu à mulher grávida como a uma igreja. (Hoje, não usamos nem o chapéu, nem o respeito.)
Volto à minha infância. Em 191.9, morava perto de minha casa o “casal feliz”. Aos oito anos de idade, eu não conhecia a dúvida. Não questionava nada e acreditava em tudo. Só tinha certezas. E, se diziam que era o “casal feliz”, tinha de ser feli­císsimo.
Na pior das hipóteses, seria “casal feliz” por comparação. Na rua Alegre e, por toda a Aldeia Campista, eram incontáveis os desastres matrimoniais. Eu próprio vi, certa vez, uma mu­lher bater no marido com o salto do sapato. O marido limitava-se a uma reivindicação: — “Bate, mas não grita!”. Lembro-me de uma outra batalha conjugal. O marido berrava: — “Te bebo o sangue!”.
O curioso é que os casais brigavam muito e ninguém se se­parava. Sei, hoje, que há, em qualquer casamento, uma vítima obrigatória. E a continuidade matrimonial exige que a vítima aceite seu destino e sua função. Pois bem: — no “casal feliz” não havia tal vítima. Casados há 25 anos, e já às portas das bo­das de prata, marido e mulher eram de uma felicidade recíproca e total. Ao cair da tarde, lá vinham os dois. Passeavam de uma esquina a outra esquina, e de mãos dadas, como namorados.
Lembro-me de uma vizinha, gorda e patusca como uma viú­va machadiana, que costumava dizer: — “Filho atrapalha”. Pois bem: — até nisso os dois tiveram sorte. Não que evitassem. Ou o marido ou a mulher recebera da natureza o privilégio da este­rilidade. Aquele amor perfeito, irretocável, não merecia um cho­ro de criança. De fora, só a criada. Mas esta era (mais uma gra­ça) muda. E o fato é que o “casal feliz” tinha uma intimidade absoluta, inviolável. Minto. Fora a muda, apanhada num asilo, alguém mais violava tamanha solidão: — eu.
E de fato o “casal feliz” abria as portas para mim e só para mim. Foi ela quem me chamou. Eu ia passando e ouvi a voz: — “Menino, vem cá, menino”. Perguntou meu nome e disse: — “Você tem a cabeça grande. Deve ser inteligente”. E me cha­mou para dentro; e apanhou na fruteira, para mim, uma tange­rina. No dia seguinte conheci o marido. Ele perguntou risonhamente: — “Esse é que é o Nelson?”. Desta vez a mulher ofere­ceu-me goiabada.
Todos os dias eu ia para lá. E, realmente, era um amor iné­dito na rua e no bairro. Só uma vez os dois estiveram a um milí­metro da primeira e última briga. Foi na terça-feira gorda de 1919. Ele fora trabalhar na sua oficina de ourives (era ourives), mas ficou de levá-la para ver os préstitos (ambos torciam pelos Tenentes do Diabo). E, quando o marido chegou, já não dava mais tempo. Por um momento, ela quis ficar triste, chorar tal­vez o fracasso da terça-feira gorda. Mas reagiu e disse, já sorrin­do: — “Fica para o ano que vem. No ano que vem nós vamos”. No dia seguinte, o ourives foi dizer para toda a rua que a mu­lher era uma santa.
E, de repente, ela cai doente. Na primeira fase não teve dor, apenas fraqueza. O próprio hálito a cansava. Passava os dias na cama. Gemia sem desespero: — “Estou tão cansada”. E, depois, passou a falar o mínimo, porque a voz já não suportava o peso das palavras. Só um mês depois deu-se nome à doença: — “ane­mia perniciosa” (devia ser câncer). Eu ia muito lá, fascinado por esse martírio. Na véspera de morrer, estávamos nós três no quar­to. Ela suspirou para o marido: — “Só tenho pena de deixar vo­cê. Fui tão feliz, tão feliz”. Houve um momento em que o mari­do se levantou para ver não sei o que lá dentro. Ela o acompa­nha com o olhar; e quando ele sumiu, diz, ofegante: — “Como é chato meu marido! Como é chato!”. Ou por outra: — não disse “chato”, que era, na época, palavrão. Disse “cacete”. E repe­tiu: — “Como é cacete! Não suporto mais meu marido!”. Pas­sara 25 anos simulando felicidade, assim como o falso bêbado do Antonio’s finge até a baba do pileque.

[27/12/1967]

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