terça-feira, 5 de agosto de 2008

NENHUM VENTO PODE APAGAR


Quando ando de táxi, sinto uma euforia absurda e terrível. Isso vem de longe, vem de minha infância profunda. Bem me lembro dos meus seis, sete anos. Meu pai deu um passeio de táxi, com toda a família; e eu, na frente, ao lado do chauffeur, teci toda uma fantasia de onipotência. Repito: o táxi ainda me compensa de velhas e santas humilhações.
O ônibus, não. Quando ando de ônibus (e, às vezes, só te­nho o dinheiro contadinho do ônibus), viajo como um ofendi­do e sou, realmente, um desfeiteado. É uma promiscuidade tão abjeta, que eu diria: o ônibus apinhado é o túmulo do pudor. “Exagero”, dirão. Paciência. Mas quando eu passava fome, que­ria ser rico, e não para ter palácios ou andar de Mercedes. A mi­nha obsessão nunca foi a Mercedes, nunca foi o palácio. Sim­plesmente, queria andar de táxi e nada mais.
Fiz a introdução para referir certa viagem de ônibus. Preci­sava ir à rua Mariz e Barros. Como tinha pouco dinheiro no bol­so, apanhei um ônibus e lá vim eu, em pé, pendurado numa argola. Enguiçamos na praça Onze. Ao lado, estava o edifício da Última Hora. No meio de pardieiros, e com a favela por fundo, o edifício da Última Hora era um pavão enfático. Salto e vejo, mais adiante, uma aglomeração.
O brasileiro é um fascinado por qualquer ajuntamento. Também fui espiar. Lá estava ele, o cadáver. “De cor parda”, diria o repórter de polícia. Acabara de ser atropelado e era um defunto desfolhado, despetalado ou que outro nome tenha. E, ao lado, alguém acendera uma vela. Disse “alguém” e já retifi­co: — ninguém. Eis o mistério dos nossos atropelados. Sem que ninguém a ponha, sempre aparece uma chama que nenhuma chuva, nenhum vento, consegue apagar.
E, por todo um dia, por toda uma noite, fica ardendo a es­trela do atropelado. Essa piedade de rua, de esquina, de meio-fio, só existe no Brasil. Nos outros povos, mão nenhuma se lem­braria de acender uma vela pelo defunto desconhecido.
Eis o que eu queria dizer: — quando entrei na Academia, e vi a miséria dos círios elétricos, comecei a pensar no morto da praça Onze. Eu teria preferido, em vez de quatro lâmpadas estúpidas, a vela solitária do atropelado. Não me demorei. Eis a verdade: — tenho medo do morto ilustre. A visitação, que não pára, é tão sem amor! Olho a curiosidade frívola dos que vão espiar o morto. Vejo o Franklin de Oliveira. Esse podia estar ali. Andava de um lado para outro, errante na própria solidão. Fala comigo. Mas a sua voz é inaudível como o hálito. Descu­bro, num canto, Gustavo Corção.
Corção, já com setenta anos feitos, tem um coração ator­mentado e puro de menino. Conversamos num canto; e, baixi­nho, contou-me a morte de Guimarães Rosa. O autor estava só em casa quando começou a passar mal. Liga para uma senhora conhecida: — “Fulana, estou-me sentindo mal. Ouviu? Estou-me sentindo mal. Chame o médico”. Repetia: — “Chame o mé­dico. O médico”. Desatinada, a senhora pede: — “Espera, que eu vou chamar”. Sem desligar, corre para alguém, manda cha­mar o médico. Quando apanha de novo o telefone, ouve o ami­go: — “Socorro. Socorro”. Mas era um apelo sem ponto de ex­clamação.
(Não acredito no medo da morte que, a meu ver, ninguém tem. Há inversamente, em todos nós, a nostalgia da morte. Tam­bém não acredito no medo de Guimarães Rosa. Nem a morte foi uma visita. Há muito tempo que os dois se entendiam. E o escritor chegou a datá-la. Pode-se dizer que havia uma convi­vência e que ele se tornara íntimo da própria morte.)
Quando estive na Academia, senti que, fora a família, só Franklin de Oliveira e Gustavo Corção podiam estar ali. As es­tagiárias, não. As estagiárias formam a nova classe da imprensa. Invadiram o velório; atropelavam todos os que não fossem so­lidamente desconhecidos. Eu conversava com o Corção quan­do uma delas me interpelou: — “O que é que o senhor acha do Guimarães Rosa?”. Estava com um bloco, um lápis e espera­va o meu juízo final. Para ela, Corção, o reacionário, não exis­tia. Só queria a minha opinião. Sentindo-me irremediavelmente imbecil, comecei: — “Guimarães Rosa é o renovador”. Pa­ro, numa brusca vergonha da trivialidade. Renovador e que mais? Concluo: “Renovador do romance brasileiro”.
Só três dias depois comecei a ter pena de Guimarães Rosa, amor por Guimarães Rosa Fui com o Carlos Heitor Cony ao Garoto do Papai, um boteco que fica, ali, na primeira esquina. A pretexto de tomar uma média, nós vamos fazer literatura. Con­versamos sobre Guimarães Rosa. O Cony foi o primeiro a cha­mar o autor de Grande sertão de “o novo Coelho Neto”. Mas nem sempre a opinião da véspera é a mesma do dia seguinte. Quem sabe se o Cony não seria, como o Hélio Pellegrino, um ex-restritivo? Foi nessa esperança que o interroguei.
E, então, para o meu horror, ele deixou de lado o Coelho Ne­to e pôs-se a falar no Conselheiro Acácio. O amigo negava até o célebre “viver é muito perigoso”. Gaguejei: — “Escuta. Mas Con­selheiro Acácio?”. Comecei a repassar os tipos de Eça. Via o Pa­checo falando: — “Enquanto Vossa Excelência faz berreiro, eu, aqui, no meu canto, faço luz”. Com uma certeza jucunda, o Cony insistia: — “Aquele ‘o sujeito morre para provar que viveu’ é Acá­cio. Tem santa paciência. Mas é Acácio”. No meu escândalo, balbuciei: — “E o ‘A terceira margem’ também é Acácio?”.
O outro fez a concessão: — “‘Terceira margem’ é bom!”. Ainda insisti: — “E o resto? Que diabo! A linguagem!”. Cony retruca: — “A linguagem quem faz é o povo”. Primeiro, foi uma revisão crítica de calçada. Por fim, talvez por cansaço físico, o Cony admitiu que Guimarães Rosa era um grande escritor, mas com algum Acácio. Entramos no Garoto do Papai. Estava, lá, o Reynaldo Jardim. Viro-me e faço-lhe a pergunta, à queima-roupa: — “O que é que você acha do Guimarães Rosa?”.
A resposta, fulminante, veio num berro: — “Um bolha!”. Des­ta feita, a gíria tornava a desfeita maior. Exaltei-me também. Mas, quando falei da linguagem, do idioma fundado, o Jardim dava pu­los de indignação: — “Um falsário! Um falsário!”. Por um momen­to, eu não sabia mais o que dizer, o que pensar. O Reynaldo repe­tia, na fúria polêmica: “Falsário da linguagem”. Comecei a beber o meu copo de leite (a úlcera tinha contrações de víbora mori­bunda). E, súbito, fui varado por uma dessas certezas inapeláveis, fatais: — Guimarães Rosa era o único gênio de nossa literatura.

[7/12/1967]

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