sábado, 6 de setembro de 2008

AMORAL COMO UM BICHINHO DE AVENCA

Uma madrugada, saio da Grande Resenha da tv Globo e passo no Antonio’s. Levava comigo a fome da madrugada e so­nhava com um bife. Entro e dou de cara com o Aloysio Salles. Ao me ver, ele ergue o gesto e faz esta saudação parnasiana: — “Tudo é um domingo de regatas!”. A exclamação soou nostál­gica como um apito de trem na distância noturna.
O Antonio’s estava apinhado. Mas ninguém entendeu o sú­bito e diáfano “domingo de regatas”. Só eu entendi. E houve, ali, entre mim e o amigo, uma compreensão fulminante e total. Aloysio falava o idioma da memória, que eu conhecia e os ou­tros não. A geração do Antonio’s tem pouco passado.
Para a rapaziada de hoje, o Pavilhão Mourisco deixou de ser paisagem, deixou de ser domingo, e repito: — o Pavilhão Mourisco é uma linha de ônibus. Aloysio pôs diante dos meus olhos um translúcido domingo de soneto. Eu via de novo o Pa­vilhão Mourisco. Homens de fraque e bengala; e os chapéus in­verossímeis das mulheres.
No “domingo de regatas”, a mulher era mais chapéu do que vestido. Não sei se me entendem. Ah, o que as mulheres levavam na cabeça por toda a Belle Époque. O sujeito não via o rosto, a beleza, os dedos e os anéis. Não. Só via o chapéu e a imitação de uvas, cerejas, ameixas, que vinha por cima. Essa natureza-morta fascinava inclusive os velhos.
Falo do “domingo de regatas” e, no entanto, vejam vocês, o que me interessa é o “domingo de missa”, de uma beleza muito mais antiga. Eu não vou à missa, isto é, quase não vou. De vez em quando, porém, sou tocado pela graça do domingo. E, então, levo à primeira igreja do caminho a minha fé envergonhada e relapsa.
Foi o que aconteceu, no último domingo. Entre parênte­ses, não sei se foi Pio xi (foi Pio xii, sim) que viu Deus. Estava num jardim e viu, fisicamente, Deus. Lembro-me de que o Paris-Match fez, a propósito, uma reportagem de dez ou doze pági­nas. Ora, não me espanto que alguém, papa ou não, veja Deus. O que me assombra, realmente me assombra, é que Deus não seja visto, a toda hora e em toda parte por todo mundo.
Quanto a mim, tenho esta certeza obsessiva: — eu hei de vê-Lo. Ele é alguém tão pessoal, plástico, tangível como Victor Hugo, Deus com as barbas de Victor Hugo, as sobrancelhas de Victor Hugo, sobrancelhas tão ásperas e eriçadas como as cerdas bravas do javali.
Volto ao meu “domingo de missa”. Entro na igreja em ple­no sermão. Está falando um jovem padre. Ah, quando estou na igreja, e vejo o sono dos círios nos altares, e o frêmito das re­zas, sinto angústias tremendas. Há em mim o despertar de ve­lhas culpas e a memória de não sei que abjeções.
Começo a ouvir o jovem. E que diz ele? Diz o seguinte: — “Eu não aceito mais a confissão de criança. Criança não peca”. E repetia, crispado de certeza fanática: — “Criança não pe­ca”. Não esperei nem mais um minuto. Criança não peca. Com um piparote, ele derrubava todas as culpas infantis.
Doeu-me que alguém visse na criança um ser mínimo e tão amoral como um bichinho de avenca. Vim para a rua, entrei num café. Pedi ao garçom: — “Carioquinha”. E, mexendo o café, tinha a sensação de que o sermão degradara a criança. Se é ver­dade que um menino está isento do bem e do mal, então é um pequenino canalha.
Lembro-me de coisas que eu fazia, aos oito, nove anos, e que me causaram lesões de sentimentos ainda não cicatrizadas. Um dia, dei um tapa num menino. Ainda tenho o seu nome: — Ernesto, filho da lavadeira. (A lavadeira, bem velhinha, era cega de um olho. Certa vez, eu a vi discutindo com uma freguesa. A outra chamara a velha de “mulher”, “essa mulher”. A lava­deira pulou: — “Mulher é a senhora!”. Foi presa. Ao voltar do distrito, soluçava na rua: — “Eu não sou mulher! Eu não sou mulher!”.) Mas, como eu ia dizendo: — dei na cara do garoto.
Dar na cara. Não sei se nos outros povos e nos outros idio­mas a bofetada tem a mesma transcendência. Mas, para o brasi­leiro, a bofetada é sagrada. Criei-me ouvindo o adulto dizer: — “Se alguém me der na cara, eu mato, mato!”. E a minha mão esta­lou na cara do filho da lavadeira. Depois, num circo, vi o mesmo som quando os palhaços se esbofeteavam no picadeiro. Mas eis o que eu queria dizer: — essa bofetada marcou-me fisicamente.
Fui varado por um sentimento de culpa que ainda hoje, qua­se meio século depois, me persegue. De vez em quando eu co­meço a me sentir um pulha. Sofro como um réu. Sou réu, mas de que, meu Deus? E, de repente, há um clarão interior e vejo tudo. É a bofetada que ainda está em mim, é culpa que não pas­sa. Eis o que aprendi no episódio infantil: — é melhor ser esbofeteado do que esbofetear.
Antes de passar adiante, desejo notar que a consciência infan­til tem um dramatismo que nós, adultos, já perdemos. Dois dias de­pois do sermão recebo uma carta quase anônima. Digo “quase” porque a senhora (era uma senhora) assinou apenas com as iniciais. Contou que era minha vizinha no tempo em que eu morava na travessa Angrense, em Copacabana. E deu a idade: sessenta anos.
Veremos, em seguida, como a idade é, no caso, um dado fundamental. Imaginem que esta senhora é uma católica, diga­mos assim, de berço. Nunca, em momento nenhum, sua fé co­nheceu uma dúvida. E há dez, doze ou quinze dias, ela entrou numa igreja para se confessar. O padre que a atendia habitual­mente, velhinho e santo, estava morre, não morre. Teve que re­correr a um outro, salubérrimo e progressista.
E não imaginava que ia passar por uma dessas experiências de vida que ninguém esquece. Começou a falar. O confessor ou­via só. Houve momentos em que a pobre senhora imaginou que o outro estivesse dormindo. E, súbito, o padre pergunta: “Que idade tem a senhora?”. Disse, espantada: — “Sessenta”. O outro insiste: — “Sessenta? A senhora disse sessenta?”. Percebeu que o padre ia num crescendo de irritação. Ele continua: — “E a se­nhora vem pra cá com sessenta anos?”.
Aterrada, balbuciou: — “Como? O que é que o senhor está dizendo?”. E o progressista: — “Isso não é idade de se pecar, minha senhora. Aos sessenta anos ninguém peca. Quer dar seu lugar à próxima? Passar bem, minha senhora”. A pobre levantou-se. Saiu dali, como se fugisse. Apanhou o táxi, soluçando. Está chorando até hoje.

[10/1/1968]

Nenhum comentário: