segunda-feira, 8 de setembro de 2008

OS JOVENS SEM AMOR


Outro dia, aqui mesmo, fiz esta constatação nostálgica: — sumiu a “mulher fatal”. Hoje, repito, a “mulher fatal” é mais antiga, mais obsoleta, mais defunta do que a primeira audição do “Danúbio azul”. Não há, em lugar nenhum do mundo, uma outra Mata-Hari. Não sei se vocês conhecem a sua história e a sua lenda. No princípio do século, Mata-Hari vivia ateando, em cada esquina, paixões e suicídios.
O interessante é que nem sempre fora “fatal”. Ou por ou­tra: — passou a ser “fatal” a partir do momento em que o seu relações-públicas espalhou por todo o Velho Mundo: — “Tem um seio só”. Essa mutilação promocional foi sua glória fulmi­nante. E não houve, até a Primeira Grande Guerra, uma “mu­lher fatal” tão bem-sucedida.
Foi invejada pelas concorrentes e, até, pela mulher hones­ta. Anos depois, era fuzilada como espiã. Mas, eis a verdade: — morreu sem pena de morrer, morreu sem saudade de si mes­ma. Para a “fatal”, a velhice, com suas varizes e sua asma, era pior do que o puro, simples e ainda promocional fuzilamento. Hoje seria inviável uma Mata-Hari — e explico.
A “mulher fatal” exige o homem que mata ou se mata. Em nossos dias, os suicidas e os homicidas por amor só existem na manchete de O Dia e da Luta Democrática. Outro dia, dizia-me um psicanalista alarmado: — “Há uma massa de rapazes de dezoito, dezenove, vinte anos, que não se interessa por mulher”. Como matar ou se matar, se o tédio começa antes do desejo, se o jovem esquece antes de amar?
Todavia, não desapareceu de todo a “mulher fatal”. Ou an­tes: — alguém a substituiu, alguém tomou o seu lugar: — a grã-fina. Aí está a figura obsessiva do nosso tempo. (O que me per­gunto é se a grã-fina é uma flor do subdesenvolvimento ou se todos os povos a têm.) Talvez lhe falte um pouco do patético, talvez lhe falte o fogo da morte.
Durante algum tempo vivia eu agarrado a esta ilusão: — as grã-finas não morrem. E imaginava que só morrem as da classe média. Lembro-me de uma fotografia de jornal, em cinco colu­nas. Era uma normalista. Estava na calçada, em todo o esplen­dor dos seus dezessete anos. Linda, linda. E, de repente, um au­tomóvel desgarra do asfalto, trepa no meio-fio e vem achatá-la contra o muro.
Morreu na hora, com o peito esmagado e o rosto intacto. Passou horas, morta, à espera da perícia. Impossível ser mais bonita. Olhos entreabertos e uma expressão quase de euforia. Ao ver a fotografia, tive a sensação pueril, a sensação absurda de que só morrera porque era da classe média. Se fosse grã-fina, o automóvel a teria poupado.
Mais tarde, porém, houve um episódio que comoveu a ci­dade. Eis o caso: — certa grã-fina foi amada. Não sei se amou também. Só sei que viveu dois ou três meses de lua-de-mel. E, um dia, quis acabar. Talvez estivesse gostando de um outro, não sei. O rapaz foi de uma polidez exemplar: — “Se você quer as­sim, assim será”. Mas a convidou para o adeus. E a grã-fina foi ao último encontro.
Ele a recebeu com ardente humildade. Disse que a amava tanto como antes ou mais do que nunca. E começou a chorar. Ela teve, diante daquele pranto de homem, a frivolidade deli­ciosa e suicida de uma Maria Antonieta. Disse: — “Esquece, sim. Esquece”. Estendeu-lhe a mão, que ficou no ar. O rapaz tira o revólver, puxa o gatilho, uma, duas, três, quatro vezes. Quase sem espanto, ela foi varada de balas. No meio de uma constela­ção de estampidos, ainda sorria. Dobrou-se, cruzou os braços sobre o peito. E morreu sorrindo, sem tempo de corrigir o sorriso.
Alguém pode perguntar: — “E ele? E ele?”. Não importa o que fez o assassino. Depois de matar, o criminoso se torna secundário, ou nulo, e repito: — some como se jamais tivesse existido. Tudo aconteceu num quarto. Talvez a grã-fina estivesse diante do espelho, recolocando um brinco. Não teve tempo nem para o espanto, nem para o medo, nem para o grito. Não, não estava diante do espelho. De pé, estendia-lhe a mão. Era o adeus. E não estava de costas.
No dia seguinte, eu lia tudo no jornal. E minha primeira reação foi, como já disse, de espanto infantil. Se fosse da clas­se média, alguém que morasse na rua Mariz e Barros ou Con­de de Bonfim, o impacto seria menor. Mas era uma grã-fina, que morava ou na orla da Lagoa ou numa ladeira do Jardim Botânico. Com um sentimento de vergonha, entrei no seu ve­lório.
Estava crispado como o criminoso que volta ao local do crime. Eu queria sentir pena, respeito, quase adoração, e o que havia em mim era uma curiosidade maligna. A morte da mulher bonita fascina qualquer um. E percebi que estavam lá, espichan­do o pescoço, sujeitos que não eram nem parentes, nem ami­gos, nem conhecidos. Vi uma senhora gorda, bexiguenta, esbugalhando-se para a linda morta.
Fizera-se um pavoroso alarido sobre a beleza da vítima. E eu a olhei. Ao primeiro olhar, descobri toda a verdade: — não era bonita. A meu lado, a gorda já citada cochichava: — “Sere­na, serena”. Serena, sim, de uma serenidade apaixonada, uma ardente calma. Mas não era bonita. Muito mais linda era a normalista que foi esmagada contra o muro.
Morta, sem nenhum sortilégio da maquiagem, o rosto nu de pintura, era feia. O ser amado a matara por uma ilusão de beleza. Mas era a falsa bonita. Fingia-se de linda; e por isso tan­tos a desejaram. Só a morte soube olhar a grã-fina. (A mulher da classe média não é nada misteriosa: seus defeitos, seus en­cantos, são nítidos, são precisos. Ou é feia, ou bonita, ou sim­pática. Mas não faz, como a grã-fina, uma maravilhosa imitação de beleza.)
O povo desfilou até alta madrugada. Lembro-me de uma ou­tra gorda, de filho de colo, que veio de Brás de Pina, Cordovil ou Encantado, ver a bonita morta. Todos queriam olhar uma Inês de Castro. E cada um, ao sair, sentia-se esbulhado de uma defun­ta ideal que não estava ali. A morte tirara a máscara de beleza.
Muitos anos depois, casei-me com uma grã-fina. De vez em quando digo a Lúcia: — “Você é a única grã-fina linda”. Sobre as outras, não tenho mais dúvidas. A partir da formosa assassinada, sei de toda a verdade. E, quando vejo uma grã-fina im­pressa, acho uma graça triste. Está ali fingindo beleza. Mas ela pode enganar o leitor, o marido, o Justino Martins, e a própria e obtusa lente de máquina fotográfica. Não enganará a morte, e repito: — a morte sabe que ela é uma falsa bonita, eternamente.

[12/1/1968]

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