quarta-feira, 3 de setembro de 2008

A ÚLTIMA “MULHER FATAL”

E eis que o vizinho mudou-se para o Engenho Novo. Dois ou três dias depois, chega o novo morador, aliás moradora. A andorinha da mudança encostou. Num instante, a calçada encheu-se de cadeiras, mesas, camas e até um piano. Em segui­da veio, de táxi, d. Selma, com trouxas, criada e a cadelinha pre­ta, de nariz fino e orelhas vibrantes. Os crioulões iam carregando os móveis para dentro. Ah, lembro-me de uma bacia de lou­ça, com flores desenhadas em relevo.
Da janela, eu via tudo. Na minha infância, não havia mu­dança intranscendente. O que chegava ou o que partia era um ser inquietante, ameaçador. Bem me lembro de d. Selma. Hoje não há mais “a mulher fatal”, como nos velhos folhetins ou no antigo cinema mudo. D. Selma teria sido a última “mulher fa­tal”. Às sete da manhã, vestia-se de veludo. E, a cada movimen­to seu, era um frêmito, um alarido de pingentes, colares, braceletes, o diabo.
E mais: — mal podia com o peso dos quadris. Não tinha marido, nem filhos. Era viúva. Dois ou três dias depois, come­çou a visitação masculina. Mas a vizinhança já sabia, que d. Sel­ma, além de viúva, era noiva. Ninguém estranhava que o noivo saísse e, meia hora depois, voltasse com outra cara, outro terno e até outra cor. Lembro-me de que, certa vez, ele apareceu pre­to. Sim, era um crioulão, plástico, ornamental, de polainas.
Mas estou-me fixando em d. Selma e, na verdade, a heroí­na da presente história é a cadelinha preta. Chamava-se Tum-Tum. Guardem o som: — Tum-Tum. Hoje, Tum-Tum me pare­ce nome de Pearl Buck ou de criada de Madame Butterfly.
Esquecia-me de dizer que d. Selma morava num sobrado. E a Tum-Tum enfiava a cabeça, por entre as colunas da varan­da, e ficava espiando ou latindo para os que passavam. Jamais, por um momento, se viu Tum-Tum sozinha na rua. Só descia no colo da dona, como um bebê. Eis a verdade: — d. Selma a preservava com o zelo feroz de uma Bernarda Alba.
Até que, uma tarde, ouço alguém dizer: — “A Tum-Tum está amando”. Era verdade. Estava amando. Havia um cachor­ro chamado Maxixe, apelido que tinha a sua explicação. Era um vira-latas, gordinho e malhado. Na cadência do seu trote, ba­lançava os quadris fartos. Maxixe era a dança da época. E, quan­do ele aparecia, os moleques pulavam como índios de filme: — “Olha o Maxixe!”. Outros o apedrejavam.
Para mim, aquele idílio era um mistério. Eu não entendia que Maxixe não viesse sempre, ou por outra: — ele vinha uns dias e, depois, sumia. Era cachorro da Pereira Nunes e só vinha à rua Alegre por causa da cadelinha preta. Era patética a sua obs­tinação. Mesmo debaixo de chuva, ficava no meio da rua, não na calçada, no meio da rua, olhando a sacada. Não sei como não foi atropelado umas 150 vezes. Varava assim os dias, as madrugadas. E depois desaparecia por uns tempos.
Na época própria, ei-lo de volta. Aí está dito tudo: — eu nada sabia da “época própria”. E tudo se repetia exatamente. Maxixe ficava no meio da rua. Era um desejo sem esperança e, apesar disso, fidelíssimo. Até que, um dia, a rua descobriu o que se escondia ou, por outra, o que não se escondia por trás da viuvez e do noivado de d. Selma. Simplesmente ela pertencia à “mais antiga das profissões”. E, uma tarde, apareceu um su­jeito. Podia parecer outro noivo. Não. Era a polícia. E, assim, foi expulsa da rua, expulsa de Aldeia Campista. Da janela vi quan­do tomou o carro. Levava no colo a cadelinha.
Antes de entrar no táxi, virou-se por um momento. Esganiçou-se numa maldição: — “Quem me denunciou” — foi seu berro — “há de morrer com uma ferida na cabeça”. Tudo aquilo me doeu. Achei d. Selma uma vítima, quase uma santa. Ah, eu, com o fervor dos meus cinco ou seis anos, acreditava que o noivo, embora mudasse de cara, de idade, de terno e de cor, era uma mesma e indivisível pessoa. “Sem-vergonha!”, era o que diziam as donas da rua. Desejei que todas, todas, apanhas­sem a tal ferida na cabeça.
E eu não sabia que Tum-Tum e Maxixe eram o Sexo. O que achei lindo, no idílio, foi a distância. Maxixe cá embaixo e Tum-Tum lá em cima e, entre os dois, repito, uma distância infinita, milenar. (No capítulo de ontem dizia eu que o Sexo faz cana­lhas e que não há um santo do Sexo. Hoje, retifico. Há, sim, um santo do Sexo: — o casto.)
Isso que acabo de contar é tão antigo que eu não sabia, en­tão, que Sexo se chamava Sexo. Comigo mesmo ocorrera algo parecido muito antes. É um episódio que já contei mas que me­rece uma reprise. Uma manhã estou eu em casa vendo as gra­vuras do Tico-Tico. De repente entra uma vizinha. Entra trope­çando nas cadeiras. Assim se dirigiu à minha mãe: — “D. Fula­na, qualquer filho seu pode entrar na minha casa. Menos o Nel­son!”. Na sua ira, ventava fogo.
Eis o que me pergunto até hoje: — que fiz eu para merecer fúria tamanha? Tinha quatro anos, não mais, exatamente qua­tro anos. Era tão pequeno que, naquele justo instante, uma tia costurava a minha calça e eu estava sem ela, com a camisinha na altura do umbigo. E pior: eu não me lembrava de nada e re­pito: — eu me sentia tão inocente como alguém que paga por um pecado de vidas passadas. A santa senhora era mãe de uma menininha que, aos cinco anos, viria a morrer de paratifo.
Terá sido a garotinha de quatro anos a vítima de outro garo­tinho também de quatro anos? Até hoje, repito, não sei. Mas ve­jam como o meu primeiro pecado é anterior à memória. Teria eu meus onze anos quando me infligiram as primeiras aulas de “Edu­cação Sexual”. De vez em quando lê-se que a doméstica Fulana, parda, foi arrancada do namorado e seviciada não sei em que ter­reno baldio. Pois foi esta a minha sensação. Eu me sentia violado quando o professor falava em Sexo (e, de amor, nenhuma palavra).
Por que dizer aquilo a meninos e meninas e não a cabras, bezerros e vira-latas? O Sexo, estritamente Sexo, nada tem a ver com o pobre e degradado ser humano. É, repito, um problema dos já referidos bezerros, vira-latas e cabras. E nunca ninguém se dispôs a ensaiar uma “Educação Amorosa”.
Não me venham falar dos instintos (até hoje não sei por que os temos e não sei por que os suportamos). O homem começa a ser homem depois dos instintos e contra os instintos.

[4/1/1968]

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