quarta-feira, 6 de agosto de 2008

O GRANDE HOMEM


Sou um obsessivo e volto a falar de Guimarães Rosa. O que me feriu, na morte do ficcionista, foi a aridez do seu velório. Sei, evidente, que a visitação não parou. Como se saía e como se entrava! E, coisa curiosa: não senti, nas caras presentes, ne­nhum sentimento maior. Fora a família, só vi duas pessoas mar­cadas pelo espanto da morte: — Franklin de Oliveira e Gustavo Corção.
(Parece uma perversidade pôr, lado a lado, e chorando o mesmo morto, duas figuras tão dessemelhantes.) Passei na Aca­demia uns dez, quinze minutos; e saí de lá certo de que o gran­de homem é o menos amado dos seres. O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: — um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por den­tro, e não entranhas vivas.
Vou concluir: — o velório de Guimarães Rosa teria de ser fatalmente frio por se tratar de um grande morto. Fosse ele um Lemos qualquer, e teria, não uma apoteose crítica, mas lágri­mas inumeráveis. Sem querer, disse o nome certo: — Lemos. Esse Lemos existiu e, se não me engano, trabalhava na Casa da Moeda (na Casa da Moeda ou na Imprensa Nacional).
Vejamos o nome: — Lemos. Lemos, como Oliveira, é no­me de vizinho. Um sujeito que se chama Lemos só pode ser vi­zinho; e o citado morava na casa ao lado da minha. Era ainda em Aldeia Campista. Um patusco e pior: — homem de vir, para o meio-fio, de pijama, aparar os calos com gilete. E fazia isso com um deleite, um requinte, um lavor inexcedíveis. Outro da­do biográfico: — mal sabia assinar o nome.
Pois um dia o Lemos morreu. Teve, em pleno expediente, isso que o repórter chama de “mal súbito”. E morreu. Eu era garoto e essa morte foi um dos espantos da minha infância. Al­deia Campista parou por causa do Lemos. Nunca vi ninguém tão chorado. Veio gente da Pavuna, de Quintino, do Encanta­do. Favelados desceram.
Desde garotinho que eu sou um fascinado por qualquer dor, inclusive as físicas. E posso dizer que não houve, no velório do Lemos, ninguém omisso, indiferente ou frívolo. As pessoas que lá entravam começavam a estrebuchar, a bater com os pés, co­mo em transe mediúnico. Perdi a conta dos ataques. E, na hora de fechar o caixão, foi espantoso.
Eis o fato: — com súbita e frenética agilidade, a viúva deu um pulo inverossímil. Deu um pulo e montou, solidamente, no caixão. Era uma senhora gorda e fez isso. Teve que ser arrastada por uns dez. Fecho os olhos e ouço os seus gritos: — “Quero ser enterrada com o Lemos!”. E esganiçava o apelo: — “Me leva contigo! Lemos, Lemos!”. Também ela o chamava de Lemos.
Conto o fato para concluir: — por que todo esse elenco de uivos? Explico: porque morrera o antigênio, o antigrande ho­mem. É fácil amar e chorar o pobre-diabo. Ainda por cima, aos dezessete anos, tivera varíola. Era chamado de “Lemos Bexi­ga”. Ao passo que somos ressentidos contra o sujeito que fun­da uma língua, inventa um Brasil e tira um sertão inédito da pró­pria cabeça como de uma cartola.
Mas falei, falei, e não estou dizendo o essencial. O que cha­mo essencial é a carta que acabo de receber do Otto ou, por extenso, Otto Lara Resende. Ora, uma carta do Otto é, para mim, uma experiência desconhecida. Ele nunca me escreveu e vou mais longe: — nunca me telefonou. E, súbito, recebo uma car­ta imensa. Quase não acreditei e passei os olhos na assinatura. Mas o nome lá estava, indubitável, limpidíssimo: — Otto.
Agora vem o já referido essencial: — o meu longínquo ami­go trata, como não podia deixar de o fazer, do Guimarães Rosa. Eram amigos, foram íntimos, uniram as suas gargalhadas em pia­das recíprocas e lapidares. Mas, antes de entrar no assunto “Gui­marães Rosa”, quero dizer duas palavras sobre o “novo” Otto. Não exagero. O Otto que daqui saiu não tem nada a ver com o Otto que lá está.
Sim, o Otto de Lisboa é um, o de São João Del-Rey, o da tv Globo, é outro. Já domingo, no Jornal do Brasil, saiu um artigo do “novo” Otto. O leitor lê, lê e não entende que o nome do mineiro lá esteja. O Almeida Garrett assinaria tal página com a maior desfaçatez. De mais a mais, eu e o Hélio Pellegrino fala­mos com o Otto pelo telefone internacional (custou-nos a liga­ção uns duzentos mil cruzeiros). E nada descreve o nosso estu­por. A voz que ouvíamos não era a do Otto mas a do Leopoldo Fróes. O Otto fala como Leopoldo Fróes. É o mesmo sotaque lisboeta, sem tirar nem pôr.
(E, por isso, digo eu que o brasileiro nunca pode viajar. Foi para Lisboa um Otto Lara Resende e Portugal vai-nos devolver um Leopoldo Fróes.) Mas o caro amigo fala, em certo trecho da carta, em Guimarães Rosa. Confesso a maligna curiosidade com que li tal passagem. Nós estávamos aqui, isto é, a dois pas­sos do acontecimento. Qualquer táxi nos levaria ao velório. Ao passo que havia entre o Otto e o Guimarães Rosa todo um oceano a separá-los. Que influência teria a distância nas leis da emo­ção ou, melhor dizendo, da dor? É o que eu ia ver.
Mas o comportamento humano não tem nenhuma simpli­cidade. Quando surgiu, na carta, o nome de Guimarães Rosa, fiz um suspense para mim mesmo. Parei de ler e puxei um ci­garro. Comecei a imaginar o que dizia o Otto sobre o ficcionista. Não me interessava sua admiração. O admirador porta-se mui­to mal diante da morte. Acendendo o cigarro, eu me lembrava da visita que nos fez, há tempos, o Jean-Paul Sartre. Fui a uma de suas conferências. Gente escorrendo do lustre, subindo pe­las paredes. E os presentes lambiam o Sartre com a vista. Olhei aquilo e concluí que há admirações abjetas. Justamente, eu não queria que o Otto fizesse do Guimarães Rosa um Sartre.
Li a primeira frase e parei. Eis o que me perguntava: — Se­rá que o Otto chorou pelo amor do Grande sertão? Na véspera da partida para Portugal, ele passara na casa do Hélio Pellegri­no. Os dois foram para a cozinha tomar leite gelado. E, de re­pente, o Otto começou a chorar. No pânico e vergonha das pró­prias lágrimas, correu para o banheiro. E, lá, se trancou com o Hélio. O Otto soluçava. Era uma dor sofrida, mugida. Por quem chorava ele? Por nós, pelo Brasil ou pela própria e inefá­vel miserabilidade? Pois eu queria que, na carta, ele chorasse também como se o Guimarães Rosa fosse o próprio “Lemos Be­xiga”. Mas comecei a ler e, de repente, tive medo.

[9/12/1967]

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