domingo, 25 de janeiro de 2009

TERRENO BALDIO

Ah, como é falsa a entrevista verdadeira! Não sei se me entendem. Eis o que eu queria dizer: — trabalho em jornal desde os treze anos e tenho 55 anos. Façam as contas. São 42 anos. Depois de 42 anos de redação, o sujeito acumulou uma expe­riência em nada inferior às obras completas de William Shakespeare.
Posso ir à boca de cena, alçar a fronte e anunciar para a platéia: — “Eu vi tudo e sei tudo”. Não vejam imodéstia nas mi­nhas palavras. Qualquer repórter de polícia, em fim de carrei­ra, terá a mesmíssima vidência shakespeariana. O mérito não é nosso, mas estritamente profissional. E, depois de 42 anos de vida jornalística, posso repetir: — nada mais cínico, nada mais apócrifo do que a entrevista verdadeira.
Não me esquecerei nunca do meu primeiro entrevistado. Se não me engano, era o diretor da Casa da Moeda (ou seria da Imprensa Nacional?). Mas não importam os títulos do homem, nem suas funções. O entrevistado é sempre o mesmo, varian­do apenas de terno e de feitio de nariz. No mais, há uma seme­lhança espantosa. Nem importa o assunto. Seja batalha de con­fete, ou Hiroshima, um cano furado ou os Direitos do Homem. O que vale é o cinismo gigantesco. O sujeito não diz uma pala­vra do que pensa, ou sente.
E o pior é o gesto, é a ênfase, é a inflexão. O diretor da Casa da Moeda, que também podia ser da Imprensa Nacional, recebeu-me no seu gabinete. Falou uma hora, ou mais. Hora e meia. Mas fosse um Bismarck e daria no mesmo. Ele se perfilava para falar, como se a sua palavra fosse o próprio Hino Nacional.
Fiz outras entrevistas, centenas, dezenas de entrevistas. E todas me deixaram a mesma sensação de cinismo. No fim de alguns anos, eis a minha certeza definitiva, inapelável: — nin­guém devia ser entrevistado, nem os santos. Até que, um dia, na crônica, ocorreu-me a idéia das “entrevistas imaginárias”. Aí estava a única maneira de arrancar do entrevistado as verdades que ele não diria ao padre, ao psicanalista, nem ao médium, de­pois de morto.
Fascinou-me a “entrevista imaginária”. Precisava, porém, arranjar-lhe uma paisagem. Não podia ser um gabinete, nem uma sala. Lembrei-me, então, do terreno baldio. Eu e o entrevistado e, no máximo, uma cabra vadia. Além do valor plástico da figu­ra, a cabra não trai. Realmente, nunca se viu uma cabra sair por aí fazendo inconfidências. Restava o problema do horário. Po­dia ser meia-noite, hora convencional, mas altamente sugesti­va. Nada do que se diz, ou faz, à meia-noite, é intranscendente. Boa hora para matar, para morrer ou, simplesmente, para dizer as verdades atrozes.
Fiz “entrevistas imaginárias” com jogadores, dirigentes de futebol, literatos. Ainda anteontem, o Antonio Callado foi meu convidado no terreno baldio. Mas eu sentia, de maneira obscu­ra, quase dolorosa, que faltava alguém no capinzal. “Mas quem?” — eis o que me perguntava. — “Quem?” E, súbito, um nome ilumina minhas trevas interiores: — “D. Hélder!”. De todos os vivos ou mortos do Brasil, era ele o mais urgente, o mais pre­mente. E, de mais a mais, uma batina é sempre paisagística.
Ontem, finalmente, houve, no terreno baldio, a “entrevis­ta imaginária”. À meia-noite, em ponto, chegava d. Hélder. Lá estava também a cabra, comendo capim, ou, melhor dizendo, comendo a paisagem. À luz do archote, começamos a conver­sar. Primeira pergunta: — “O senhor fuma, d. Hélder?”. Res­posta: — “A entrevista é imaginária?”. Acho graça: — “Ou o senhor duvida?”. E d. Hélder: — “Se é imaginária, fumo. Qual é o teu?”. Digo: — “Caporal Amarelinho”. Cuspiu por cima do ombro: — “Deus me livre! Mata-rato!”.
Faço a pergunta: — “Que notícias o senhor me dá da vida eterna?”. Riu: — “Rapaz! Não sou leitor do Tico-Tico nem do Gibi. Está-me achando com cara de vida eterna?”. No meu es­panto, indago: — “E o senhor acredita em Deus? Pelo menos em Deus?”. O arcebispo abre os braços, num escândalo pro­fundo: — “Nem o Alceu acredita em Deus. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta”.
Ele continuava: — “O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca encheu a barriga de ninguém”. D. Hélder fa­lava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E disse mais: — “Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordes­te? Vamos ao concreto. E a fome do Nordeste?”.
Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este: — “A fome do Nordeste é a fome do Nordeste”. D. Hélder esten­de a mão: — “Dá um dos teus mata-ratos”. Acendi-lhe o cigar­ro. D. Hélder não pára mais: — “Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu um santo, uma santa? Por exemplo: — Joa­na D’Arc. Já viu a nossa querida Joana D’Arc baixar no Nordes­te e dar uma bolacha a uma criança? As crianças lá morrem co­mo ratas. E o que é que esse tal de são Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!”.
Lanço outra isca: — “É verdade que o senhor vai para o Amazonas?”. Riu: — “Onde fica esse troço? Ó rapaz! Ainda nun­ca desconfiaste que a fome do Nordeste é o meu ganha-pão? E o Amazonas é terra de jacaré. Tenho cara de jacaré?”. Con­cordo em que ele não tem nenhuma semelhança física com um jacaré. Indago: — “E o comunismo?”.
D. Hélder conta: — “Quando estive nos Estados Unidos, bolei um cartaz assim: O arcebispo vermelho! Era eu o arcebis­po vermelho, eu!”. Insinuei a dúvida: — “Mas esse negócio de comunismo é meio perigoso”. Nova risada: — “Perigosa é a di­reita. A direita é que não dá mais nada. O arcebispo vermelho fez um sucesso tremendo nos Estados Unidos”.
Pede outro cigarro. Fez novas confidências: — “Sou ho­mem da minha época. Na Idade Média, eu era da vida eterna, do Sobrenatural. Fui um santo. É o que lhe digo: — cada época tem seus padrões. Benjamim Costallat, no seu tempo, era o Proust. O Charleston já foi a grande moda. Pelo amor de Deus, não me falem da vida eterna, que é mais antiga, mais obsoleta do que o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Hoje, a moda não é mais Benjamim Costallat, nem o Charleston. Entende? É Guevara. O santo é Guevara. E acompanho a moda”.
Desfechei-lhe a pergunta final: — “E a Presidência da República?”. D. Hélder respira fundo: — “Depende. A fome do Nordeste é o barril de pólvora balcânico. Fome, mortalidade in­fantil, muita miséria e cada vez maior. Chegarei lá”. Era o fim da “entrevista imaginária”. Despedi-me assim: — “Até logo, pre­sidente”. Respondeu: — “Obrigado, irmão”. E antes de partir fez a última declaração: — “Olha, as donas de casa têm uma sim­patia para curar dor de barriguinha em criança. Acredito mais na simpatia do que na ressurreição de Lázaro”. Disse isso e su­miu na treva.

[14/3/1968]

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