terça-feira, 9 de setembro de 2008

O LEQUE FOI UM MOMENTO

O patético de nossa época é que o passado se insinua no presente e repito: — a toda hora e em toda parte, a vida injeta o passado no presente. Olhem em torno e vejam. É terrível. O passado irrompe numa gravata, num gesto, num sapato ou num colarinho. Estamos usando os bigodões dos nossos avós. Há su­jeitos que se vestem e calçam como os nostálgicos defuntos familiares.
Outro dia fui ao Chacrinha, na tv Globo. Comigo ia o João Saldanha. O programa elegera, a mim, o maior cronista esporti­vo de jornal e, ao João, o maior comentarista de tv. (E tínha­mos ambos um ar de Prêmio Nobel.) Pois bem: — e nunca vi multidão tamanha. Sempre digo que a multidão é inumana por­que não tem cara.
Cara não tem. Mas cheira. Eis a descoberta que fiz no Cha­crinha: — a multidão cheira. Quando entrei no auditório, senti um cheiro que eu já conhecia, mas não sabia de onde, nem quan­do. Foi toda uma volta encantada. Sim, de repente, eu me via instalado na infância. Passei a ter, novamente, seis, sete anos. Estou caminhando, descalço, na rua São Francisco Xavier. E, súbito, vejo um estábulo.
Vacas palustres e belas, como em Jorge de Lima. Era In­venção de Orfeu em São Francisco Xavier e antes de Invenção de Orfeu. Em pleno bairro residencial o sujeito ouvia mugidos imensos, inconsoláveis mugidos. Eis o que importa dizer: — ao entrar no Chacrinha fui agredido por um cheiro que, a princí­pio, me pareceu de suor velho. Mas logo retifiquei: — não era suor velho. (As grã-finas européias é que cheiram a suor velho.) O que eu sentia era um forte e obsessivo odor vacum.
Duas mil pessoas num espaço que daria para quinhentas. (E como o Chacrinha é amado pelo auditório e, repito, feroz­mente amado!) Aquela massa faria, por amor, o que ele disses­se. Nunca ninguém me deu, na vida real, tamanha sensação de onipotência. Se mandasse o auditório atear fogo às vestes co­mo uma namorada suburbana (ou um monge budista), seria um fogaréu unânime.
A única cara que eu conseguia ver, enquanto lá estive, foi a do João Saldanha. Ninguém mais tinha cara, nem o Chacri­nha. E, de repente, descubro, na massa, esta coisa inatual e lin­da: — um leque. Era um toque nostálgico e delicioso. Fascina­do, fiquei olhando a senhora que, na sua languidez antiga, se abanava com um leque autêntico.
Entendo que as modas passem, como passou o charleston, como passou Benjamin Costallat. Mas somos um povo canicular, desde a Primeira Missa. Eis o que pergunto: — e por que o leque está entre os usos fenecidos do Brasil? No programa do Chacrinha fazia mais calor do que em Canudos. Pois, enquanto o auditório boiava no próprio suor, eu só via um único e escas­so leque. (Dirá alguém que a bailarina espanhola ainda usa le­que. Usa. Mas o que a interessa não é a higiênica ventilação e sim o frêmito plástico do gesto.)
Mas, assim como o fraque, ou o espartilho, ou o guarda-chuva de Paulo de Frontin, também o leque representa uma época ou, melhor dizendo, a Belle Époque. E, então, fiquei magnetizado. O leque solitário tornou-se, para mim, uma presença obsessiva. Era o passado. E, realmente, as Novas Gerações não entendem o papel do leque na graça e no comportamento da mulher.
Na minha infância, ela não conseguia flertar, ou gostar, ou trair, sem o leque. As Anas Kareninas do seu tempo tinham que olhar por cima do leque, ou sorrir por trás do leque. Esses mo­vimentos insinuavam não sei que delicada voluptuosidade. Já os homens usavam ventarolas promocionais das cervejas. (Tam­bém houve um Brasil das ventarolas.) E, de repente, tantos anos depois, em pleno Chacrinha, vejo uma senhora que se abana, e não com a Revista do Rádio. Enquanto os outros se esvaíam em milhões de suores, ela sentia o suavíssimo hálito do leque.
Eu e o João Saldanha custamos a receber o nosso troféu dos “melhores do ano”. Por uma canicular meia hora, ainda osten­tamos a nossa modéstia de Prêmio Nobel. E tive tempo de ampliar a minha volta proustiana. Por exemplo: — lembrei-me de uma velhinha de minha infância. Havia, em Aldeia Campista, uma casa grande. Imaginem uma chácara de José de Alencar, com manga-rosa, jaca, abacate, goiaba e carambola. (Hoje, carambola deixou de ser fruta e virou gíria.)
E lá morava a velhinha. Teria oitenta anos. No Brasil con­temporâneo, desapareceram certas idades. O único brasileiro que tem oitenta anos é Gilberto Amado. Poderão objetar que Raul Fernandes morreu com mais de noventa. Bom. Quem fez noventa anos, ou mais, está isento do tempo, isento de idade. Eis o que eu queria dizer: — o tempo tornara a velhinha surda, muda e cega. E os olhos que não viam tinham uma misteriosa doçura compassiva.
Era também uma pobre figura sem gestos. Ou por outra: — seu único gesto era o do leque. Só sabia fazer isso, esse era seu último movimento. Os netos, os filhos, levavam d. Constança (assim se chamava) para o quintal. Ficava debaixo da man­gueira, ou da jaqueira, sentadinha, abanando-se. Quieta no so­no da carne e da alma, parecia uma múmia de anã. O leque respirava pela velhinha.
Quando morreu, a sensação de toda a Aldeia Campista foi a de que não era a primeira vez, de que já morrera outras vezes. Mas, o que assombrou o bairro e a família foram seus últimos momentos de vida. No quarto, estavam filhos, netos, parentes, vizinhos. Outra presença: — o padre. E, súbito, a mudinha co­meçou a falar. Não sorria há anos, e começou a sorrir. Não cho­rava, e as lágrimas deslizavam, uma a uma. Era um milagre. E logo os presentes perceberam tudo: — ela estava vivendo, ou revivendo, a primeira noite, não outra qualquer, mas exatamente a primeira noite do seu casamento. O marido morrera há meio século. E ela se crispava de pudor antigo, e repetiu o grito de sessenta anos atrás. Ninguém entendia aquele apelo erótico que se irradiava de não sei que profundezas. Morreu amada, mor­reu amando.
[16/1/1968]

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