sexta-feira, 1 de agosto de 2008

REZE MENOS POR MIM


Vou falar de Alceu Amoroso Lima, mas o assunto é ainda Guimarães Rosa, Eis o que eu queria dizer: — para mim, o ami­go é o grande acontecimento. (Bem me lembro daquela segunda-feira. Entro na redação e vejo o Franklin de Oliveira. Vagava por entre mesas e cadeiras, e tão órfão de Guimarães Rosa.) Há cinco ou seis anos, resolvi ser amigo do dr. Alceu. Era dezem­bro. No dia 24, ligo para ele. Imaginei que, na espera de Natal, um católico puro há de estar aberto para o mundo.
Comecei assim: — “Dr. Alceu, aqui fala o Nelson Rodrigues. Como vai? Vai bem?”. Não havia nenhuma convivência entre nós. Mas ele respondeu, vivamente: — “Ah, Nelson, tenho pen­sado tanto em você! Agora mesmo, estava rezando por você”. Pensando em mim, rezando por mim. Vou adiante: — “Dr. Al­ceu, estou-lhe telefonando para desejar todas as felicidades, a si e aos seus” etc. etc. etc. Por um momento, tive vontade de contar-lhe o seguinte: — “Dr. Alceu, quando eu era criança, o Tico-Tico publicava um presépio para armar. O senhor sabe que eu recortava as figurinhas e colava em papelão?”.
Todavia, não falei do presépio. Um ano depois, no mesmo 24 de dezembro, disco novamente. E o dr. Alceu responde: — “Ah, Nelson, acabei de rezar por você”. (Ah, não se esquecia de mim nas suas orações.) Mais uma vez, não contei que em criança armava os presépios do Tico-Tico. E, assim, Natal após Natal, não lhe faltei com o meu sofrido telefonema.
Eis o que eu pensava: — um católico, como o dr. Amoroso Lima, há de ter Deus enterrado em si como um sino. Ele havia de imaginar que eu corria, arquejante, atrás de um amigo, eter­namente atrás de um amigo. E, no entanto, eu sentia, com uma nitidez cruel, inapelável, que o dr. Alceu rezava por mim e não era meu amigo. Simplesmente, não era meu amigo.
Até que, um dia, converso com uma senhora que acabava de chegar de Roma. Entrara no Vaticano e fora recebida pelo papa. Na hora de se despedir, o Santo padre baixa a voz e diz, súplice: — “Reze por mim”. Era um papa, a mendigar uma ora­ção. Tremendo de beleza, a pobre senhora saiu dali como se fugisse.
No seguinte Natal, vou ligar para o dr. Alceu. Estou cada vez mais convencido de que o amigo é um momento de eter­nidade. Antes de discar, passo um bom quarto de hora sonhan­do diante do telefone. Eu queria ter, com o dr. Alceu, uma con­versa de lealdade total. Eis o que imaginava dizer-lhe: — “Dr. Alceu, reze menos por mim. Se quiser, não reze nada. Mas seja meu amigo. Apenas isso: — meu amigo. E, se insiste em rezar, vamos fazer uma permuta: o senhor reza por mim e eu rezo por si”.
Daria tudo para ver o dr. Alceu mendigando as minhas ora­ções, com a humildade de um papa. Imaginei o velho católico a suplicar, do fundo do seu desespero: — “Nelson, reze por mim. Eu preciso ser salvo. É a minha salvação que está em jo­go”. Se ele falasse assim, trêmulo de pavor, eu responderia: — “Dr. Alceu, vou começar agora mesmo. Não desligue. Quero que o senhor ouça a minha oração”. E assim eu salvaria o dr. Alceu Amoroso Lima, e seríamos amigos eternamente.
Eu não rezo. Sou cristão e não rezo. A última vez em que rezei foi na morte do meu irmão Roberto. Na morte, não: ele ainda agonizava e rezei para salvá-lo. Quando o vi morto, fiz, a mim mesmo, o juramento ressentido: — não rezar mais, nun­ca mais. (Roberto foi assassinado; e, morto, era belo como os suicidas.) Mas rezaria pelo dr. Alceu se ele implorasse uma ora­ção, assim como um ceguinho pede uma moeda.
Bem me lembro do nosso último 24 de dezembro. Ouço a voz do dr. Alceu: — “Alô?”. Estou imaginando: — “Vai repe­tir tudo, igualzinho como da outra vez”. Digo: — “Dr. Alceu, é o Nelson Rodrigues. Como vai essa figura?”. Foi de uma larga e cálida efusão: — “Ah, Nelson, acabei de rezar por você”. To­mo um baque. Ele insiste: — “Tenho pedido muito por você”. Aproveito uma pausa e dou o meu recado: — “Vim desejar-lhe todas as felicidades etc. etc.”.
(E eu queria pingar, como no pires de um cego, a moeda da minha oração.) Baixa em mim o tédio: começo a crer que o amigo é uma impossibilidade. A conversa continuou e chegava a ser irreal, quase um pesadelo humorístico. Subitamente, ele suspira: — “Ah, Nelson, você aí nessa lama!”. Exatamente: — lama. Começo a ter medo do resto. Dr. Alceu dizia “lama” fami­liarmente, como se falasse de uma tia minha, bem idosa e até estimável. Tive a idéia de responder-lhe: — “Minha lama vai bem. E a sua, dr. Alceu?”.
Acabei com aquilo sumariamente: — “Até logo, até logo. Passar bem”. Desliguei e confesso: — com um desgosto do Na­tal e, até, um tédio retrospectivo do presépio do Tico-Tico. Nun­ca mais telefonei, nunca mais. Mas, ao relembrar o episódio, ima­gino um mundo em que as senhoras se cumprimentassem as­sim: — “Como tem passado a sua lama?”. Eis o que o dr. Al­ceu, na sua imodéstia de santo, não percebe — qualquer um tem seus íntimos pântanos, sim, pântanos adormecidos. É pre­ciso não despertá-los. Mas certos acontecimentos acordam a la­ma do seu negro sono. Quando isso acontece, a alma começa a exalar o tifo, a malária, e a paisagem apodrece.
Justamente, a morte de Guimarães Rosa tocou meu íntimo e inconfesso pântano. Vivo, ele nos agredia e humilhava com a sua monumental presença literária. Certa vez, ouvi o Otto La­ra Resende dizer, na tv Globo: — “O genial João Guimarães Rosa”. Além de chamá-lo “genial”, ainda lhe punha, por exten­so, o nome. Eu estava em casa. Detestei o Otto e pensei, desfeiteado: — “Uma besta, esse Otto”. No dia seguinte estava eu di­zendo, não sei a quem, que o Grande sertão tinha muito de gra­tuito, de incomunicável; e a linguagem do autor, que ninguém entendia, era uma audição para surdos. Fiquei, por uns dias, res­sentido com o Otto: — “Nunca me chamou de gênio”, era o meu lamento.
E, súbito, num domingo, morria Guimarães Rosa. A notí­cia deu-me um alívio, uma brusca e vil euforia. É fácil admirar, sem ressentimento, um gênio morto. Já tínhamos um Machado de Assis. Guimarães Rosa seria outro Machado de Assis. Claro que os demais continuavam vivíssimos, atropelando. Mas esses não fundaram uma língua, nem escreveram “A terceira margem do rio” (que o Hélio Pellegrino declamou para mim, ao telefone).
No dia seguinte, Guimarães Rosa tinha uma imprensa de chefe de Estado assassinado. Vocês se lembram quando um ti­ro arrancou o queixo forte, vital, de Kennedy? Pois Guimarães Rosa subiu às manchetes como o presidente fuzilado dos Esta­dos Unidos. Pela primeira vez um escritor aparecia em oito co­lunas, nas primeiras páginas. No princípio do século, Euclides da Cunha também teve a mesma glória impressa. Mas não era o autor de Os sertões, não era o bárbaro estilista. Para ser man­chete, Euclides teve de ser varado de balas.
Há qualquer coisa de árido, ou de vazio, ou de humilhan­te, na morte natural do grande homem. Pois Guimarães Rosa, com um puro e convencional enfarte, mereceu a promoção fre­nética das tragédias de sangue. Repito: — pela primeira vez fez-se crítica literária nas manchetes. Os meus amigos penduravam-se no telefone. O Hélio Pellegrino, na véspera, restritivo, reali­zou uma fulminante revisão crítica. Relia o Guimarães Rosa e tremia de beleza. Ligou para o Mário Pedrosa para arrastá-lo na mesma admiração. Mas o Mário resmungou: — “É o novo Coe­lho Neto!”. Muito antes, eu ouvira do Carlos Heitor Cony o mes­mo berro: — “É o novo Coelho Neto!”. Quanto a mim, fui ao velório na Academia. Entro e paro ante a indignidade dos círios elétricos.

[6/12/1967]

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