sexta-feira, 13 de março de 2009

OS IDIOTAS CONFESSOS

Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: — tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: — o primeiro a identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem. No pas­sado, o marido era o último a saber. Sabiam os vizinhos, os cre­dores, os familiares, os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego para o óbvio ululante.
Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: — “Uma santa! Uma santa!”. Mas o tempo passou. Ho­je, dá-se o inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora, dia etc. etc.
Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha ne­nhuma ilusão. E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berra­va, atirando rútilas patadas: — “Eu sou um quadrúpede!”. Ne­nhuma objeção. E, então, insistia, heróico: — “Sou um quadrú­pede de 28 patas!”. Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota.
E o imbecil como tal se comportava. Nascia numa família também de imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssi­ma elite podia pensar. A vida política estava reservada aos “me­lhores”. Só os “melhores”, repito, só os “melhores” ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a deci­são política, o crime político.
Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humil­dade. Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da própria burrice. Não passava do quarto ano primá­rio. E quando cruzava com um dos “melhores”, só faltava lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. Nunca, nun­ca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além de limites fero­zes. No romance, ia até ao Maria, a desgraçada.
Vejam bem: — o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena acomodação entre ele e sua insignificância. E ad­mitia que só os “melhores” podem pensar, agir, decidir. Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia. Há coisa de três ou qua­tro anos, uma telefonista aposentada me dizia: — “Eu não te­nho o intelectual muito desenvolvido”. Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora! Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo.
De repente, os idiotas descobriram que são em maior núme­ro. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: — a vergonhosa inferioridade nu­mérica dos “melhores”. Para um “gênio”, 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota resol­veu testar o poder numérico: — trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma mas­sa de meio milhão.
Se o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria a audiência de um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pe­queno Maomé. Outrora, os imbecis faziam platéia para os “su­periores”. Hoje, não. Hoje, só há platéia para o idiota. É preci­so ser idiota indubitável para se ter emprego, salários, atuação, influência, amantes, carros, jóias etc. etc.
Quanto aos “melhores”, ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos, uma pose profética, só não previu a “invasão dos idio­tas”. E, de fato, eles explodem por toda parte: — são professo­res, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais. O di­nheiro, a fé, a ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas.
E, então, os valores da vida começaram a apodrecer. Sim, estão apodrecendo nas nossas barbas espantadíssimas. As hie­rarquias vão ruindo como cúpulas de pauzinhos de fósforos. E nem precisamos ampliar muito a nossa visão. Vamos fixar apenas o problema religioso. A Igreja tem uma hierarquia de 2 mil anos. Tal hierarquia precisa ser preservada ou a própria Igreja não dura mais quinze minutos. No dia em que um coroinha começar a questionar o papa, ou Jesus, ou Virgem Maria, será exatamente o fim.
É o que está acontecendo. Nem se pense que a “invasão dos idiotas” só ocorreu no Brasil. Se fosse uma crise apenas bra­sileira, cada um de nós podia resmungar: — “Subdesenvolvi­mento” — e estaria encerrada a questão. Mas é uma realidade mundial. Em que pese a dessemelhança de idioma e paisagem, nada mais parecido com um idiota do que outro idiota. Todos são gêmeos, estejam uns aqui, outros em Cingapura.
Mas eu falava de que mesmo? Ah, da Igreja. Um dia, ao voltar de Roma, o dr. Alceu falou aos jornalistas. E atira, pela janela, 2 mil anos de fé. É pensador, um alto espírito e, pior, uma grande voz católica. Segundo ele, durante os vinte sécu­los, a Igreja não foi senão uma lacaia das classes dominantes, uma lacaia dos privilégios mais hediondos. Portanto, a Igreja é o pró­prio Cinismo, a própria Iniqüidade, a própria Abjeção, a própria Bandalheira (e vai tudo com a inicial maiúscula).
Mas quem diz isso? É o Diabo, em versão do teatro de re­vista? Não. É uma inteligência, uma cultura, um homem de bem e de fé. De mais a mais, o dr. Alceu tinha acabado de beijar a mão de Sua Santidade. Vinha de Roma, a eterna. E reduz a Igre­ja a uma vil e gigantesca impostura. Mas se ele o diz, e tem ra­zão, vamos, já, já, fechar a Igreja e confiscar-lhe as pratas.
Cabe então a pergunta: — “O dr. Alceu pensa assim?”. Não. Em outra época, foi um dos “melhores”. Mas agora é preciso adular os idiotas, conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje, até o gênio se finge imbecil. Nada de ser gênio, santo, herói ou sim­plesmente homem de bem. Os idiotas não os toleram. E as frei­ras põem short, maiô e posam para Manchete como se fossem do teatro rebolado. Por outro lado, d. Hélder quer missa com reco-reco, tamborim, pandeiro e cuíca. É a missa cômica e Je­sus fazendo passista de Carlos Machado. Tem mais: — o papa visitará a América Latina. Segundo os jornais, teme-se que o pa­pa seja agredido, assassinado, ultrajado etc. etc. A imprensa dá a notícia com a maior naturalidade, sem acrescentar ao fato um ponto de exclamação. São os idiotas, os idiotas, os idiotas.
[19/8/1968]

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