terça-feira, 30 de setembro de 2008

OS QUE ESQUECEM ANTES DE AMAR

Ontem ensaiei um paralelo entre o atual e os velhos carna­vais. A dessemelhança chega a ser escandalosa. É como se fos­sem dois povos, duas cidades, dois idiomas, nada parecidos en­tre si. O carnavalesco de 1920 ia de paroxismo em paroxismo. Ninguém dormia, ninguém comia. Era uma resistência física ab­surda. O sujeito começava no sábado e varava o domingo, a se­gunda e a terça. Só apagava na quarta.
Era uma danação unânime de quatro dias. Escrevi que o mis­tério desse formidável dinamismo era o pudor. Hoje, a própria palavra está morta. As Novas Gerações não conhecem o “pu­dor físico”. Ainda ontem, passei pela avenida Atlântica; fiz o iti­nerário obrigatório do Forte ao Leme. Vi, várias vezes, esta ce­na: — uma menina linda, de biquíni, comprando um refrige­rante na barraquinha. O crioulo destampava a garrafinha.
Estava, ali, por certo, um dos brotos mais lindos da Terra. Mas aquela nudez, dentro da luz, não interessava a ninguém. A garota vinha do mar; as gotas se estilhaçavam nas suas costas, no ventre perfeito. E ela, na graça inconsciente do seu gesto, bebia pelo gargalo. O crioulo do grapete não lhe fazia a conces­são de um olhar. Nenhuma curiosidade. Olhava para outro lado e era cego, surdo e mudo para a nudez adolescente, tão pró­xima, tangível.
Eis o que eu queria dizer: — as duas coisas seriam impossí­veis no velho carnaval. Nem a nudez da menina, nem o tédio do homem. Lembrei o biquíni porque nunca a mulher se des­piu tanto para os quatro dias. Nos bailes, nas esquinas, nas cal­çadas, nos jardins, há uma nudez indiscriminada e obsessiva. E vem um cruel tédio visual de tantos nus absurdos.
Vou dizer o óbvio, mas paciência. Antigamente, o carna­val era “a mulher” e só ela existia. Por trás da máscara, dentro da fantasia, sem deixar de fora uma nesga de carne — não pre­cisava ser feia, simpática, bonita ou jovem. Ou por outra: — to­das eram lindas. João do Rio fez, certa vez, um conto de carna­val. Era uma mascarada que o herói deseja com obstinação e loucura. E, depois de um suspense sabiamente elaborado, o lei­tor descobre tudo: — a mascarada era leprosa, nem mais, nem menos.
Mas isso era então viável. Hoje a mulher não pode escon­der uma brotoeja, nada. O conto de João do Rio chamava-se “Bebê de tarlatana”. Eis o que pergunto: — quantas “bebês de tarlatana” faziam do carnaval um momento de plena e desespe­rada voluptuosidade? Bem me lembro de uma menina muito fa­lada em Aldeia Campista.
Tinha sido bonitinha ou, pelo menos, jeitosa de corpo e de rosto. Mas ficou “fraca do pulmão”, como se dizia. Os jor­nais davam à tuberculose o nome alvo, nupcial de “peste bran­ca”. No fim de três ou quatro meses de doença, era um pobre ser, leve, incorpóreo; estava tão frágil que desfalecia com um per­fume mais intenso ou com uma emoção mais forte. Já os vizinhos a chamavam de “caveirinha”. E chegou o carnaval de 1920.
Quando disse que queria “brincar”, houve um pânico na família. Foi um tal de “Deus me livre”, “Não pode” etc. etc. Mas cravou no peito dos outros um argumento imbatível: — “É o meu último carnaval!”. E todos sabiam, na família, na rua, no bairro, que seria mesmo o seu último carnaval. Foi assim um suicídio consentido. O próprio médico não se opôs, dizendo que a pequena estava tecnicamente morta. E, na manhã de do­mingo, lá saiu a mocinha, de meia máscara.
Não me lembro do resto da fantasia. Só sei que era do mais hermético pudor. (Mais tarde, o caso foi contado no jornal de modinhas.) Havia, porém, um problema: — ela não teria forças nem para chegar à primeira esquina. E, no entanto, saiu, tomou um bonde, desapareceu. Depois se recriou, com as revelações de uma inconfidente, toda a sua história. Ela não queria pular em bonde, entrar em bloco, dançar na avenida. Não. Queria ape­nas ser beijada. Beijada.
Assim está explicado por que, depois da morte, acabou no jornal de modinhas. Era a mulher que nunca fora beijada e daria a própria vida pela sensação do primeiro beijo. “Alguém vai me beijar”, dissera à inconfidente. Hoje, o beijo quase não exis­te. Outro dia, num salão, dizia uma bela senhora: — “Não gos­to de beijo. Não acho graça em beijo”. Todavia, no tempo do cinema mudo e do pudor físico, os usos amorosos eram outros. O beijo tinha que ser o ponto final de qualquer filme. E não é nada extraordinário que, naquele tempo, uma mulher quises­se ser beijada antes de morrer.
A “caveirinha” saiu no domingo e sumiu. Na terça-feira, um rapaz de Aldeia Campista passa na avenida e vê, numa es­quina qualquer, um ajuntamento. Vai espiar pensando num atro­pelamento. Não era atropelamento, era a “caveirinha”. Estava lá, estendida, rente ao meio-fio, com uma vela, ao lado. E san­gue, tanto sangue.
De vez em quando, ainda hoje começo a tecer minhas fan­tasias. Imagino que a “caveirinha” encontrou alguém, sim. Usava meia máscara, com uma franja de renda, que cobria o queixo. Vejo-a erguer a franja e oferecer a boca. Se até a “bebê de tarlatana” fora beijada. Depois do beijo, jorrou a hemoptise final. Segundo uns mascarados, já estava morta e continuavam as gol­fadas de vida. O corpo passou no necrotério e, mais tarde, foi para casa. Teve caixão branco, vestido branco, tudo de virgem.
Pode-se dizer que um beijo a matou, no tempo em que os beijos ainda matavam. Mas eis o que importa notar: — antes dos nus, a mulher em chagas punha fantasia e máscara nas feridas e era amada por toda uma cidade. Por onde quer que passasse sentiria o desejo anônimo e geral.
Sábado, começará um novo carnaval. Mas sabemos que, nos bailes e nas ruas, a mulher será uma figura secundária para o homem. Do mesmo modo, o homem será secundário para a mu­lher. Ontem, um médico me confessava o seu espanto. Os nos­sos jovens, de ambos os sexos, esquecem antes de amar e sen­tem o tédio antes do desejo.
[21/2/1968]

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