quarta-feira, 20 de agosto de 2008

A VIRGEM SONHAVA NO JARDIM

Não sei se vocês sabem o que aconteceu com o velho Confúcio. Certa vez, uma virgem sonhava no jardim. E, de repente, um raio de sol tocou-lhe o ventre. Assim nasceu Confúcio, fi­lho de mulher e de um raio de sol. E nasceu com noventa anos, já de sapatos e já de guarda-chuva,
Aos sete anos, achei que todo mundo imitava Confúcio. O sujeito já nascia com a cara e a idade definitivas. Por exemplo: — Rui Barbosa. Para mim, era um septuagenário nato e para sem­pre septuagenário. E assim os outros e eu mesmo. Eu teria sempre sete anos, ficaria cristalizado nos sete anos, eternamente. O pas­sado não existia, nem o futuro. Não sentia, por trás de mim, ne­nhum passado.
Como eu seria sempre menino, era fascinado pelos adul­tos. E, mais ainda, pelos velhos. Ao lado de nossa casa morava um trêmulo velho, de olho azul. Teria seus setenta e cinco, oi­tenta anos. Eu achava linda até a sua hemiplegia. (Escrevi “olho azul” e podia acrescentar: — lábio roxo.) Até 1925, o Brasil era uma paisagem de velhos em flor.
Lembro-me de um outro ancião que, certa vez, me passou a mão pela cabeça. Esse gesto vago, de uma ternura distraída, me dilacerou de alegria. De outra feita, uma senhora me pediu para comprar anil, no armazém. Fui correndo e voltei, na vai­dade do pequeno serviço. Ah, também fui muito usado pelos namorados. Levava bilhetinhos, recados, flores.
Em 1919, eu não saía da casa de uma d. Filó ou, por exten­so, Filomena (nome inviável em nossos dias). Morava num so­brado da rua D. Zulmira; no térreo residia outra família. Lem­bro-me de que, no quintal, junto do muro, havia um abacateiro. Como no soneto de Raul de Leone, a árvore ia dar seus aba­cates no pomar alheio. D. Filó era a mãe de Silene e de Antoninho, cada um filho de um matrimônio. D. Filó era viúva duas vezes.
Os vizinhos diziam de Silene: — “Um biscuit”. Devia ser linda. E, anos depois, quando houve o concurso de Miss Brasil, o primeiro, eu ouvia dizer: — “Silene é mais bonita do que Zezé Leone”. Não sei, não sei. Naquele tempo, eu não sabia o que era ser bonita. Até certa idade, não tive nenhum gosto seletivo. Havia uma cozinheira em casa, uma crioula, mãe do Zé Lomba. Vejo o seu pescoço. Tinha um bócio, quase do tamanho de uma melancia. Pois eu achava bonita a mãe do Zé Lomba, inclusive o bócio.
Era a época das minhas paixões. E eu não sabia dizer qual a mais bonita, d. Filó ou Silene. Gostava ora de uma, ora de ou­tra e, às vezes, de ambas ao mesmo tempo. D. Filó tinha papa­da como a diretora de minha escola. (Só muito depois, já adul­to, descobri a verdade pretérita: — d. Filó era feia como a mãe velha da mulher bonita.) Aí está: — feia como a mãe velha da mulher bonita.
Eu ia para a casa do Antoninho todos os dias. No fundo do quintal jogávamos bola de gude. E ninguém podia imaginar que só o amor (e amor por duas mulheres) me levava ali. Estou ou­vindo d. Filó: — “Nelson, você gosta de pessegada?”. Ah, naquele tempo, só não gostava de jiló, só não gostava de chuchu; era guloso de tudo o mais. “Toma, Nelson.” E me dava a fatia de pessegada. Lembro-me da fruteira, no centro da mesa, com sujeirinha de mosca nas bananas.
Quase todo o dia, d. Filó chamava a filha: — “Vem apa­nhar, Silene”. Que idade tinha a menina? Uns dezessete anos. Dizia, branca: — “Não, mamãe, não”. E a outra: — “Vem, an­da, Silene!”. A filha podia correr, mas ficava no canto da sala, acuada, sem se mexer. E chorava antes de apanhar. A mãe vi­nha. E, então, Silene parava de chorar, passiva como uma bor­boleta espetada na parede. D. Filó dizia-lhe: — “Mostra a mão”. E repetia, sem raiva, quase doce: — “Mostra a mão”. E Silene abria a mão para os bolos.
(Como os filhos apanhavam em 1919! De repente, os gri­tos começavam. Era uma surra. E eu, em casa, ou na calçada, parava de brincar; ficava ouvindo, crispado. Mas d. Filó batia sem paixão, sem ódio. As outras mães, não. Na esquina morava uma baiana. Batia no filho e se esganiçava: — “Por que você não morre, desgraçado? Tomara que você morra!”. Morrer, mor­rer. D. Filó não falava em morte. Certa vez, batia na filha, quan­do sentiu cheiro de queimado. Foi à cozinha tirar a panela do fogo; depois, voltou e continuou a surra.)
Silene apanhava de palmatória e na mão, sempre na mão. (Só uma vez d. Filó bateu-lhe nos quadris.) Um dia, perguntei ao Antoninho: — “Mas o que é que tua irmã fez?”. Ele não sa­bia, ninguém sabia. Mas eu sentia, na moça, uma culpa miste­riosa, sim, uma culpa fantástica. As duas sabiam e havia entre elas um segredo mortal. No fundo, no fundo, eu ia à casa de d. Filó ver Silene apanhar.
No fim de 1918, houve uma batalha de confetes na rua D. Zulmira. Hoje não há mais batalha de confetes e quase não há mais carnaval. Ninguém imagina o que foi a fúria carnavalesca depois da “Espanhola”. As famílias estavam sem vários filhos, tias, mães, pais. Lembro-me de um dos nossos vizinhos que per­deu, na Gripe, até o cachorro da casa. O tédio da morte enlou­queceu a cidade.
As batalhas da rua D. Zulmira eram célebres. E aquela foi uma loucura inédita. Eu e Antoninho, do alto da sacada, espiá­vamos o movimento, embaixo. Ouço d. Filó gritando com Si­lene: — “Você pensa que é mais bonita do que eu? Fica saben­do: — eu não me troco por você, sua lambisgóia!”. Silene res­pondeu baixinho não sei o quê. E a mãe: — “Você não me co­nhece, Silene!”. A filha sussurrou qualquer coisa que eu tam­bém não ouvi. Novamente, a voz de d. Filó: — “O que se faz aqui, aqui se paga. Você vai me pagar tudo, tudo!”.
Passou. Meia hora depois, as duas desceram para o portão. Eu, no sobrado, começava a ter medo. Ainda pensei: — “Vou-me embora”. E, de repente, os gritos começaram lá embaixo no portão. Antoninho disse, branco: — “É Silene”. Houve um fluxo e refluxo da multidão. Uma voz de homem berra: — “Cha­mem a Assistência”. Um soldado sobe a escada, com Silene no colo. D. Filó repetia, fora de si: — “Foi o mascarado! Foi o mascarado!”. Silene gemia grosso, como um homem: — “Estou ce­ga, estou cega”. A sala foi invadida de fantasias. Um sujeito ar­rancou a máscara de caveira para espiar melhor. D. Filó não pa­rava (nunca me esqueço: tinha uma orla de suor em cima do lábio superior). Arfava: — “Um mascarado. Apertou uma serin­ga de borracha”. Um esguicho de iodo no olho de Silene.
Corri para casa, quando a Assistência entrava na rua. Só uns quinze dias depois voltei lá. Vi Silene, com um olho normal e um outro enorme e branco. O olho branco chorava sem lágri­mas. Entrei e ela virou o rosto, na vergonha da cegueira. D. Fi­ló perguntou: — “Nelson, quer pessegada?”. Quis. E, depois, a mãe vira-se para a filha e diz baixo, tão baixo, que só eu ouvi — “Caolha!”. E foi guardar a lata de doce. Saí e vim para casa. Começava a ter medo dos outros. Aprendia que a nossa solidão nasce da convivência humana.

[20/12/1967]

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