quinta-feira, 21 de agosto de 2008

APELO DE UMA FÉ PERDIDA

Imagino a seguinte cena: — d. Hélder chega à janela e olha o céu. No verso do Chico Buarque não há janela intranscendente, e explico: — qualquer janela nos põe em relação direta, ful­minante, com o infinito. Assim está certo o poeta popular. É preciso usar as janelas com larga e cálida abundância.
Mas volto a d. Hélder. Ele olha o céu, e por quê? Minha infância foi a época dos valores nítidos, sim, dos valores preci­sos. Céu era Céu. Deus era Deus. O Diabo era o Diabo. Por ou­tro lado, o céu era a evidência do sobrenatural e, repito, por trás do azul residia o sobrenatural. E, quando o sujeito olhava para o alto, um arroubo subia de suas entranhas.
Continua de pé a pergunta: — Por que d. Hélder, na cena imaginária, olha o céu? Será a nostalgia da vida eterna? Sabe­mos que, em nosso tempo, a vida eterna perdeu a sua função, e insisto: — é tão inatural, tão obsoleta, tão fora de moda como o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Mas não importa. Há momentos em que o homem recebe o apelo da fé perdida. E, por vezes, baixa sobre nós o tédio do efêmero, do contingen­te, do perecível. Quem sabe se d. Hélder quer provar, de novo, o mel do eterno?
Não creio, eis a verdade, não creio na hipótese mística. Acre­ditem: — d. Hélder só olha o céu para saber se leva ou não o guarda-chuva. Põe-se na janela, como a Carolina, mas com de­sígnios estritamente meteorológicos. Daí a abismal dessemelhan­ça entre as duas épocas, entre os anos de minha infância e os tempos atuais. Em 1919, o mesmo d. Hélder seria outro, e ou­tro o céu, e outro o infinito.
(Depois da tremenda aventura e3pacial, até o infinito pare­ce ter a domesticidade do cachorro velho.) Mas pergunto: — que fará o brasileiro sem a sua fé? Somos um povo de uma reli­giosidade profundíssima. Fui, certa vez, testemunha de um epi­sódio lindo. Esse fato, que já contei várias vezes, merece outra reprise. Mas vamos lá. Um dia entro na redação e vejo o Reynaldo Jardim curvado sobre a máquina, batendo as quinze có­pias de uma corrente. Era um materialista feroz que, entretan­to, cedia a um formidável surto místico.
E, como Reynaldo Jardim, conheço uma infinidade de pa­trícios. Alguns têm cinco religiões ao mesmo tempo. Por exem­plo: um vizinho que, de vez em quando, me dá carona para a cidade. Uma sexta-feira eu o convidei para jantar. Respondeu-me: — “Hoje, não, hoje é dia da sessão espírita”. Pergunto: — “Você não é católico?”. Olhou-me: — “E daí?”. Insisto: — “E vai à sessão espírita?”. O outro vacila na resposta. Explode: — “Sossega o periquito”. E mais não disse.
Eis o que importa notar: — o brasileiro tem tão formidável potencial de fé que pode aplicá-lo por toda parte. E, súbito, nos tiram a vida eterna. Não há mais sobrenatural, não há mais nada. Estamos reduzidos aos quinze minutos da vida terrena. Vamos e venhamos: esse quarto de hora não basta para a nossa fome. Sem a sua eternidade, o brasileiro anda por aí, errante e desgraçado.
Mas o que é que esse pobre povo recebe em troca? Res­posta: tem a sua fome promovida. Lembro-me de um debate de católicos numa televisão de Recife. Bem. Eram católicos in­teligentíssimos, arejadíssimos etc. etc. E vejam o tema: amor li­vre. O que se disse, o que se opinou, o que se insinuou sobre liberdade sexual. Eram todos superiormente compreensivos. Não houve, porém, uma unanimidade. E o locutor, outro liber­to, avisou risonhamente que, no próximo programa, falaria “o nosso arcebispo”.
E, de fato, no dia e hora marcados, compareceu d. Hélder às câmaras e microfones. A cidade inteira parou. Todos queriam conhecer a sua palavra sobre o direito que temos de fazer a nossa vida sexual com a naturalidade de um vira-latas de esquina ou de um gato de telhado. D. Hélder ria, sorria, ficou de mãos pos­tas. Então o locutor, com uma pele de quem lavou o rosto há cinco minutos, propõe a questão: — “O que é que o senhor acha, d. Hélder, do amor livre?”.
Seria desprimoroso uma resposta fulminante. D. Hélder faz um suspense. Em casa as senhoras tinham palpitações, falta de ar. O arcebispo pensa, pensa, e súbito recebe uma luz. De mãos postas, responde com outra pergunta: — “Por que falar de amor livre se o Nordeste passa fome?”. Depois disso, o speaker po­deria insistir? Nunca. E, ao mesmo tempo, não sabemos o que mais admirar em d. Hélder: se a fina inteligência, se a cálida bon­dade. Uma telespectadora resmungou: — “Não respondeu”.
Engano da santa senhora. Respondeu, ou por outra, sua apa­rente evasiva era já uma resposta. Interrogado sobre o amor li­vre, d. Hélder falou da “fome no Nordeste”. Aí está dito tudo. Vou mais longe: mais do que uma resposta, as palavras do caro arcebispo encerram uma solução. É preciso saber ler nas entreli­nhas. Não precisamos namorar em portão, sala de visitas ou ci­nema. Nada de andar de mãos dadas como em 1920. Estão sus­pensos os beijos. D. Hélder disse que “o Nordeste passa fome”. Portanto, o amor livre ou enjaulado perde a sua função. Os pro­blemas da carne e da alma estão resolvidos: o Nordeste passa fome.
Vejam vocês: na primeira oportunidade eu estaria dispos­to a perguntar a d. Hélder: — “Que me diz o senhor ou que notícias me dá da minha vida eterna?”. Não farei, porém, tal con­sulta, porque o querido arcebispo havia de me atirar na cara a “fome do Nordeste”. Faz-se assim uma promoção inédita da fo­me. Mas bolas: — e por que só a do Nordeste? As outras não merecem uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhes barrarem por cima? Por outro lado, é uma visão utópica a des­se Brasil, onde só o Nordeste passa fome.
E eis que volto à minha própria fome. Falei ontem do perío­do de 30 a 35. Disse eu que, nessa época, não havia em mim um sentimento forte. Engano, engano. Algo restou em mim, intac­to: a fé. Jamais acreditei tanto. Deus era alguém tão pessoal, tan­gível como qualquer vizinho. Amava os santos. E pior: a fome me dava, por vezes, a sensação de que eu próprio era um santo. Eu, um santo vergado. Lembro-me de que, uma noite, comecei a ler uma condensação de Freud. Lia aquilo e voltava para reler. Não entendia nada ou entendia muito pouco. Parecia-me que o sábio valorizava os instintos e só os instintos. E, súbito, deixei de ser o homem eterno. Reagi como se Freud fosse um veteriná­rio e todos nós, bezerros. Fechei o livrinho e comecei a chorar.

[29/12/1967]

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