Não sei se vocês sabem o que aconteceu com o velho Confúcio. Certa vez, uma virgem sonhava no jardim. E, de repente, um raio de sol tocou-lhe o ventre. Assim nasceu Confúcio, filho de mulher e de um raio de sol. E nasceu com noventa anos, já de sapatos e já de guarda-chuva,
Aos sete anos, achei que todo mundo imitava Confúcio. O sujeito já nascia com a cara e a idade definitivas. Por exemplo: — Rui Barbosa. Para mim, era um septuagenário nato e para sempre septuagenário. E assim os outros e eu mesmo. Eu teria sempre sete anos, ficaria cristalizado nos sete anos, eternamente. O passado não existia, nem o futuro. Não sentia, por trás de mim, nenhum passado.
Como eu seria sempre menino, era fascinado pelos adultos. E, mais ainda, pelos velhos. Ao lado de nossa casa morava um trêmulo velho, de olho azul. Teria seus setenta e cinco, oitenta anos. Eu achava linda até a sua hemiplegia. (Escrevi “olho azul” e podia acrescentar: — lábio roxo.) Até 1925, o Brasil era uma paisagem de velhos em flor.
Lembro-me de um outro ancião que, certa vez, me passou a mão pela cabeça. Esse gesto vago, de uma ternura distraída, me dilacerou de alegria. De outra feita, uma senhora me pediu para comprar anil, no armazém. Fui correndo e voltei, na vaidade do pequeno serviço. Ah, também fui muito usado pelos namorados. Levava bilhetinhos, recados, flores.
Em 1919, eu não saía da casa de uma d. Filó ou, por extenso, Filomena (nome inviável em nossos dias). Morava num sobrado da rua D. Zulmira; no térreo residia outra família. Lembro-me de que, no quintal, junto do muro, havia um abacateiro. Como no soneto de Raul de Leone, a árvore ia dar seus abacates no pomar alheio. D. Filó era a mãe de Silene e de Antoninho, cada um filho de um matrimônio. D. Filó era viúva duas vezes.
Os vizinhos diziam de Silene: — “Um biscuit”. Devia ser linda. E, anos depois, quando houve o concurso de Miss Brasil, o primeiro, eu ouvia dizer: — “Silene é mais bonita do que Zezé Leone”. Não sei, não sei. Naquele tempo, eu não sabia o que era ser bonita. Até certa idade, não tive nenhum gosto seletivo. Havia uma cozinheira em casa, uma crioula, mãe do Zé Lomba. Vejo o seu pescoço. Tinha um bócio, quase do tamanho de uma melancia. Pois eu achava bonita a mãe do Zé Lomba, inclusive o bócio.
Era a época das minhas paixões. E eu não sabia dizer qual a mais bonita, d. Filó ou Silene. Gostava ora de uma, ora de outra e, às vezes, de ambas ao mesmo tempo. D. Filó tinha papada como a diretora de minha escola. (Só muito depois, já adulto, descobri a verdade pretérita: — d. Filó era feia como a mãe velha da mulher bonita.) Aí está: — feia como a mãe velha da mulher bonita.
Eu ia para a casa do Antoninho todos os dias. No fundo do quintal jogávamos bola de gude. E ninguém podia imaginar que só o amor (e amor por duas mulheres) me levava ali. Estou ouvindo d. Filó: — “Nelson, você gosta de pessegada?”. Ah, naquele tempo, só não gostava de jiló, só não gostava de chuchu; era guloso de tudo o mais. “Toma, Nelson.” E me dava a fatia de pessegada. Lembro-me da fruteira, no centro da mesa, com sujeirinha de mosca nas bananas.
Quase todo o dia, d. Filó chamava a filha: — “Vem apanhar, Silene”. Que idade tinha a menina? Uns dezessete anos. Dizia, branca: — “Não, mamãe, não”. E a outra: — “Vem, anda, Silene!”. A filha podia correr, mas ficava no canto da sala, acuada, sem se mexer. E chorava antes de apanhar. A mãe vinha. E, então, Silene parava de chorar, passiva como uma borboleta espetada na parede. D. Filó dizia-lhe: — “Mostra a mão”. E repetia, sem raiva, quase doce: — “Mostra a mão”. E Silene abria a mão para os bolos.
(Como os filhos apanhavam em 1919! De repente, os gritos começavam. Era uma surra. E eu, em casa, ou na calçada, parava de brincar; ficava ouvindo, crispado. Mas d. Filó batia sem paixão, sem ódio. As outras mães, não. Na esquina morava uma baiana. Batia no filho e se esganiçava: — “Por que você não morre, desgraçado? Tomara que você morra!”. Morrer, morrer. D. Filó não falava em morte. Certa vez, batia na filha, quando sentiu cheiro de queimado. Foi à cozinha tirar a panela do fogo; depois, voltou e continuou a surra.)
Silene apanhava de palmatória e na mão, sempre na mão. (Só uma vez d. Filó bateu-lhe nos quadris.) Um dia, perguntei ao Antoninho: — “Mas o que é que tua irmã fez?”. Ele não sabia, ninguém sabia. Mas eu sentia, na moça, uma culpa misteriosa, sim, uma culpa fantástica. As duas sabiam e havia entre elas um segredo mortal. No fundo, no fundo, eu ia à casa de d. Filó ver Silene apanhar.
No fim de 1918, houve uma batalha de confetes na rua D. Zulmira. Hoje não há mais batalha de confetes e quase não há mais carnaval. Ninguém imagina o que foi a fúria carnavalesca depois da “Espanhola”. As famílias estavam sem vários filhos, tias, mães, pais. Lembro-me de um dos nossos vizinhos que perdeu, na Gripe, até o cachorro da casa. O tédio da morte enlouqueceu a cidade.
As batalhas da rua D. Zulmira eram célebres. E aquela foi uma loucura inédita. Eu e Antoninho, do alto da sacada, espiávamos o movimento, embaixo. Ouço d. Filó gritando com Silene: — “Você pensa que é mais bonita do que eu? Fica sabendo: — eu não me troco por você, sua lambisgóia!”. Silene respondeu baixinho não sei o quê. E a mãe: — “Você não me conhece, Silene!”. A filha sussurrou qualquer coisa que eu também não ouvi. Novamente, a voz de d. Filó: — “O que se faz aqui, aqui se paga. Você vai me pagar tudo, tudo!”.
Passou. Meia hora depois, as duas desceram para o portão. Eu, no sobrado, começava a ter medo. Ainda pensei: — “Vou-me embora”. E, de repente, os gritos começaram lá embaixo no portão. Antoninho disse, branco: — “É Silene”. Houve um fluxo e refluxo da multidão. Uma voz de homem berra: — “Chamem a Assistência”. Um soldado sobe a escada, com Silene no colo. D. Filó repetia, fora de si: — “Foi o mascarado! Foi o mascarado!”. Silene gemia grosso, como um homem: — “Estou cega, estou cega”. A sala foi invadida de fantasias. Um sujeito arrancou a máscara de caveira para espiar melhor. D. Filó não parava (nunca me esqueço: tinha uma orla de suor em cima do lábio superior). Arfava: — “Um mascarado. Apertou uma seringa de borracha”. Um esguicho de iodo no olho de Silene.
Corri para casa, quando a Assistência entrava na rua. Só uns quinze dias depois voltei lá. Vi Silene, com um olho normal e um outro enorme e branco. O olho branco chorava sem lágrimas. Entrei e ela virou o rosto, na vergonha da cegueira. D. Filó perguntou: — “Nelson, quer pessegada?”. Quis. E, depois, a mãe vira-se para a filha e diz baixo, tão baixo, que só eu ouvi — “Caolha!”. E foi guardar a lata de doce. Saí e vim para casa. Começava a ter medo dos outros. Aprendia que a nossa solidão nasce da convivência humana.
[20/12/1967]
quarta-feira, 20 de agosto de 2008
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