sábado, 27 de setembro de 2008

O BRASIL KARAMAZOV

Outro dia, alguém me perguntava: — “Que faz o Brasil que ainda não descobriu o Hélio Pellegrino?”. Um outro, a meu la­do, deu uma resposta jucunda: — “O Brasil não descobre nin­guém porque não sai da praia”. Há a praia entre o brasileiro e a sua obra, entre o brasileiro e suas utopias. E, de noite, lá está ele no Antonio’s, bebendo cerveja em lata.
Um turista que por aqui passasse e visse a nossa cor more­na, havia de anotar no seu caderno: — “O brasileiro é um ha­vaiano de filme”. A praia lotou a cidade de havaianos e havaia­nas. E onde não há praia, há o sol. Somos oitenta milhões de sujeitos dourados pelo sol. Na minha infância, não. Na minha infância, o brasileiro era pálido como um santo. Enganei-me: — como um santo, não, como o Alfredo da Traviata.
Mas, como ia dizendo: — e porque não sai da praia, o bra­sileiro ainda não descobriu o Hélio Pellegrino. Os amigos o cha­mam de “o nosso Dante”. Lembro-me de Otto Lara Resende falando do gênio verbal do Hélio. Ele tem o que dizer e voz pa­ra dizê-lo. Uma voz de Paul Robeson numa figura de galã de neo-realismo italiano.
Esse meu amigo tem um destino. Não sei qual seja, mas re­pito: — tem um destino. E, aqui, abro um súbito parêntese. Não era nada disso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que meu amigo foi a uma festa, sábado, na casa do Pedro Gomes. Uma noite flamejante. E o Hélio Pellegrino viu e ouviu, no sa­rau de Pedro Gomes, coisas surpreendentes. Houve um momento em que Walter Fontoura declarou com empolgante naturali­dade: — “Eu sou reacionário”.
É prodigioso. Um brasileiro que vem à boca de cena, alça a fronte e proclama o próprio reacionarismo. Ninguém faz isso neste país. O brasileiro pode ser uma Bernarda Alba e não o con­fessa, nem a tiro. E o Walter Fontoura, mexendo com o dedo o gelo do seu uísque, assombra os presentes com a declaração suicida: — “Sou reacionário”.
Todavia, o grande acontecimento foi mesmo o Salim Simão. O Hélio não o conhecia. E quase o apalpou como se duvidasse de sua existência. A festa acabou tarde da noite. E quem reinou, hora após hora, qual solista absoluto, foi o Salim Simão. O Hé­lio estava fascinado. No dia seguinte, quando me viu, soltou a grande notícia: — “Conheci o Salim Simão!”.
Perguntei-lhe: — “E que tal?”. Com a sua voz de barítono de igreja, e abrindo o gesto, respondeu: “O Salim Simão é uma praça pública! É um comício! É a tomada da Bastilha!”. E, com isso, queria dizer que o outro arde em mil danações triunfais. Realmente, que ser fremente, ululante, torrencial.
O admirável no Salim Simão é a sua vocação para o berro. Eu sei que outros berram, mas de vez em quando e por moti­vos solenes. No Salim Simão, até o “bom-dia” é um comício. Abro novo parêntese e explico: — eu não queria falar no Hélio Pellegrino, senão de passagem; nem no Pedro Gomes, no Wal­ter Fontoura e no próprio Salim Simão. Eu queria falar no pai de Salim Simão.
Já escrevi que um dos grandes sentimentos da nossa épo­ca é o ódio ao pai. De repente, toda uma geração brasileira começou a odiar o velho. Na semana passada, entro num bo­teco do Leblon. Estou comprando fósforos e cigarros (por si­nal, não encontrei o mata-rato que fumo). E, súbito, vejo um rapaz, um dos sólidos havaianos de filme, que dá um piparote numa garrafa e a derruba. Em seguida, ergue-se e arranca, das próprias entranhas, este uivo parricida: — “E meu pai que não morre? E meu pai que não morre?”. Eu disse “uivo”, mas era um cavo soluço.
O rapaz fizera despesas. E, quando o garçom quis cobrar, o havaiano babava de ódio: — “Pago quando meu pai morrer!”. Já disse e repito: — sinto, por toda a parte, um Brasil Karamazov. Eis o que me pergunto: — por que o pai há de assumir, para o jovem contemporâneo, a hediondez do velho e banda-lho Karamazov?
Um dia, almocei com Luís Alberto Bahia e Salim Simão. E, de repente, o Salim começou a falar do pai ou, melhor dizen­do, a berrar do pai. Como foi doce para mim e, ao mesmo tem­po, sofrido, encontrar um pai amado, para sempre amado. E dizia o Salim: — “O que eu não daria pra ter meu pai vivo aqui. E me ajoelharia a seus pés. E, abraçado às suas pernas, agradeceria tudo, tudo!”.
Ajoelhado aos pés, abraçado às pernas. E, então, comecei a pensar também no meu pai. Morreu em 1930, exatamente a 15 de março. Morreu magro e o espantoso é que, no primeiro momento, a morte o rejuvenesceu. Vejo minha mãe pendida sobre o corpo sem vida e beijando, não a mão, mas o braço do meu pai. Eis o que me dói ainda hoje: — nós olhamos pouco para os seres amados. Tão fácil olhar e repito: — olhamos tão pouco. Não olhei para meu pai como devia. Por que não me embebi do seu gesto, do seu sorriso, do seu olhar; e suas mãos, por que não olhei muito mais as suas mãos?
E, quando Salim falou do seu pai (e com que estremecido amor), eu pensava: — “Esse não é um Karamazov”. A partir daquele momento, eu o aceitei na minha solidão. Fascinado, deixei o Salim falar. E, pouco a pouco, fui amando, sim, aman­do o velho libanês. Ah, viera de longe, muito longe, lá do Lí­bano.
Líbano. Sou, como o francês, um analfabeto geográfico. Os sábios do Instituto de França pensam, ainda hoje, que Buenos Aires é capital de Niterói. E que sei eu do Líbano? Nada, mil ve­zes nada. Mas vejo o pai do Salim desembarcando aqui, saltan­do no cais, miserável, mas cheio de utopias formidáveis. Foi tra­balhar no Espírito Santo e numa terra onde era bonito matar sírio, matar libanês. Os facínoras de lá, quando queriam experimentar um revólver, davam um tiro na cara do libanês mais à mão. E não era crime.
O pai do Salim esteve para morrer quinhentas vezes. Não morreu e ficou rico. Vejam: — em vez de se enfiar, como tan­tos outros, numa cova sem nome, ficou milionário. Salim, me­nino rico. E, um dia, de repente, o pai perde tudo e morre, tam­bém de repente.
Eu não o conheci, claro. Morreu quando o filho tinha, se não me engano, doze anos (e o garoto começou a passar fome). Não sei nem como se chamava o pai de Salim. Não vi um retra­to seu, nem de lambe-lambe. Mas eis o que queria confessar: — esse velho é uma das memórias que vou preservar para sem­pre, e com que absurdo amor.
[14/2/1968]

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