segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A EUFORIA DE UM ANJO

Almocei, ontem, com o meu amigo Celso Bulhões da Fon­seca. Digo “amigo” e sinto que a palavra vem sofrendo um avil­tamento progressivo. Dirá alguém que, com o tempo e o uso, todas as palavras se degradam. Por exemplo: — liberdade. Ou­trora nobilíssima, passou por todas as abjeções. Os regimes mais canalhas nascem e prosperam em nome da liberdade.
Hoje, “liberdade” é um palavrão que, como tal, não devia entrar em casa de família. Mas, vejamos “o amigo”. Essa pala­vra e essa figura sofrem, do Paraíso aos nossos dias, um desgas­te hediondo. Perdemos todo o cuidado seletivo. O amigo dei­xou de ser uma maravilhosa opção. Ainda outro dia, estava eu com um pulha, realmente pulha, da cabeça aos sapatos. Apresentei-o assim: — “Aqui o meu amigo Fulano”. Não era “o amigo”, não podia ser “o amigo”. E mal terminou a apresenta­ção, dei-me conta de que não fazemos outra coisa senão cor­romper o nosso vocabulário.
Eis o que eu queria dizer: — para mim, a amizade continua sendo o grande acontecimento. Todos os sábados, lá vou eu almoçar com o Hélio Pellegrino. Lembro-me de que, uma vez, teve o amigo uma luminosíssima idéia. Diz: — “Vamos tomar vinho”. Assim é o Hélio. Mineiro e calabrês, tem, por vezes, a volúpia européia do vinho. Abriu uma garrafa e, com um olho rútilo, um olho dionisíaco, disse: — “Bebe!”. Bebi para fazer-lhe a vontade, Na verdade, sou o homem da água da bica. Mas o Hélio bebeu, bebeu. E, de repente, pôs a mão no meu braço. Disse exatamente isto: — “Nelson, você é um dos meus ami­gos fundamentais”.
Ora, eu atravessaria três desertos para ouvir alguém dizer isso. E, então, percebi uma das verdades mais lindas da terra: — o amigo é o santo. Não sei se me entendem e, se não me en­tendem, paciência. Mas o fato de o Hélio estar falando e eu a ouvi-lo, este simples fato era a nossa salvação. Ali, naquele mo­mento, ele foi um santo e eu outro santo. Vejam vocês: — dois santos bebendo aquele vinho translúcido e também santificado.
(Alguém dirá que tudo isso é piegas, gratuito, discutível etc. etc. Não faz mal.) Volto ao meu almoço com o Celso Bulhões da Fonseca. Fiz a introdução acima para concluir: — Celso é, precisamente, o amigo. Na véspera, batera o telefone para mim: — “Vamos almoçar amanhã?”. E ria, ria ao fazer o convite. Era, ali, na alegria da amizade, o límpido menino, o menino de cris­tal. “Vamos, vamos”, respondi. “Onde?”. Disse-lhe o primei­ro nome: — “Nino”.
No dia seguinte, passou o Celso pela minha porta e levou-me. Ao meio-dia e pouco entrávamos no restaurante. Ocupa­mos uma mesa lá do fundo. Nem sei o que comemos (eu, um bife). E conversamos, simplesmente conversamos. Perto de nós instalaram-se vários casais; mais adiante uma família imensa fa­zia alarido. Mas não importa. Éramos amigos e fundamos naquela mesa a nossa solidão (a perfeita solidão há de ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real).
E conversamos de tudo. Houve um momento em que o Celso abriu o coração. Fala: — “A morte do meu pai”. E acres­centa, como quem pede desculpas: — “Ainda não me recupe­rei”. Por um momento, tive vontade de pedir-lhe: — “Nem se recupere, nunca, nunca”. Eis a nossa degradação: — sofrer menos, cada vez menos, até esquecer. Desde menino sou um fascinado pela grande dor (acho que a grande dor não passa jamais). E não disse nada ao Celso, não lhe fiz o apelo: — “So­fra, sofra”.
De repente ele diz, chorando: “Ainda choro”. Foi aí que senti, como na casa do Hélio Pellegrino, que éramos dois san­tos. Na mesa adiante, a tal família imensa detonava todas as suas gargalhadas. Mas podia vir o mundo abaixo. Tudo era secundá­rio, irrelevante, nulo. Mudei de assunto e fiz mal. O certo seria tirar partido da nossa tristeza (eu também pensava na morte do meu pai). Temos um medo tão idiota do sofrimento, e são tão poucos os nossos instantes de tristeza total! Como é bom o doer de velhas penas.
Diante do Celso eu pensava na minha infância. Naquele tem­po não entendia que o adulto chorasse. Aos sete anos eu esta­va certo de que só as crianças choravam. (Vira uma vizinha, d. Laura, gritando pela morte da filha. Mas, curioso! As mulhe­res pareciam-me outras tantas crianças. Adulto era o homem.) Só mais tarde, já em Copacabana, vi um homem chorando: — meu pai.
Morávamos, então, na rua Inhangá, atrás do Copacabana Palace (era nosso vizinho um garoto, Basílio, hoje dr. Basílio, médico famoso). Meu pai acabara de fundar um jornal, A Ma­nhã, que toda a cidade lia. Eu estava na redação, esperando a carona do meu pai, quando o telefone o chamou. Alguém di­zia: — “Venha que Dorinha piorou”. Dorinha, Dora, era minha irmã de oito meses. Meu pai apanha o chapéu, a bengala; cha­ma: — “Vamos”. A redação era na rua Treze de Maio. Desce­mos e o automóvel, um Ford de bigode, nos levou.
No caminho não pensei na morte. Dizia de mim para mim: — “Nós não morremos”. Nem meus irmãos, nem meus pais, ninguém morria lá em casa, só os outros. Chegamos à casa e, já da porta, ouvíamos o choro. Meu pai salta correndo. Entra berrando: — “Que é isso? Que é isso?”. Largou no chão o cha­péu, a bengala. Uma voz está dizendo: — “Ela morreu”. Era a notícia sem ponto de exclamação. E a voz tão doce e sem lágri­mas. Eis a pergunta que ainda me faço, sem lhe achar resposta: — “Quem nos deu a notícia?”. Foi alguém de quem não me lem­bro, sim, alguém que não sofria e apenas informava.
Vi no meu pai primeiro a cara do espanto; e logo explo­diu o choro. Meus irmãos também choravam, e minha mãe, e as empregadas. Mas meu pai não chorava como os outros. Era o grande choro. E, de repente, a rua se encheu do seu ge­mido enorme. Um menino veio correndo lá da casa de esqui­na, trazido pelo choro do meu pai. E, por um momento, senti vergonha, humilhação. Não queria que o menino visse o meu pai gritando.
Meu irmão Roberto repetiu, horas e horas: — “É a primeira morte. A primeira morte”. Levantava-se, vagava pelas salas; vol­tava: — “É o primeiro que morre”. Eu, quieto num canto, pensava que nós também morríamos. Vinte anos depois escrevi a peça Vestido de noiva. No segundo ato uma das noivas, Alaíde, suspira: — “Enterro de anjo é mais bonito do que de gente gran­de”. Era a nostalgia de minha irmã Dorinha. Morreu com oito meses; e sua agonia, quase imperceptível, foi leve, tão leve co­mo a euforia de um anjo.

[30/12/1967]

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