segunda-feira, 30 de junho de 2008

PIRÂMIDES E BISCOITOS

Antes de falar de João Guimarães Rosa, quero dizer ainda duas palavras sobre o velho Rio. (Em nosso idioma, duas pala­vras são duzentas.) O brasileiro cospe menos, diria eu. Quanto às nossas mulheres, nem cospem. Mas, no tempo do fraque e do espartilho, a cidade expectorava muito mais. Lembro-me de antigas bronquites, de tosses longínquas, asmas nostálgicas. Nas salas da Belle Époque era obrigatória esta figura ornamental: — a escarradeira de louça, com flores desenhadas em relevo (e pé­talas coloridas).
O curioso é que a ficção brasileira da época não tenha no­tado o detalhe. Não há, em todo o Machado, uma vaga e escas­sa referência, e repito: — a escarradeira não existia para o au­tor, para os personagens, nem para o décor dos ambientes. Mas, em 1915, quando assassinaram Pinheiro Machado, ou em 1916, quando vim para o Rio, as famílias tinham pigarros, tosses, que as novas gerações não conhecem. Dos meus amigos atuais, o único que costuma tossir é o João Saldanha.
Bem me lembro da primeira vez em que fui ao cinema. 1916. Eu era um garoto de seis anos, e tudo me espantava. Quan­do apagou a luz, nasceu na treva uma misteriosa e tristíssima fauna de tosses. Depois do filme, saímos, eu e meu irmão Mil­ton. Olhei e vi: — lá estava ela, num canto da sala de espera. Era escarradeira e flor: — subia por um caule fino para se abrir em lírio. Larguei-me do irmão e fui lá cuspir. Passei a mão na boca e voltei. Vinha feliz, envaidecido, realizado. Ainda me vol­tei, da porta, para vê-la. Linda, linda, imitando um lírio ou um copo-de-leite.
Também me vejo na calçada da rua Alegre. Os mesmos seis anos. Era pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez. E me fascinava ir de uma esquina a outra esquina, sempre pelo meio-fio. Eu me equilibrava, no meio-fio, como se este fosse fino e vibrante como um arame. Mas eis o que importa dizer: — fazia esse número acrobático, cuspindo sempre. Também me vejo numa sacada, cuspindo na cabeça dos que passavam.
Bem. Preciso agora explicar que toda essa ternura antiga me veio, outro dia, num boteco. Entrei lá para comprar cigar­ros e fósforos. Um pau-d’água está resmungando: — “Não gos­to de nortista”. Passou os olhos nos presentes e repetiu, num riso encharcado: — “Não gosto de nortista”. E súbito me viu. Vem para mim; disse, cara a cara comigo: — “Eu nasci em casa e com parteira”. Fala com uma vaidade feroz e jucunda. Mas é exatamente o meu caso. Também nasci em casa e com parteira.
E assim o pau-d’água anônimo instalou em mim todo o ape­lo da Belle Époque. Parto em casa, velório em casa, escarradeira na sala, bronquite das tias — todo esse conjunto de relações era o Rio de Machado de Assis, de Pinheiro Machado, de Rui Barbosa. As famílias usavam as bacias em abundância. Hoje uma simples bacia deflagra em mim todo um movimento regressi­vo, todo um processo proustiano.
E já me ocorre um incidente parlamentar que ouvi contar na minha infância. Era no velho Senado. Pinheiro Machado es­tá na tribuna. Fala, fala com a nobre insolência gaúcha. Mais adiante está Rui Barbosa, “o maior dos brasileiros vivos”. De repente Pinheiro Machado diz: — “Se eu me manter”. Rui cor­tou, com triunfante crueldade: — “Decerto Vossa Excelência quer dizer ‘mantiver’”. A lambada doeu na carne e no brio do caudilho. Vacila ou nem isso; deu a resposta fulminante: — “Vos­sa Excelência pode me corrigir, e é bom que o faça. Pois, en­quanto Vossa Excelência aprendia a falar certo e bonito, eu ma­tava e morria na Guerra do Paraguai”.
Chego finalmente a João Guimarães Rosa. O curioso é que o nome, por extenso, como num cartão de visitas, soa falso. Guimarães Rosa devia chamar-se apenas, e para sempre, Gui­marães Rosa. O João lá não devia estar. Lembro-me de que no sábado, véspera da morte, fui à casa do Hélio Pellegrino. E tive­mos uma conversa obsessiva sobre o Grande sertão e seu autor. O Hélio deu a idéia: — “Falo com o Callado para promover um almoço com o Guimarães Rosa. Você topa?”. Claro, cla­ro. E assim combinamos o almoço com o morto do dia seguinte.
Coisa curiosa. O Hélio Pellegrino é um admirador nato. Quando não há quem admirar, sente-se um frustrado e um ven­cido. Todavia, o seu juízo final sobre Guimarães Rosa não era um juízo final, mas um ponto de interrogação. O Hélio não sa­bia o que pensar, o que dizer. Admitia que o Grande sertão fosse um esmagador monumento estilístico. O próprio autor já dis­sera: — “Faça pirâmide, não faça biscoito”. Pois seu livro era uma pirâmide indubitável. Mas a linguagem rosiana fazia o Hé­lio sentir uma nostalgia cruel de Graciliano, sim, da seca trans­parência de Graciliano. Talvez todo o Guimarães Rosa fosse uma inútil obra imortal. Juntei as minhas dúvidas às do Hélio. Exa­gerei as minhas.
No domingo, fiz, como sempre, a Grande Resenha Espor­tiva da tv Globo. Em seguida, a fome da madrugada levou-me ao Antonio’s. Comigo ia o dr. Hílton Gosling. O Guimarães Ro­sa já estava morto e eu não sabia. Assim como Paris tem seus cafés literários, temos os nossos cafés, bares, restaurantes ideo­lógicos. O Antonio’s é um deles. Lá as nossas esquerdas vão di­zer seus palavrões e babar seus pileques. Tomo uma sopa que, aliás, não foi uma sopa — foi um omelete com presunto de Parma. E ninguém me falou nada. Não houve um pau-d’água ideo­lógico que me cochichasse: — “Olha. Morreu o Guimarães Rosa”.
Saio do Antonio’s e venho na carona fraterna do dr. Hílton Gosling. Quando é o João Saldanha que me traz, depois da Gran­de Resenha, costumo dizer: — “Espera que eu entre. Senão me assaltam”. Também o dr. Hílton esperou, de faróis acesos, que eu abrisse o portão. Grito ao amigo: — “Deus te abençoe”. O que me pergunto é se, por coincidência, pensei no autor de Sa­garana. Não, não pensei. Minha mulher, Lúcia, só dorme de­pois que eu chego. Veio abrir a porta dos fundos (aos domin­gos subo pelo elevador de serviço e entro pela cozinha). Bei­jo-a, de passagem. Ela já sabe, mas ainda não me diz nada.
Naquele momento, uma coisa não me saía da cabeça — o omelete que comera no Antonio’s. Era um veneno para a úlce­ra. Já a caminho de casa, vim pensando: — “Chego e tomo um copo de leite”. O leite acalmaria as danações da úlcera. O antiácido tem sido a minha mais recente fé. Bebi o leite gelado, achei que o omelete estava derrotado e passei para a sala. Foi aí que Lúcia começou: — “Que coisa horrível aconteceu com o Gui­marães Rosa!”. Eu desfazia o nó da gravata e parei: — “Que foi?”. E ela: — “Não sabia? Morreu”. Ainda perguntei: — “Desastre?”. Disse: — “Enfarte”.
As más notícias agridem em primeiro lugar a minha úlcera. Sinto os seus arrancos. O copo de leite não ia adiantar nada. Fiz várias exclamações: — “Que coisa! Não é possível!”. E só faltei perguntar: — “Morreu como, se estava vivo?”. Lúcia foi dormir. Fiquei rodando pela sala. Eu tivera, com a notícia, duas reações: — primeiro, de pusilanimidade. O enfarte alheio é uma ameaça para qualquer um. A nossa saúde cardíaca é um eterno mistério, um eterno suspense. Depois do medo, veio algo pior e mais vil: — uma espécie de satisfação, de euforia. Ninguém me via, só eu me via. Vim para a janela olhar a noite. Cada um de nós tem seu momento de pulha. Naquele instante, eu me senti um límpido, translúcido canalha.

[5/12/1967]

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