O patético de nossa época é que o passado se insinua no presente e repito: — a toda hora e em toda parte, a vida injeta o passado no presente. Olhem em torno e vejam. É terrível. O passado irrompe numa gravata, num gesto, num sapato ou num colarinho. Estamos usando os bigodões dos nossos avós. Há sujeitos que se vestem e calçam como os nostálgicos defuntos familiares.
Outro dia fui ao Chacrinha, na tv Globo. Comigo ia o João Saldanha. O programa elegera, a mim, o maior cronista esportivo de jornal e, ao João, o maior comentarista de tv. (E tínhamos ambos um ar de Prêmio Nobel.) Pois bem: — e nunca vi multidão tamanha. Sempre digo que a multidão é inumana porque não tem cara.
Cara não tem. Mas cheira. Eis a descoberta que fiz no Chacrinha: — a multidão cheira. Quando entrei no auditório, senti um cheiro que eu já conhecia, mas não sabia de onde, nem quando. Foi toda uma volta encantada. Sim, de repente, eu me via instalado na infância. Passei a ter, novamente, seis, sete anos. Estou caminhando, descalço, na rua São Francisco Xavier. E, súbito, vejo um estábulo.
Vacas palustres e belas, como em Jorge de Lima. Era Invenção de Orfeu em São Francisco Xavier e antes de Invenção de Orfeu. Em pleno bairro residencial o sujeito ouvia mugidos imensos, inconsoláveis mugidos. Eis o que importa dizer: — ao entrar no Chacrinha fui agredido por um cheiro que, a princípio, me pareceu de suor velho. Mas logo retifiquei: — não era suor velho. (As grã-finas européias é que cheiram a suor velho.) O que eu sentia era um forte e obsessivo odor vacum.
Duas mil pessoas num espaço que daria para quinhentas. (E como o Chacrinha é amado pelo auditório e, repito, ferozmente amado!) Aquela massa faria, por amor, o que ele dissesse. Nunca ninguém me deu, na vida real, tamanha sensação de onipotência. Se mandasse o auditório atear fogo às vestes como uma namorada suburbana (ou um monge budista), seria um fogaréu unânime.
A única cara que eu conseguia ver, enquanto lá estive, foi a do João Saldanha. Ninguém mais tinha cara, nem o Chacrinha. E, de repente, descubro, na massa, esta coisa inatual e linda: — um leque. Era um toque nostálgico e delicioso. Fascinado, fiquei olhando a senhora que, na sua languidez antiga, se abanava com um leque autêntico.
Entendo que as modas passem, como passou o charleston, como passou Benjamin Costallat. Mas somos um povo canicular, desde a Primeira Missa. Eis o que pergunto: — e por que o leque está entre os usos fenecidos do Brasil? No programa do Chacrinha fazia mais calor do que em Canudos. Pois, enquanto o auditório boiava no próprio suor, eu só via um único e escasso leque. (Dirá alguém que a bailarina espanhola ainda usa leque. Usa. Mas o que a interessa não é a higiênica ventilação e sim o frêmito plástico do gesto.)
Mas, assim como o fraque, ou o espartilho, ou o guarda-chuva de Paulo de Frontin, também o leque representa uma época ou, melhor dizendo, a Belle Époque. E, então, fiquei magnetizado. O leque solitário tornou-se, para mim, uma presença obsessiva. Era o passado. E, realmente, as Novas Gerações não entendem o papel do leque na graça e no comportamento da mulher.
Na minha infância, ela não conseguia flertar, ou gostar, ou trair, sem o leque. As Anas Kareninas do seu tempo tinham que olhar por cima do leque, ou sorrir por trás do leque. Esses movimentos insinuavam não sei que delicada voluptuosidade. Já os homens usavam ventarolas promocionais das cervejas. (Também houve um Brasil das ventarolas.) E, de repente, tantos anos depois, em pleno Chacrinha, vejo uma senhora que se abana, e não com a Revista do Rádio. Enquanto os outros se esvaíam em milhões de suores, ela sentia o suavíssimo hálito do leque.
Eu e o João Saldanha custamos a receber o nosso troféu dos “melhores do ano”. Por uma canicular meia hora, ainda ostentamos a nossa modéstia de Prêmio Nobel. E tive tempo de ampliar a minha volta proustiana. Por exemplo: — lembrei-me de uma velhinha de minha infância. Havia, em Aldeia Campista, uma casa grande. Imaginem uma chácara de José de Alencar, com manga-rosa, jaca, abacate, goiaba e carambola. (Hoje, carambola deixou de ser fruta e virou gíria.)
E lá morava a velhinha. Teria oitenta anos. No Brasil contemporâneo, desapareceram certas idades. O único brasileiro que tem oitenta anos é Gilberto Amado. Poderão objetar que Raul Fernandes morreu com mais de noventa. Bom. Quem fez noventa anos, ou mais, está isento do tempo, isento de idade. Eis o que eu queria dizer: — o tempo tornara a velhinha surda, muda e cega. E os olhos que não viam tinham uma misteriosa doçura compassiva.
Era também uma pobre figura sem gestos. Ou por outra: — seu único gesto era o do leque. Só sabia fazer isso, esse era seu último movimento. Os netos, os filhos, levavam d. Constança (assim se chamava) para o quintal. Ficava debaixo da mangueira, ou da jaqueira, sentadinha, abanando-se. Quieta no sono da carne e da alma, parecia uma múmia de anã. O leque respirava pela velhinha.
Quando morreu, a sensação de toda a Aldeia Campista foi a de que não era a primeira vez, de que já morrera outras vezes. Mas, o que assombrou o bairro e a família foram seus últimos momentos de vida. No quarto, estavam filhos, netos, parentes, vizinhos. Outra presença: — o padre. E, súbito, a mudinha começou a falar. Não sorria há anos, e começou a sorrir. Não chorava, e as lágrimas deslizavam, uma a uma. Era um milagre. E logo os presentes perceberam tudo: — ela estava vivendo, ou revivendo, a primeira noite, não outra qualquer, mas exatamente a primeira noite do seu casamento. O marido morrera há meio século. E ela se crispava de pudor antigo, e repetiu o grito de sessenta anos atrás. Ninguém entendia aquele apelo erótico que se irradiava de não sei que profundezas. Morreu amada, morreu amando.
[16/1/1968]
terça-feira, 9 de setembro de 2008
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