terça-feira, 12 de agosto de 2008

A GRANDE DOR NÃO SE ASSOA

A grande dor não se assoa. Eis uma verdade eterna. Não se assoa. Falei, no capítulo anterior, da senhora do Lemos ou, como era mais conhecido, “Lemos Bexiga”. Com frenética e acrobática agilidade, deu um pulo impossível e caiu montada, solidamente montada, no caixão. Mas não é bem isso que eu queria dizer.
O que eu queria dizer é que, da morte do Lemos até o fim do velório, ela não usou lenço uma única e escassa vez. Há tam­bém um pranto nasal. E a coriza da viuvez muito chorada cos­tuma ser inestancável. Pois bem. E quando algum imprudente queria oferecer-lhe um lenço, a viúva tinha repelões selvagens. Parecia-lhe que o simples fato de assoar-se seria uma desfeita ao marido morto.
Mas coisa curiosa e, ao mesmo tempo, confrangedora. Ao descrever essa viuvez acrobática que pula num caixão, e o caval­ga, dou-me conta de que, sem o querer, estou apresentando uma dor caricatural. De mais a mais, para exasperar o impacto humo­rístico, a senhora do Lemos era uma gorda. (As vizinhas da mi­nha infância eram fatalmente gordas.) Eis o que me pergunto, com justo pânico: — não estarei fazendo um involuntário deboche?
Nem tanto, nem tanto e pelo contrário. Acaba de me ocor­rer uma verdade realmente patética: — a grande dor não só não se assoa, como é humorística. O meu amigo Hugo Cota dos San­tos dá-me, a propósito, um testemunho altamente válido. Du­rante muitos anos, foi ele — e não sei se ainda o é — cirurgião do Pronto-Socorro. Um cirurgião do Pronto-Socorro vê tudo e faz tudo. A toda hora, chegava um crioulão de barriga estou­rada. Por vezes, o nosso Hugo fazia milagres deslavados.
Assim aprendeu que a verdadeira dor tem de ser humorís­tica. O Hugo viu coisas assim: — chegava um acidentado. Era um rapaz, ou uma menina, ou a noiva de não sei quem, ou a mãe de Fulano. A vítima está na mesa. Não há, a bem dizer, um osso intato. Tudo é fratura. Os vasos explodem. O sangue es­guicha. No corredor, amontoam-se os parentes, os vizinhos, ami­gos, o diabo. Até que o cirurgião pára. Ali, nem milagre. E agora é dar a notícia à família, que espera do lado de fora.
Nem é preciso dizer. De repente, todos sabem. Sabem an­tes da notícia. Morreu, morreu e pronto. O dr. Hugo viu a mes­ma cena duzentas vezes. As grandes dores se parecem e têm o mesmo repertório de gemidos, uivos, caras, gestos, fúrias e blas­fêmias. O meu amigo conta a morte de um menino atropelado. Uns vinte parentes no corredor. Quando o dr. Hugo apareceu, vê esta coisa: — mãe, tias, irmãos, cunhadas, dançavam, sim­plesmente dançavam. E, então, o médico descobriu tudo. A grande dor — a dor sem consolo terreno — dança mambo. Era exatamente mambo. As pessoas pulavam, chocalhavam, tinham espasmos de mambo.
Portanto, a senhora do “Lemos Bexiga” estava humoristicamente certa quando repudiava os lenços e quando montava, fisicamente, no caixão. Bem. Agora vou tratar da carta do Otto e de suas relações com a velhíssima dor humana. Antes, porém, quero referir um outro episódio que me marcou para o resto da vida. Foi quando verifiquei o seguinte: — o ser humano, tal como o imaginamos, não existe. Imaginem vocês que, há qua­tro ou cinco anos, fazia eu diariamente, na televisão, um pro­grama assim chamado: — A Figura do Dia. A “figura” tanto po­dia ser uma pessoa como um fato.
E, certa vez, “a figura do dia” foi um noivo que acabava de ser assassinado na Argentina. O telegrama dava conta de tu­do e chegava ao requinte da minúcia hedionda. “Bom assunto, bom assunto”, pensei eu. Diante das câmaras e dos refletores, e falando para umas seiscentas mil pessoas, contei tudo. Vamos ao fato. Certa família de lá celebrou, com um jantar, o noivado da filha única. Sentou-se o noivo, ao lado da menina, numa me­sa patriarcal. Presentes o pai da moça, a mãe, os irmãos e só. Pratos na mesa, talheres. E nada de comida.
Dez minutos, quinze, vinte. E, então, ergue-se o dono da casa. Diz: — “Não há comida. Portanto, um de nós será servi­do”. Os presentes riram; mas a fome era uma realidade. Tudo aconteceu numa progressão fulminante. Veio alguém por trás do noivo e deu-lhe uma cacetada de pôr abaixo um edifício. O rapaz morreu na hora, sem um suspiro. Estava morto. E, então, toda a família, inclusive a noiva, caiu sobre o corpo. Em qua­renta minutos, o rapaz foi devorado. Nem os sapatos sobrevi­veram.
Era o horror indubitável, inédito, jamais concebido por Ed­gar Allan Poe. E, no entanto, vejam vocês: — eu contava a his­tória e, já no meio, começou o riso. Quando a vítima levou a cacetada, o estúdio foi varrido por uma gargalhada universal. Riam o câmara, o contra-regra, o acendedor de refletores, o fa­xineiro, todo o pessoal da técnica. Isso na própria estação. Lá fora, nem se fala. Seiscentos mil telespectadores esganiçavam a própria gargalhada. Nunca se riu tanto numa cidade.
Tudo por quê? Era o horror e, ao mesmo tempo, não havia horror nenhum. E, de repente, eu próprio achava engraçadíssimo o horror. Lembro-me da cena final que descrevi, sem lhe tirar um miserável detalhe: — a noiva, atracada ao calçado da vítima, chupando-lhe os cordões dos sapatos como aspargos. Conheço uma senhora que ouviu o referido programa. Não há em toda a sua família um único caso de asma. Pois ela apanhou asma de tanto rir nessa noite.
Volto, finalmente, à carta do Otto. Não queria que o meu amigo desse, sobre o Guimarães Rosa, um testemunho de ad­mirador. As admirações são pérfidas e, via de regra, escondem o nosso ressentimento e a nossa impotência. O Otto devia es­quecer o grande homem. O morto é o contínuo, o profundo contínuo, o contínuo total. Não, não. O morto é o “Lemos Bexiga”, e como tal deve ser amado e chorado.
Mas, em toda a sua carta, o Guimarães Rosa é apenas o gran­de homem. O ficcionista está solene, hierático, como um mor­domo de filme. E realmente o Otto o admira, sem realmente chorá-lo. Na véspera de partir para Lisboa, ele trancou-se no ba­nheiro do Hélio Pellegrino. E, lá, num espasmo total de soli­dão, chorou como nunca. Na frente do Hélio ele dançou mambo de dor, E não se assoou. Aí é que está: — até a última lágri­ma, não aceitou nenhum lenço.
Li toda a carta e a reli. A admiração lá estava, perfeita, irretocável. Mas repito: — em nenhum momento, o Guimarães Rosa foi, para o Otto, um doce e irremediável “Lemos Bexiga”. Guar­dei no envelope a carta com toda a sua deliciosa afetação do sotaque lisboeta. E, então, comecei a pensar em Lili. Sim, Lili, a paixão de tantos.

[11/12/1967]

Um comentário:

Luis Guilherme disse...

Nunca havia lido qualquer dos escritos de Nelson Rodrigues. Comprei dele um livreto de contos e crônicas. Ontem li esta crônica e achei muito incrível a história do noivo que é devorado pela noiva e sua família. Parece uma história tão absurda, tão fantástica...Acredito em Nelson Rodrigues, mas será que alguém poderia me confirmar se de fato esta história ocorreu?
Agradeço a atenção...
Beijos...
Esdras Emmanuel