segunda-feira, 29 de setembro de 2008

NINGUÉM PODE SABER QUE VOCÊ AMA

Durante um mês, andou de amigo em amigo, perguntan­do: — “O que é que eu vou fazer?”. Ninguém entendia: — “Fa­zer como? Sei lá”. Como era um medíocre ou, segundo os mais taxativos, “uma besta”, ninguém estava interessado nos seus atos passados, presentes ou futuros. Até que chegou a minha vez. Entramos num bar, ou boteco, e ele me atropela: — “Dá um palpite. O que eu vou fazer? Diz lá. O que é que eu estou tra­mando?”.
O garçom, um espanhol, apareceu. Ele pediu uma cerveja “geladíssima” e eu nem me lembro. A primeira idéia que me ocorreu foi esta: — “Casamento?”. Parece que a hipótese ma­trimonial o surpreendeu. Quis saber: — “Interessante. Por que é que você falou em casamento?”. Disse: “Nada, rapaz. Falei por falar. Você estava noivo, ora essa!”.
E, então, sem nenhuma inflexão especial, em tom estrita­mente informativo, deu à queima-roupa a notícia: — “Minha noiva morreu”. Encarei-o com um interesse maior. Para mim, a morta tem mais densidade do que o morto. Lembro-me de uma mocinha que morreu em Aldeia Campista. Fui ao velório. Teria uns dezessete anos, se tanto. Se fosse um rapaz, sua mor­te teria menos espanto e menos mistério.
Perguntei: — “Morreu de quê?”. Respondeu: — “De amor”. Fez uma pausa. Bebeu cerveja com uma sede brutal. Pôs o copo na mesa; enxugou a boca com as costas da mão. Perguntou: — “Que idéia você faz do casamento? Falo do casamento de amor. Os outros não interessam”. Segundo ele, o casamento de amor de­via ter o sigilo do adultério. Nada de proclamas. Ninguém devia saber, jamais.
Com ardente seriedade, repetia: — “Falo do casamento de amor”. Não sendo de amor, podia ter uma assistência de Fla-Flu. O homem e a mulher deviam casar-se num terreno baldio, à meia-noite, à luz de isqueiros ou de vela. O padre falaria bai­xinho para que nem os sapos, nem os gafanhotos percebessem. E, depois, os noivos iriam enterrar o amor num túmulo. Ninguém saberia, jamais. Então teriam uma felicidade jamais con­cebida.
Na minha perplexidade, resmunguei: — “Ora, ora”. E fiz a objeção: — “Também não é assim, que diabo!”. Ele não parou mais. Disse que a noiva morrera porque amava e era amada. Ninguém suporta o amor alheio. O mundo nunca foi a casa do amor. Os que amam devem ser destruídos. Disse: — “Minha noiva foi destruída. Eu fui destruído”. Parentes, amigos, vizinhos, de ambos os lados, se juntaram para assassi­ná-los.
O rapaz falava, falava, e realmente não apresentava um fa­to, uma doença, um gesto, uma palavra, nada de preciso, de con­creto. E, como tudo era muito vago, fiz o comentário interior: — “Mania de perseguição”. Realmente, falava como um aluci­nado. E, súbito, cara a cara comigo, voltou à pergunta inicial: — “E agora, na tua opinião, o que é que eu vou fazer?”. Res­pondi: — “Não sei. Não sou adivinho. Sei lá”. Riu, na vaidade do mistério: — “Ninguém sabe”,
Bebera seis garrafas de cerveja e pagou a despesa. “Faço questão”, disse. Saímos. Na calçada, crispou a mão no meu bra­ço: — “Se você amar, não deixe que ninguém saiba. Ninguém pode saber. ‘Eles’ te destroem”. Pausa e apertava minha mão: — “‘Eles’ me destruíram”. Deixei-o partir. Mas aquilo não me saía da cabeça. Dizia “eles” como se falasse dos assassinos do amor. Dois dias depois, ou três, sei lá, batem o telefone para mim: — “Sabes quem morreu? O Fulano! Suicidou-se, imagi­ne”. No meu espanto, dizia: — “Esteve comigo anteontem. Co­mo foi o negócio?”. O outro contou-me tudo e suspirou: — “Chato, mas não era mau sujeito”.
Não importa a forma do suicídio. O que importa é a mor­te. E, subitamente, comecei a achar que “eles” existiam, fisica­mente. “Eles” não eram um delírio. “Eles” assumiam a cara de um vizinho, ou de uma tia, ou de um pai, ou de um amigo, ou de uma prima entrevada. Os impotentes do sentimento preci­sam matar o amor.
Mais tarde conheci outro amor. Era um professor, muito mais velho, e uma aluna quase adolescente. Foi um romance de uma beleza absurda. Para o meu gosto suburbano (sou um suburbano irreversível) a coisa tinha um tom de Sinfonia ina­cabada. Logo vizinhos, parentes se juntaram contra os dois. Ah, o ódio que esse mísero amor deflagrou numa rua, num bairro, numa cidade. Era amor e precisava ser destruído.
Conversei muitas vezes com o professor. Se bem me lem­bro, tinha um certo estrabismo. Ah, saiu até artigo de fundo con­tra o maravilhoso idílio. Certa vez, vi o professor ferido de es­panto e de medo. (E seu olho estrábico era de um apelo insu­portável.) E a coisa que mais me impressionou é que o homem também dizia, como o suicida: — “Eles”. Essa era, decerto, uma imagem impessoal da comunidade. “Eles” não tinham cara, nem nome e só tinham ódio.
Nunca vi ninguém mais frágil, ninguém mais indefeso do que o velho professor. No nosso último encontro, disse-me: — “Nelson, estamos condenados. É inútil lutar. Escreva o que lhe vou dizer: — é um assassinato! Eles são os nossos assassinos!”. Daí a duas semanas, o professor e a mocinha fizeram um pacto de morte. Quanta gente exultou. Alguém disse, quando soube: — “Eu venci, eu venci!”.
Evidentemente, não era um concurso hípico. Mas, se exis­tiam vencedores, foram os dois namorados contra a comunida­de homicida. Morreram em pleno amor e por que desejar mais da vida? Ao passo que os outros andam por aí ardendo na pró­pria aridez infinita. Aconteceu esta coisa linda: — quando pas­sava no cemitério o caixão do professor, uma velhinha aplau­diu. Foi esta, se não me engano, a primeira vez em que se bateu palmas para um enterro.
Tinha razão o suicida: — o mundo não é a casa do amor. Conheci um grande médico que, em plena maturidade, desco­briu o amor. Amou e se deixou amar. E teve, então, a sua total felicidade terrena. Mas seu amor precisava ser odiado. Um dia, sofreu um enfarte fulminante. Diria que morreu porque amava, era amado e estava junto do ser amado. Objetará alguém: — “Foi o enfarte!”. Mas justamente os impotentes do sentimento vingam-se assim ou melhor: — a sua vingança pode assumir a forma do enfarte. Mas como deve ser invejado o homem que morre amando! E como deve ser invejada a mulher que foi ama­da até as duas últimas lágrimas de paixão e de vida! Essa foi a história de Ilydio e Betty Sauer.
[19/2/1968]

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