Desculpem, mas volto à minha infância. Tenho usado muito uma imagem, que é a seguinte: — o menino está enterrado no adulto como um sapo de macumba. Nada mais verdadeiro. Esse menino perene, dos seus sete, oito anos, existe em mim como no dr. Brito. Eu o sinto, a toda hora e em toda parte. E assim qualquer emoção é um pretexto para a volta à rua Alegre, à Aldeia Campista.
No capítulo de ontem, isto é, de anteontem, falei, de passagem, na fome de 1918, 19 e, até, 20. Dirá alguém que a fome é a mesma em qualquer tempo em qualquer idioma. Ilusão. Não é a mesma ou por outra: — conforme a época e o país, varia de tipo, de gosto, de ênfase. Ora, naquele tempo a fome era mansa e quase agradecida. Direi mais: — o pobre não tinha nem o direito de invejar. Minha infância está cheia de cenas cruéis. Lembro-me de um roto, de um esfarrapado, que viu um rico, e o lambeu com a vista.
Anos depois, a fome passou a ter outras reações. Há pouco tempo, houve um episódio que seria inviável em 1919. Vamos ao fato. Na véspera do Natal, houve um assalto. Era um boteco, na hora de fechar. O português ia justamente arriar a porta de aço quando sentiu um cano nas costas e a voz: — “É um assalto”. Tudo aconteceu numa progressão fulminante. O luso entrou e, atrás dele, os três bandidos (exatamente três).
Era um boteco não sei se da Penha, Brás de Pina ou por aí. Um dos assaltantes baixou a porta de aço. Disseram ao português: — “Senta aí”. E ameaçaram o homem de um “banho de balas” caso arriscasse um gesto suspeito. Naquele momento, o nosso luso era esperado em casa para a grande ceia. Parentes chegados de Portugal estavam lá. Três ou quatro garrafões de um santo vinho iam inundar a família.
O português começou por chamar os assaltantes de “meus filhos”. Disse-lhes onde estava o dinheiro; deu-lhes a chave; e só pedia, como uma criança: — “Levem tudo, mas não me façam mal”. Um crioulo magro o encara: — “Está falando muito. Quer morrer, ô galego?”. O outro parou. O terror alumiava o olho enorme. E, então, os bandidos limparam tudo, rasparam o dinheiro, arrancaram o anel e o relógio da vítima. O português ainda balbuciou que não lhes queria mal e quase os abençoava.
Chegou a hora de fugir. Disseram: — “Fica quieto ou morre”. Dois iam na frente e o crioulo magro por último. Meia porta de aço foi erguida. Passaram os dois primeiros, o crioulo magro pára um momento. Fala: — “Toma um presente de Natal”. Estava de revólver na mão e puxou o gatilho. Uma bala estourou a barriga do português. No seu espanto, ergueu-se. Morreu na hora. Estava morto e continuava de pé. Adiante, um táxi esperava os bandidos. O crioulo magro, de peito cavo, foi o último a entrar. O carro partiu. Ao dobrar a primeira esquina, derrapou como os gangsters de filme.
E, por um momento, ainda ficou de pé o cadáver espantado. Morreu sem saber por que o matavam. Eis o que eu queria dizer: — na minha infância, o presente de Natal era uma impossibilidade. É certo que em 1919 ainda se falava muito do crime de Roca e Carleto. Mas Roca foi preso e dizia: — “Sou inocente!”. Julgado e condenado, repetiu: — “Sou inocente!”. Passou não sei quantos anos na prisão. Lá, de vez em quando, punha-se a berrar: — “Eu não matei! Eu não matei!”.
Não sei se Roca matou. Sua obsessão de inocência era tão feroz que ele próprio há de ter perdido qualquer noção de culpa. Mas eis o que eu quero ressalvar: — se matou, não foi por fome. A fome daquele tempo não matava. (Mataria antes e depois: naquele tempo, não.) O assassino ou suicida era o amoroso. Aí está dito tudo: — o ódio nascia do amor e não da fome.
Se alguém traduzisse as manchetes de O Dia e da Luta Democrática para um turista, este havia de pensar, por outras palavras: — “O brasileiro vive matando o ser amado”. Cabe uma retificação: — antes matava mais. Por toda a Belle Époque, até 1920, por aí, o marido, a mulher, os namorados brincavam com a morte. Sem desconfiar brincavam com a morte. Uma jovem nunca sabia se estava flertando com o seu assassino.
Em nossos dias, um dos tipos de relação conjugal não excepcionais é o seguinte: — a infidelidade recíproca e consentida. Os dois sabem. O “último a saber” das velhas gerações passou de moda. Hoje é comum que o marido saiba antes dos outros e, por vezes, antes da infidelidade. Há os que adivinham, sim, os proféticos.
Via de regra, o nosso jornal moderno tem pudor de valorizar e dramatizar o crime passional (fora os casos já referidos de O Dia e da Luta Democrática). Marido que mata mulher, ou mulher que mata marido, é tratado sem nenhum patético, em forma de pura, sucinta e objetiva informação. (O Jornal do Brasil vai mais longe. Ignora qualquer modalidade de crime e de criminoso. Os atropelados, os esfaqueados, os enforcados, que comprem outros jornais. O do Brasil não lhes dará a mínima cobertura. Um dia, por força do seu desenvolvimento, este país terá o seu vampiro. Mas não se preocupem. No dia em que alguém chupar a carótida de alguém, o sangue há de tingir todas as primeiras páginas. Só a do Jornal do Brasil continuará firme no seu preto e branco.)
Em 1919 a nossa imprensa gostava de sangue. O futebol ainda não se instalara na primeira página. E a adúltera assassinada era mais promovida do que a Bovary ou a Karenina. A reportagem invadia o necrotério, a alcova, e fazia um saque de fotografias e cartas íntimas. Lembro-me de um senador, tribuno fabuloso, patriota de causas sublimes. Um dia descobre que era traído e fuzilou a mulher. Não houve o flagrante e, depois das 24 horas, lá estava ele na porta do cemitério. Quando o caixão da vítima ia passando, cuspiu-lhe em cima.
Tudo isso, inclusive a cusparada, saiu nos jornais mais graves. E a Aldeia Campista em peso disse: — “Bem feito! Bem feito!”. O senador fez isso, ainda enxugou com o lenço a saliva vingadora e foi tomar o táxi, adiante. Eu então já sabia ler. Saí do Tico-Tico para as histórias de amor e morte. Descobria que o homem mata e se mata por amor. E quando num crime havia amor, eu me crispava de beleza.
Dizia eu que o idílio mais terno e manso podia ser um ensaio para a morte. Um dia saiu nos jornais um episódio que assombrou a cidade. Imaginem dois namorados, ele dezessete, ela dezesseis anos. As duas famílias faziam gosto. Ao cair da tarde, passeavam na calçada de mãos dadas. Iam ficar noivos e, de quinze em quinze minutos, um gostava mais do outro. Até que um dia saíram para visitar uma tia. E lá não chegaram. No dia seguinte, encontraram os dois, perto da Cascatinha, e mortos. Ao lado, um vidro de um desinfetante então muito usado — Lysol. Um bilhete assinado pelos dois, dizendo: — “Morremos felizes”. Só. Foi então que eu, ferido de espanto, descobri: — quem nunca desejou morrer com o ser amado, não conhece o amor, não sabe o que é amar.
[8/1/1968]
quinta-feira, 4 de setembro de 2008
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