Almocei, ontem, com o meu amigo Celso Bulhões da Fonseca. Digo “amigo” e sinto que a palavra vem sofrendo um aviltamento progressivo. Dirá alguém que, com o tempo e o uso, todas as palavras se degradam. Por exemplo: — liberdade. Outrora nobilíssima, passou por todas as abjeções. Os regimes mais canalhas nascem e prosperam em nome da liberdade.
Hoje, “liberdade” é um palavrão que, como tal, não devia entrar em casa de família. Mas, vejamos “o amigo”. Essa palavra e essa figura sofrem, do Paraíso aos nossos dias, um desgaste hediondo. Perdemos todo o cuidado seletivo. O amigo deixou de ser uma maravilhosa opção. Ainda outro dia, estava eu com um pulha, realmente pulha, da cabeça aos sapatos. Apresentei-o assim: — “Aqui o meu amigo Fulano”. Não era “o amigo”, não podia ser “o amigo”. E mal terminou a apresentação, dei-me conta de que não fazemos outra coisa senão corromper o nosso vocabulário.
Eis o que eu queria dizer: — para mim, a amizade continua sendo o grande acontecimento. Todos os sábados, lá vou eu almoçar com o Hélio Pellegrino. Lembro-me de que, uma vez, teve o amigo uma luminosíssima idéia. Diz: — “Vamos tomar vinho”. Assim é o Hélio. Mineiro e calabrês, tem, por vezes, a volúpia européia do vinho. Abriu uma garrafa e, com um olho rútilo, um olho dionisíaco, disse: — “Bebe!”. Bebi para fazer-lhe a vontade, Na verdade, sou o homem da água da bica. Mas o Hélio bebeu, bebeu. E, de repente, pôs a mão no meu braço. Disse exatamente isto: — “Nelson, você é um dos meus amigos fundamentais”.
Ora, eu atravessaria três desertos para ouvir alguém dizer isso. E, então, percebi uma das verdades mais lindas da terra: — o amigo é o santo. Não sei se me entendem e, se não me entendem, paciência. Mas o fato de o Hélio estar falando e eu a ouvi-lo, este simples fato era a nossa salvação. Ali, naquele momento, ele foi um santo e eu outro santo. Vejam vocês: — dois santos bebendo aquele vinho translúcido e também santificado.
(Alguém dirá que tudo isso é piegas, gratuito, discutível etc. etc. Não faz mal.) Volto ao meu almoço com o Celso Bulhões da Fonseca. Fiz a introdução acima para concluir: — Celso é, precisamente, o amigo. Na véspera, batera o telefone para mim: — “Vamos almoçar amanhã?”. E ria, ria ao fazer o convite. Era, ali, na alegria da amizade, o límpido menino, o menino de cristal. “Vamos, vamos”, respondi. “Onde?”. Disse-lhe o primeiro nome: — “Nino”.
No dia seguinte, passou o Celso pela minha porta e levou-me. Ao meio-dia e pouco entrávamos no restaurante. Ocupamos uma mesa lá do fundo. Nem sei o que comemos (eu, um bife). E conversamos, simplesmente conversamos. Perto de nós instalaram-se vários casais; mais adiante uma família imensa fazia alarido. Mas não importa. Éramos amigos e fundamos naquela mesa a nossa solidão (a perfeita solidão há de ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real).
E conversamos de tudo. Houve um momento em que o Celso abriu o coração. Fala: — “A morte do meu pai”. E acrescenta, como quem pede desculpas: — “Ainda não me recuperei”. Por um momento, tive vontade de pedir-lhe: — “Nem se recupere, nunca, nunca”. Eis a nossa degradação: — sofrer menos, cada vez menos, até esquecer. Desde menino sou um fascinado pela grande dor (acho que a grande dor não passa jamais). E não disse nada ao Celso, não lhe fiz o apelo: — “Sofra, sofra”.
De repente ele diz, chorando: “Ainda choro”. Foi aí que senti, como na casa do Hélio Pellegrino, que éramos dois santos. Na mesa adiante, a tal família imensa detonava todas as suas gargalhadas. Mas podia vir o mundo abaixo. Tudo era secundário, irrelevante, nulo. Mudei de assunto e fiz mal. O certo seria tirar partido da nossa tristeza (eu também pensava na morte do meu pai). Temos um medo tão idiota do sofrimento, e são tão poucos os nossos instantes de tristeza total! Como é bom o doer de velhas penas.
Diante do Celso eu pensava na minha infância. Naquele tempo não entendia que o adulto chorasse. Aos sete anos eu estava certo de que só as crianças choravam. (Vira uma vizinha, d. Laura, gritando pela morte da filha. Mas, curioso! As mulheres pareciam-me outras tantas crianças. Adulto era o homem.) Só mais tarde, já em Copacabana, vi um homem chorando: — meu pai.
Morávamos, então, na rua Inhangá, atrás do Copacabana Palace (era nosso vizinho um garoto, Basílio, hoje dr. Basílio, médico famoso). Meu pai acabara de fundar um jornal, A Manhã, que toda a cidade lia. Eu estava na redação, esperando a carona do meu pai, quando o telefone o chamou. Alguém dizia: — “Venha que Dorinha piorou”. Dorinha, Dora, era minha irmã de oito meses. Meu pai apanha o chapéu, a bengala; chama: — “Vamos”. A redação era na rua Treze de Maio. Descemos e o automóvel, um Ford de bigode, nos levou.
No caminho não pensei na morte. Dizia de mim para mim: — “Nós não morremos”. Nem meus irmãos, nem meus pais, ninguém morria lá em casa, só os outros. Chegamos à casa e, já da porta, ouvíamos o choro. Meu pai salta correndo. Entra berrando: — “Que é isso? Que é isso?”. Largou no chão o chapéu, a bengala. Uma voz está dizendo: — “Ela morreu”. Era a notícia sem ponto de exclamação. E a voz tão doce e sem lágrimas. Eis a pergunta que ainda me faço, sem lhe achar resposta: — “Quem nos deu a notícia?”. Foi alguém de quem não me lembro, sim, alguém que não sofria e apenas informava.
Vi no meu pai primeiro a cara do espanto; e logo explodiu o choro. Meus irmãos também choravam, e minha mãe, e as empregadas. Mas meu pai não chorava como os outros. Era o grande choro. E, de repente, a rua se encheu do seu gemido enorme. Um menino veio correndo lá da casa de esquina, trazido pelo choro do meu pai. E, por um momento, senti vergonha, humilhação. Não queria que o menino visse o meu pai gritando.
Meu irmão Roberto repetiu, horas e horas: — “É a primeira morte. A primeira morte”. Levantava-se, vagava pelas salas; voltava: — “É o primeiro que morre”. Eu, quieto num canto, pensava que nós também morríamos. Vinte anos depois escrevi a peça Vestido de noiva. No segundo ato uma das noivas, Alaíde, suspira: — “Enterro de anjo é mais bonito do que de gente grande”. Era a nostalgia de minha irmã Dorinha. Morreu com oito meses; e sua agonia, quase imperceptível, foi leve, tão leve como a euforia de um anjo.
[30/12/1967]
segunda-feira, 1 de setembro de 2008
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