sexta-feira, 26 de setembro de 2008

UMA PAISAGEM SEM INGLESES

O sujeito berrou de uma calçada para outra: — “Como vai? Como vai?”. Era comigo. E o outro punha no cumprimento to­da a ênfase patética de um italiano de anedota. Acenei com dois, ou três dedos, sei lá, e passei adiante. Eis o que eu queria dizer: — quando alguém me pergunta — “Como vai?” — penso nas minhas dívidas. É fatal.
Dirá o leitor que, dívidas, até o Walther Moreira Salles as tem. Exato. Mas enquanto Walther Moreira Salles acha graça nas suas, eu não posso rir das minhas. Em tal sutileza está o cordial abismo que nos separa. Mas, como ia dizendo: — minhas dívi­das me perseguem e atropelam por toda a parte.
Nas datas de vencimento, eu me sinto de pires como um ceguinho. Na rua do Ouvidor há um ceguinho que toca violi­no. Seu repertório é um tango único e, repito, sempre o mes­mo tango. E, ao lado do ceguinho, está o pires (se não me enga­no, o pires é um ex-cinzeiro com um nome de cerveja gravado nas bordas). E, lá, o passante pinga a sua moeda. Nas datas do vencimento, eu me sinto também um ceguinho, sem tango, a estender um imaginário pires para uma moeda também imagi­nária.
Diz o José Luís Magalhães Lins que o brasileiro é bom pa­gador. Certo. Há os que matam, ou se matam, para pagar suas dívidas. Não é bem o meu caso. Eu me mato, não para pagar as dívidas, mas os seus juros. As dívidas permanecem maravi­lhosamente intatas. E já me dou por muito feliz de pagar os ju­ros fatais.
Alguém há de querer saber por que devo eu tanto e tanto. Posso responder, alçando a fronte, que não perdi um tostão no bicho, nos cavalos, na Bolsa etc. etc. As minhas dívidas têm es­te nome geral e lúgubre: — A falecida. Por outras palavras: — meti-me no cinema, fui produtor de filme. E A falecida é o no­me de todo o meu voraz e insaciável abismo.
Só uma coisa me assombra: — que Gláuber Rocha, Luís Car­los Barreto e outros, e outros, façam filmes e não estejam na rua do Ouvidor tocando tangos caça-níqueis. Bem. Falei das dí­vidas, dos juros, sem querer. Na verdade, eu ia referir, apenas, um episódio de filmagem. Eis o caso: — quando Leon Hirszman fazia A falecida, passei no estúdio.
Ou por outra: — não era estúdio. Leon estava filmando nu­ma casa funerária, ali entre o Estácio e a Manchete. Cheguei e fiquei olhando. Era o Nelson Xavier que estava representando. Quando ele acabou, eu, desesperado, chamei-o de lado. Disse-lhe: — “Escuta, Nelson. Você está o próprio sir Laurence Olivier”. Durante uns vinte minutos, tentei convencê-lo.
Nelson Xavier fazia um jucundo, dionisíaco, erótico papa-defuntos. E mais do que isso: — era o cafajeste, o nosso cafa­jeste. Pois o Nelson Xavier fazia o anticafajeste. Disse-lhe o dia­bo para doutriná-lo. Expliquei-lhe que o inglês, tal como o ima­ginamos, não existe, jamais existiu. A Inglaterra era uma paisa­gem sem ingleses. Só uma vez aparecera lá, miraculosamente, um inglês. Foi quando o brasileiro Antônio Callado passou uma temporada em Londres. E era um sucesso quando ele passava, ele, o único inglês da vida real. Falei, falei e o Nelson Xavier não acreditou: — foi, até o fim, o próprio Antônio Callado.
Mais tarde, já com A falecida na rua, o excelente ator teve um remorso tardio e veio-me dizer: — “Você tinha razão”. Ven­do o filme, percebera que todo o seu comportamento era do puro Antônio Callado e, pois, do antibrasileiro, do anticafajes­te, do antipulha. E não havia na sua interpretação nada do ex­trovertido ululante, do canalha magnífico e comovente.
Sim, o cafajeste saíra solene, hierático, como um mordo­mo de filme policial inglês, Pois bem. Passo de A falecida para o Roda viva, do Chico e do Zé Celso, a que assisti no último sábado. Eu só conhecia a peça de ouvido, isto é, de comentá­rio, de piada. Uns a negavam de alto a baixo. Outros, em mino­ria, elogiavam com restrição. Mas não ouvi ninguém dizer, trin­cando os dentes: — “Formidável!”.
Eu gostaria que, ambos, Nelson Xavier e Leon Hirszman, estivessem sábado no teatro. Um e outro aprenderiam muito do Brasil e do brasileiro. Ali, na platéia, estava o Brasil e estava o brasileiro. Sempre digo que o adulto não existe; o homem ain­da não conseguiu ser adulto, ou melhor: — o que há de adulto, no homem, é uma pose. O que vale mesmo é o menino que está enterrado em nossas entranhas.
(Se me permitem, eu diria que o homem jamais será um adulto.) Foi o menino perene que reagiu, sábado, no teatro. Ima­ginem que todos os palavrões da língua estavam gorjeando no palco. E comecei a sentir que tudo ali se fundia maravilhosa­mente: — a pornografia proclamada da peça e a pornografia la­tente da platéia.
Tenho falado com obsessiva insistência na doença infantil do palavrão, sim, doença que está atacando os nossos adultos. Dirá alguém que sempre houve pornografia. Não, não. Antes, ha­via entre o brasileiro e o palavrão uma cerimônia, uma solenida­de, quase um pânico. Ninguém dizia um nome feio na presença de senhoras. Hoje o palavrão circula, por toda a parte, com uma liberdade, uma espontaneidade, um élan jamais concebidos.
E já uma dúvida me ocorre: — não sei qual mais transcen­dente, se a força do espetáculo, se a reação do público. Já no Rei da vela vi esta coisa apavorante: — a platéia aplaudindo, de pé, um palavrão. Era a pura delícia auditiva que levantava o espectador. Eis o que eu queria dizer: — em Roda viva todas as inibições explodem. Um palavrão, particularmente feroz, foi também aplaudido, como outrora se ovacionava o dó de peito do tenor.
E ninguém se fingia mais de adulto. Era todo um processo regressivo, uma volta proustiana à infância de cada qual. Nos espetáculos infantis, as crianças não sentem as fronteiras entre a ficção e realidade. Elas gritam, opinam, interferem e decidem. Foi esta a grande sabedoria do José Celso: — tratou o falso adulto como a criança real que somos. E, de repente, a peça se tornou cálida como um sonho. Fomos arrastados no grande fluxo de imagens, sensações. Senhores, senhoras, rapazes, mocinhas, to­dos, todos ali olhavam os palavrões como se fossem pássaros encantados. A platéia ria como uma romã fendida.
Eis o que me pergunto: — por que o padre Ávila não vai lá? Mas que não resista ao espetáculo e deixe em casa suas inibições e poses. O padre Ávila tem que se comportar como crian­ça ou, melhor dizendo, como moleque. É padre, sociólogo e professor da puc. Mas, como todos nós, há dentro dele um me­nino enterrado. Liberte o menino, liberte o moleque. Ponha-os para fora. E outros sociólogos, educadores, sacerdotes, psicó­logos, compareçam também. Compareçam e vejam como um simples palavrão deflagra na platéia uma tara súbita e jucunda.

[7/2/1968]

Nenhum comentário: