quarta-feira, 15 de julho de 2009

FOME DE BEIJOS

Caiu das nuvens:
— Você tem filhos?
— Tenho.
Epaminondas pôs as mãos na cabeça:
— Mas não é possível! Não pode ser! — Engole em seco e pergunta: — Mas filho de que idade?
Resposta:
— Nove anos!
E ele:
— Sabe que eu estou com a minha cara no chão? Besta?
— Pois é.
O espanto de Epaminondas tinha a sua razão de ser. Co­nhecia Silene há três dias. Quase não sabia nada a respeito da garota; ou por outra: — sabia apenas que era viúva. Do ponto de vista físico, tinha um jeito adolescente, uma cinturinha frá­gil e fina, quadris estreitos e, numa palavra, um corpo de meni­na solteira. Assim que a viu, num ônibus apinhado, ele fez seus cálculos: “Essa menina perdeu o marido de cara, tem pouquís­sima experiência amorosa e deve ser gostosíssima”. Conversa­ra três vezes com Silene e, na última, recebe à queima-roupa a notícia que havia um filho de nove anos. De si para si, Epami­nondas deduz: — “Garoto de nove anos, não dá para atrapa­lhar”.

O MEDO

Na tarde seguinte, fez como das vezes anteriores: veio pa­ra o saguão do edifício, onde ela trabalhava, esperá-la. Depois, iria levá-la ao ponto de ônibus. Mas quando Silene saiu do ele­vador, no meio de um mundão de gente, e o viu, assustou-se. Olhava para um lado e outro, como se existisse um espião nas proximidades. Diante de Epaminondas pede: “Não faça mais is­so”. Epaminondas não entende: “Por quê?”. E ela, visivelmen­te nervosa: — “Alguém pode ver e não convém”. Epaminon­das pergunta:
— Mas você não é livre? Desimpedida? Ou tem algum compromisso?
Vacila antes de responder:
— Compromisso, propriamente, não tenho. Mas tenho um filho. Imagina se meu filho! Se desconfia!
Em pé, no meio da calçada, Epaminondas abre os braços: “Você liga tanto ao que diz um pirralho? Faça-me o favor!”. En­tão, caminhando para o poste de ônibus, Silene vem explican­do certas coisas de sua vida. Primeiro, faz a ressalva: “Eu tenho uma forte simpatia por você, mas...”. Explica que o filho, um menino taludo e desabusado, a tiranizava mais que o marido. Epaminondas, pasmo, exclamou: “Ora veja!”. Silene temia mais aquele julgamento infantil do que o próprio Juízo Final. Epami­nondas enfia as duas mãos nos bolsos:
— Mas isso é um absurdo! Não tem o menor cabimento!

O FILHO

Antes de apanhar o ônibus, ela vira-se para Epaminondas:
— Faz o seguinte: telefona amanhã para mim, depois do almoço. Eu te digo qualquer coisa.
Epaminondas despede-se e vem para o bar encontrar-se com seus amigos, no começo da noite. Impressionado, refere o ca­so da jovem mãe escravizada por um fedelho. Um dos colegas resume: “Histerismo!”. O outro decide: “Caso de psicanálise!”. Ao que um terceiro retruca: “Caso de tapona!”. Quanto ao pró­prio Epaminondas, coçava a cabeça, ainda inconformado:
— Que mágica besta!
Conforme o combinado, o rapaz, depois do almoço na tar­de seguinte, bate o telefone. Silene parecia desesperada. “Va­mos acabar!” Surpreso, Epaminondas ponderou sensatamente: “Acabar o que ainda não começou? Tem dó, meu bem!”. Sen­tiu, porém, que a garota estava num pânico real e profundo: “Ele desconfia, ouviu?”. Novo espanto irritado de Epaminondas:
— Desconfia de quê, ora bolas? Se não houve nada, se não fizemos nada?!
Angustiada ela explica: — “Meu filho adivinha! Quando ele põe os olhos em mim, lê o meu pensamento, percebe tudo!”. Epaminondas reage, violentamente:
— Vou te dizer o seguinte: se eu não te conhecesse, como te conheço, ia pensar que tu és uma doente mental! Palavra de honra!
Silene, chorando, propõe: “Se tu quiseres falar comigo pelo telefone, muito que bem. Pessoalmente não”.

AJUSTE

Embora indignado, submeteu-se. Não foi esperá-la mais. Em compensação, seus telefonemas eram quilométricos, durando nunca menos de quarenta minutos. Dia a dia, ele foi se toman­do de um rancor obtuso contra o menino. Esbravejava: — “Sa­be que essa autoridade de teu filho sobre ti é até imoral? No duro que é!”. Ela, que fora casada três meses apenas, confessava:
— Eu não respeitava o meu marido como respeito o meu filho!
Um dia, ele diz ao telefone:
— Queres saber de um negócio? Tu não gostas do teu fi­lho. Tens medo, o que é diferente. — E insistia, encarniçado: — Não é amor, é medo!
No trabalho, com as colegas, Silene admitia que o marido fora apenas o marido e nada mais. E acrescentava: “Epaminon­das, não, Epaminondas é amor no duro, amor batata”. Resumia para as companheiras interessadíssimas: “Meu primeiro amor”. Quem não via com bons olhos o romance telefônico era o che­fe. Sempre que passava e surpreendia a funcionária no telefo­ne, ele rosnava: “Débil mental!”. Até que, uma tarde, acontece o imprevisto: o menino aparece, no escritório, por conta pró­pria, sem avisar. Dir-se-ia que uma dessas intuições reveladoras o guiava. Coincidiu que, no momento, por infelicidade, Silene estivesse escravizada ao telefone e chorando. Na frente de to­do mundo, arranca o aparelho das mãos maternas. Nessa tarde, ela, numa pusilanimidade abjeta, larga o serviço, larga tudo, para acompanhar o menino. Que pavoroso ajuste de contas teria ha­vido, em casa, entre mãe e filho? Que dilaceramento recíproco e definitivo? Nunca se soube.

NECROTÉRIO

O fato é que, no seguinte telefonema de Epaminondas, Si­lene parecia outra. Despachou-o:
— Não me procure mais, nunca mais. Entre você e meu fi­lho, fico com meu filho.
Sentiu que a perdera. Durante uns vinte e cinco dias, en­tregou-se de corpo e alma ao desespero. Vivia continuamente na fronteira da loucura e do suicídio. E só não estourou os mio­los porque passava os dias, de um sol a outro sol, bêbado de todo, bêbado de cair. Um mês depois, ele vê, na rua, Silene com o menino. Pensa com ódio no coração: “É ele!”. Põe-se a segui-los, com uma obstinação de possesso. Súbito, a mãe e o filho estacam em cima do meio-fio. E, quando começam a atravessar a rua, Epaminondas apressa o passo e se coloca ao lado do ga­roto. Era um cruzamento de tráfego intensíssimo. No meio do caminho, os três vacilam. Vêm dois ou três automóveis em dis­parada. E, antes que chegassem ao outro lado, um lotação apa­nha a criança, em cheio, projetando-a longe.
Imediatamente, os outros carros freiam. Silene, no meio da rua, grita como louca, ao passo que Epaminondas desaparece. Levado para o pronto-socorro, numa ambulância, o pequeno expira horas depois. Sofrera fratura de crânio, da espinha, afun­damento do maxilar.
Numa dor enxuta e atônita, Silene acompanha os homens que levam o filho ao necrotério. Os círios são colocados e ace­sos. Retiram-se os funcionários e ela está só com o pequeno mor­to, enrolado em gazes ensangüentadas. Súbito, sente que há mais alguém ali, que chegou alguém.
Vira-se com o coração apertado: Epaminondas está na por­ta, petrificado. Ela aproxima-se do recém-chegado. Face a face com ele, acusa-o: “Empurraste meu filho!”. Epaminondas bai­xa a cabeça, trancando os lábios.
E ela, ofegante:
— Agora que meu filho está morto, eu posso ser tua!
Aperta o seu rosto entre as mãos e o beija na boca, como uma esfomeada.

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