quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

A LEITORA DE MARCUSE

Não sei se vocês conhecem o meu amigo e editor Alfredo C. Machado. Vale a pena. Eu diria que de todos os brasileiros, vivos ou mortos, é o que mais viaja. De vez em quando, ligo para o seu escritório. Digo: — “Meu bem, cadê o Machado?”. A telefonista, mascando um imaginário chiclete, responde: — “Está em Tóquio”. Ou é Tóquio, ou Cingapura, ou Cairo, ou Berlim. E a telefonista fala como se Tóquio fosse ali na esquina.
Nas minhas insônias, que as tenho e crudelíssimas, pergunto, de mim para mim: — “Por que viaja tanto o Machado?”. E, de fato, é o único brasileiro que gosta de viajar. Os outros saem do país por imitação, pose ou tédio. Ao passo que, para o Alfredo, a viagem é um dom, uma graça, um destino. Estivemos juntos, ontem. E já não sei se hoje, agora, neste momento, ele não esta­rá desembarcando num porto qualquer, lá nos mares do Sul.
Mas falo, falo, e não digo o essencial. Assim como circula por todas as terras, idiomas e paisagens, o Machado tem o mes­mo e fácil trânsito em todos os jornais, em todas as redações. As nossas conversas são picotadas por telefonemas. E, então, o Machado pede licença e atende. Por exemplo: — ontem. Uma grã-fina liga para o meu amigo. Pedia uma notícia não sei em que jornal.
Ora, o Machado podia dizer, simples e lisamente: — “Eu não sou jornalista”. Mas ninguém pode exigir que uma linda se­nhora, e, de mais a mais, capa de Manchete, seja também racio­nal. Ela está acima de qualquer argumento ou raciocínio. E a grã-fina não se contentava com um único jornal. Seria pouco para a sua fome. Queria que a notícia saísse em todos. E era tal a afli­ção da capa de Manchete que o Machado quis saber: — “Mas o que é, afinal?”.
Imagino que, do outro lado da linha, a grã-fina tenha baixa­do a vista, escarlate de modéstia; e disse: — “Estou lendo Marcu­se”. Houve uma pausa, um suspense. No seu espanto, Machado pergunta: — “Como? Como?”. A outra suspira: — “Estou len­do Marcuse”. E queria que o Machado, que tinha tantas amiza­des jornalísticas, mandasse publicar que ela, d. Fulana de Tal, lia Marcuse. Era preciso que o mundo, o Brasil, De Gaulle, as amigas, as inimigas, os credores, todos, todos soubessem que ela passava as horas e os dias lendo e relendo Marcuse.
Machado saiu do telefone num radiante espanto; e me perguntava: — “Como pode? Como pode?”. Eu, numa curiosida­de aflita, queria o nome e, se possível, os dados biográficos da leitora de Marcuse. E quando soube do nome, fiz um risonho escândalo: — “Mas é ela? Ela?”. Sim, era “ela”. E, já num inte­resse profundo, perguntei mais: — “E vais dar a notícia?”. Meu amigo admitiu que sim. Estava disposto ao alegre sacrifício de promover uma leitura e uma leitora tão “pra frente”.
E o leitor, que é um marginal do grã-finismo, há de pedir também o nome e, se possível, até uma descrição física da pes­soa. Vamos por partes: fisicamente, não sei se é bonita; talvez o seja, talvez não. Ou por outra: — eu diria que é uma falsa bo­nita, como costumam ser as grã-finas. Já a vi em várias festas. Seu decote lembra o de Elizabeth Taylor. Como se sabe, depois dos vários casamentos, a célebre atriz engordou. E a leitora de Marcuse tem, precisamente, o decote robusto, bem alimenta­do, de Elizabeth Taylor.
Estou agora em dúvida. Não sei se terei outras informações “físicas” sobre a nossa heroína. Ah, já me lembro. Tempos atrás, fui ao Estádio Mario Filho ver um Fla-Flu qualquer. Coincidiu que entramos juntos: — eu, por uma borboleta; a grã-fina, por outra borboleta. Mas que faria ela em tal lugar? Realmente, en­tende tanto de futebol que, entrando no ex-Maracanã, é capaz de perguntar, nervosamente: — “Quem é a bola? Quem é a bola?”.
Outra coincidência: — eu, ela e o marido (quinto marido) subimos pelo mesmo elevador. Estávamos amontoados num es­paço sufocante e numa promiscuidade vagamente abjeta. Justa­mente, eu ia lado a lado com a leitora de Marcuse (que ainda não era leitora de Marcuse). Houve um momento em que a olhei, de esguelha. E, súbito, fiz a observação que jamais ocorreu a ninguém: — ela tem narinas de cadáver!
Entendem? Pode ser bonita, e eu admito que o seja. Mas suas possíveis virtudes, físicas e espirituais, não alteram este fato iniludível, fato que está acima de qualquer dúvida, de qualquer sofisma: — tem narinas de cadáver. E, ali, no elevador, antes de chegar ao sexto andar, eu percebia toda a verdade. A leitora de Marcuse, contando com o atual, teve cinco maridos e só se desquitou do primeiro. Nos restantes casamentos, dispensou ou esqueceu a formalidade do desquite. E o que perturbou sua con­vivência com os quatro maridos anteriores foram, ouso presu­mir, as narinas de cadáver.
Eu já não ia dizer-lhe o nome. E, agora, muito menos, já que existe um claro impedimento nasal. Feita a ressalva, volto ao Machado. Saí do seu escritório e, dois dias depois, estou pesquisando as seções sociais. No fim da leitura, eis a minha conclusão: — “O Machado trabalhou direito”. E, de fato, em todos os jornais, menos O Dia e Luta Democrática, estava a notícia borbulhando: — “A sra. Fulana de Tal está lendo Marcuse”.
Os simples, os românticos, os que não têm uma certa malí­cia não imaginam o que é, e como é, o grã-finismo. Dois dias depois, repasso as colunas sociais e lá está: — Fulana de Tal lê Marcuse; Beltrana de Tal lê Marcuse; Sicrana de Tal lê Marcuse. E, de repente, todas as grã-finas, vivas, mortas ou analfabetas, estão lendo Marcuse. A coisa é tão contagiosa como o foi, outrora, a escarlatina.
A grã-fina que “lê Marcuse”, e o confessa por toda a parte, está dando um atestado de ideologia. E, realmente, a conheci­da do Machado e minha é esquerdista e radical como as que mais o sejam. Quer violência, não abre mão de sangue. Acha que, sem luta armada, o desenvolvimento é uma absoluta e eterna impossibilidade. No mais, freqüentou todas as passeatas; foi vis­ta, numa sacada, atirando listas telefônicas. De outra feita, mar­chou pela Avenida. Só fez uma concessão à própria classe. Foi quando Vladimir mandou a multidão sentar. Ela desobedeceu para não sujar o vestido.
Por fim, o leitor há de querer um informe cultural sobre a nossa heroína. Seria desairoso eu próprio opinar. Prefiro dar a palavra aos fatos. Certa vez, fui a um sarau de grã-finos no Al­to da Boa Vista. Ela compareceu com as suas narinas de cadá­ver e seu decote de Elizabeth Taylor. Descobri entre os presen­tes o Daniel Caetano, moreno como um galã do neo-realismo italiano. E havia também um dominicano, vestido de branco, passava, solene, por entre os decotes. Era um imaculado pavão de arminho. Alguém falou de Molière. A então futura leitora de Marcuse teve uma dúvida: — “Esse Molière é brasileiro?”. Um pau-d’água grã-fino respondeu na hora: — “Cearense”.
[20/7/1968]

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