terça-feira, 19 de agosto de 2008

DUAS MÃOS POSTAS


“Eu rezo! Pode deixar que eu rezo! Eu acredito na força da oração!” Quem falava assim, e trêmulo de fé, não era o vizi­nho do lado, nem o açougueiro da esquina, nem o português do botequim. Não. Era d. Hélder, sim, sim, exatamente d. Hélder e não um qualquer. Eu pedia por alguém e repito: alguém da minha amizade ou, melhor dizendo, alguém do meu amor.
E que fiz eu? Fiz a opção entre d. Hélder e d. Marcos Bar­bosa (o que me fascina neste último é o sorriso de Manuel Ban­deira). Acabei ligando para d. Hélder Câmara. Contei-lhe tudo, tudo. Disse: — “Há uma moça assim, assim, que eu amo. Que é tudo para mim. Essa moça está sofrendo. E eu queria que o senhor fosse vê-la. Faz isso para mim, d. Hélder, faz?”.
D. Hélder foi de uma solidariedade fulminante. Não fez o suspense de uma dúvida. Nada. Faria isso por mim. E, rápido, prático, pedia endereço, telefone. Sem vê-lo, eu o imaginava apanhando lápis, papel. Dei a rua, o número e o telefone. Ah, faltava o nome. Passei-lhe o nome. Era em Santa Teresa. Subi­ria Santa Teresa. Deixei o telefone, certo de que acabava de fa­lar com um santo.
Não é recente a minha fascinação pela batina. Vem de lon­ge, muito longe. Eu era garotinho e vi uma menina atravessan­do a rua para beijar a mão de um padre. E, depois, outras meni­nas beijaram a mão de outros padres. Hoje, ninguém beija a mão de padre, ninguém.
Eu queria um padre junto à mulher que amava. Ela sofria. Muito bem: — e era preciso que a piedade e o amor vestissem batina. A solidariedade de d. Hélder fez-me um bem lancinan­te. Eis o que eu pensava: — “Ainda bem que procurei d. Hélder e não d. Marcos”. Por certo, d. Marcos teria também uma estrutura muito doce. Mas d. Hélder era mais promovido. Sim, tinha mais nome, mais imprensa (pode parecer torpe essa refle­xão que, na época, me ocorreu).
D. Hélder cumpriu a palavra: telefonou. No dia seguinte, fa­lou comigo: — “A moça estava de saída”. Combinaram que ele telefonaria depois. (Carlos Heitor Cony contou-me que, na sua passagem pelo seminário, falou certa vez com d. Hélder. Abriu-lhe a alma: — “Meu pecado é o orgulho. Sou muito orgulhoso etc. etc.”. D. Hélder foi exemplar: — “Meu filho, nunca seja or­gulhoso de dentro para fora, mas de fora para dentro”. Cony pa­rou, perplexo. O outro, mais didático, completou: — “Para fo­ra, seja modesto, seja humilde. O orgulho interior Deus perdoa”.)
Liguei para a mulher amada. Ela estava feliz, feliz, com o telefonema. Disse: — “Foi tão simpático”. Parecia menos de­primida, menos crispada. E eu: — “Meu anjo, escuta. Tudo vai sair bem. Você vai ver: d. Hélder é formidável. E inteligente, muito inteligente”. A inteligência era o de menos. Sempre tive a obsessão da bondade. Mas eu tinha medo, eis a verdade. Quem ama conhece todo o inferno da mania de perseguição.
Retifico: a mania de perseguição não é mania de perseguição. De fato, qualquer amor há de sofrer uma perseguição concreta e assassina. Somos impotentes do sentimento e não perdoamos o amor alheio. Eu amava e comecei a sentir, por toda a parte, pres­sões contra mim e o ser amado. Soube de alguém que fizera este co­mentário: — “Se essa moça gosta do Nelson, é uma débil mental!”.
E d. Hélder não foi. Desesperado, eu dizia: — “Mas ele pro­meteu. Não telefonou para você? Não disse que ia? Vou falar com ele”. Liguei várias vezes. Começou a não estar. Cerquei-o em casa. D. Hélder suspirava: — “Não posso, não devo”. Ater­rado, fiz-lhe todo um furioso apelo: — “D. Hélder, não se trata de opinar. O senhor não opina. Não precisa ser nem contra, nem a favor. O que eu quero do senhor é um ato de compaixão. Me entende? A moça está sofrendo. O senhor diz uma palavra ami­ga e só. D. Hélder!”.
Foi aí que ele falou em “rezar” e repetiu: — “Rezo! Rezo!”. Por um momento, eu não soube o que dizer. Ele pôs-se a de­monstrar o valor formidável (e prático) da oração. Foi patético no telefone: — “Acredito na oração! Acredito! Tenho rezado pela moça!”. Reagi à sua veemência com a minha veemência.
O que é que eu disse? Disse que a oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes, ainda que se reze pelo vampiro de Dusseldorf. Mas por que não (e também) a presença, a cálida pre­sença física? Por que não o gesto, o olhar, o sorriso? E por que não a voz, a inflexão? Por que não a lágrima? (o ausente não chora).
E falei muito e deixei de dizer tanta coisa. Poderia contar que, na rua Alegre, quis ser coroinha. Ainda hoje, quando vejo a torre de uma igreja, sinto em mim todo um frêmito de bati­nas, de freiras, de círios e de santos. Aos oito anos, eu próprio queria ser santo; desejei ser crucificado e imaginava alguém en­xugando, na minha fronte, o suor do martírio. Mas calei-me. Sen­ti em d. Hélder o tédio da nossa discussão. Direi mesmo a palavra cruel e inapelável: ali, eu era o “chato”.
(Desesperado, fui bater a d. Marcos Barbosa. O nosso pri­meiro encontro foi na Rádio Jornal do Brasil. E que bem me fez o seu sorriso de Manuel Bandeira. (Era mais gordo do que eu pensava.) Contei-lhe tudo. Repeti que não se tratava de opi­nar; ninguém precisava ser contra ou a favor. O que eu queria era um mínimo de bondade, apenas isso, um mínimo de com­paixão. Ele me ouviu, tenso; e não senti, na sua atitude, nenhu­ma fuga. Quando acabei, disse que ia; e foi. Aí é que está: foi. Subiu Santa Teresa; desceu do bonde; bateu na porta. E riu pa­ra a moça, com os dentes de Manuel Bandeira.)
Passou. E hoje vejo pelos jornais que d. Hélder mudou mui­to. Não é o mesmo, eis a verdade, não é o mesmo. Aí estão os seus pronunciamentos; faz viagens; anda de um lado para ou­tro. Foi a Nova York, que é um pouco mais longe do que Santa Teresa. E, lá, promovido como O Arcebispo Vermelho, fez dis­cursos. Por que não ficou aqui rezando? E outra coisa: — há fome no Nordeste? Nem tudo está perdido, porque temos aí a fé de d. Hélder. Pena é que, nos seus manifestos, ele não faça uma única e escassa referência ao sobrenatural. Sim, nunca pro­meteu orar pelas populações famintas. E eu estou imaginando se, um dia, Jesus baixasse à Terra. Vejo Cristo caminhando pela rua do Ouvidor. De passagem, põe uma moeda no pires de um ceguinho. Finalmente na esquina da avenida, Jesus vê d. Hél­der. Corre para ele; estende-lhe a mão. D. Hélder responde: — “Não tenho trocado”. E passa adiante.

[16/12/1967]

Nenhum comentário: