segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

O GUARDA-CHUVA NO MUNICIPAL

Cada época tem suas palavras encantadas. No tempo de Dumas velho, era “cáspite”. Ninguém sabe, até hoje, o que se esconde por trás de “cáspite”. Anos atrás, o poeta Murilo Men­des foi ao Municipal. Não me lembro se era ópera ou companhia francesa. No primeiro intervalo, lá foi ele para o corredor, fumar o seu cigarrinho. E, súbito, começa a ouvir uma série de vozes.
Não vozes das grã-finas que cacarejavam nas imediações. Não. Era uma única voz, absurda, fantástica, que repetia, junto ao seu ouvido, a mesma palavra: — “Cáspite! Cáspite!”. Demais a mais, não parecia um som terreno. Não era a primeira vez que um poeta tinha delírios auditivos como uma Joana D’Arc. Aqui abro parêntese, para referir um episódio que consta da história e lenda de Murilo Mendes.
Não sei em que dia ou ano, nem importa a data. Era o mes­mo Municipal e estava levando uma peça francesa (alguém diria, mais tarde, e textualmente, que era uma peça “chatérrima”). Lá foi o nosso Murilo para uma das primeiras filas. Olhou em torno e viu uma fauna impressionante de casacas e decotes. E cada decote ou casaca humilhava e agredia o seu traje de passeio, surra­do e sebento. Muito bem: — e, no fim dos primeiros cinco minu­tos, o poeta achava o texto irrespirável.
Não teve mais dúvidas. Abriu um guarda-chuva na platéia. Na frisa, o embaixador francês, de monóculo, já não entendia mais nada. O elenco, no palco, esbugalhou-se. Por um momento, não se ouviu aquela pronúncia perfeita, irretocável dos artistas de França. Era uma experiência inédita aquele guarda-chuva solitá­rio e sobrenatural. E não havia sequer uma goteira que o justifi­casse. Por outro lado, nenhum regulamento de teatro prevê a hi­pótese de um guarda-chuva. Que fazer diante de um fato novo, revolucionário e alucinatório?
Houve uns dois ou três minutos de um suspense geral e pânico. E, súbito, aquelas casacas e aqueles decotes começaram a aplaudir. Primeiro, uma meia dúzia de palmas ainda envergo­nhadas e pioneiras. Depois, explodiu a unanimidade. Pela pri­meira vez, um guarda-chuva foi longamente ovacionado, como um tenor italiano. Naquele tempo, o intelectual era louco (ho­je, o próprio Murilo é apenas um funcionário corretíssimo, que faz do livro de ponto a sua bíblia).
Volto ao “cáspite”. E, então, no corredor do Municipal, Murilo Mendes começa a repetir: — “Cáspite! Cáspite!”. Hou­ve um fluxo e refluxo de casacas e decotes. Não satisfeito, ele cai, entorna-se no ladrilho, como um fuzilado. No ar ficou aquela palavra em flor: — “cáspite, cáspite”. A queda do poeta impres­sionou menos do que o som apavorante. As senhoras pergun­tavam umas às outras: — “Por que cáspite?”. Era a pergunta que todos faziam sem lhe achar resposta. O fato é que a exumação de uma gíria velhíssima deflagrou todo um processo de terror coletivo.
Mas “cáspite” é, repito, do tempo do Dumas velho. Outra palavra que vem injetada de passado é “biltre”. Se perguntar­mos às novas gerações o que é “biltre”, nem todos saberão res­ponder. Mas reparem como o som é fascinante. Ninguém cha­ma mais ninguém de “biltre”. Em nosso repertório de palavrões, falta este. E alguém que, em nosso tempo, fosse chamado de “biltre” não sentiria o ultraje fatal, a mácula indelével.
Todavia, há uma palavra que não passa, que não envelhe­ce, uma palavra que mantém, através dos tempos, a sua eficácia mortífera. Ei-la: — “canalha”. Na minha confissão de ontem ou anteontem (já não me lembro mais), tratei do destino da inteli­gência. Sem nenhum dramatismo, e apenas com a maior isen­ção e objetividade, observei um fato patético do nosso tempo. Referi-me à “inteligência degradada”. Outro dia passou por mim um pintor estimadíssimo. Alguém cochichou: — “Olha um ca­nalha plástico!”. E, de repente, vi tudo. Sim, do cinema, do tea­tro, da pintura, da poesia, do romance — sai todo um elenco de canalhas.
O leitor, perplexo, há de perguntar: — “Mas como e por quê?”. É preciso explicar: — são os artistas que, por motivos políticos, ideológicos, rolam de abjeção em abjeção. E assim des­ponta, como uma nova classe, a dos “canalhas da inteligência”. Fiz a pura constatação e citei dois exemplos: — o poeta Éluard, que se recusou a assinar um pedido de clemência para um outro poeta, condenado à morte. E o poeta foi enforcado. Outro exemplo: — de Sartre, que, depois do extermínio de Pasternak, dizia: — “Um escritor que não é lido em sua própria língua”. Não era lido porque a polícia russa não deixava. E Sartre acha­va corretíssimo o assassinato de um maravilhoso artista.
Eu poderia ir buscar, na Cortina de Ferro, centenas de exemplos. E é óbvio que a inteligência passa, em nossa época, por um processo de desumanização. Ninguém era mais huma­no do que o poeta, o romancista, o pintor, o escultor. O artista era o seu povo. E, hoje, nós vemos o nosso intelectual dando vivas a Cuba, outros que se esgoelam pelo Vietnã. Populações inteiras do Brasil apodrecem na fome. E, aqui, não damos um passo sem tropeçar num vietcong da inteligência brasileira. Dane-se a nossa mortalidade infantil! Artistas plásticos, poetas, roman­cistas escrevem “muerte” em seus cartazes. Traem sua língua. Traem seu povo. Sim, podemos falar numa inteligência desu­mana, tão pouco brasileira e de uma abjeta alienação.
Fiz toda a meditação acima pensando em Oduvaldo Viana Filho. Se vocês não o conhecem, é pena. Eu disse Oduvaldo Viana Filho e já retifico: — o Vianinha. Sua estrutura doce exi­ge o diminutivo. Dos nossos artistas, é o menos sombrio, o me­nos neurótico, o menos ressentido. O nosso teatro está cheio de víboras. Pois o Vianinha é a antivíbora.
Feito este lírico retrato de lambe-lambe, passo aos fatos. Ontem, eu o encontrei no gabinete de Beatriz Veiga, diretora do Teatro Nacional de Comédia. O Vianinha ia atrás de umas bambolinas para a estréia de Cordélia. E, pela primeira vez, eu o vi sem a luminosidade do otimista. Sim, o dramaturgo estava a meio-pau, exalando uma cava depressão. Ao ver-me, chamou-me de “senhor”. (E, então, senti que se cavara entre mim e ele o abismo de várias gerações.) Simplesmente, o Vianinha está numa torva desilusão do teatro. Parece que suas últimas tenta­tivas teatrais não foram bem-sucedidas. E o Vianinha, em conversa comigo, falou em largar o teatro. Quer ser outra coi­sa. Deprimido, chegava ao patético, raiando pelo sublime. Quan­do falou em largar o teatro, tive ímpetos de aplaudi-lo como na ópera: — “Bravos! Bravíssimo!”. Quase, quase lhe disse: — “Seja vendedor de chicabon, de laranja, de cachorro-quente ou de grapete. Mas não seja poeta, não seja artista, não seja in­telectual”. O que importa é não ser nem Sartre, nem Éluard.

[24/4/1968]

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