terça-feira, 7 de outubro de 2008

JOVENS IMBECILIZADOS PELOS VELHOS

Ainda alcancei a geração que cedia o lugar às senhoras grá­vidas. Se uma delas tomava o bonde, três, quatro ou cinco jo­vens se arremessavam. E a boa e ofegante senhora tinha seu can­to, tinha seu espaço. E, quando ia pagar a passagem, dizia o lu­so condutor por trás dos bigodões: “Já está paga, já está paga!”.
E assim, num simples gesto, temos o perfil, o retrato, a al­ma do antigo jovem. Hoje, não. Outro dia, fui testemunha au­ditiva e ocular de um episódio patético. Vinha eu, em pé, num ônibus apinhado. Passageiros amassados uns contra os outros. Essa promiscuidade abjeta desumanizava todo mundo. O sujei­to perdia a noção da própria identidade e tinha uma sensação de bicho engradado. Pois bem. E, de repente, o ônibus pára e entra, exatamente, uma senhora grávida. Oitavo ou nono mês.
Ao vê-la tive um desses movimentos regressivos, um des­ses processos proustianos. Voltei à minha infância, à rua Ale­gre, à Aldeia Campista. O ônibus estava vibrante, rumoroso de ginasianos. Imaginei que esses latagões iam dar uns dez lugares à mater recém-chegada. Pois bem. Ninguém se mexeu e, repi­to, ninguém piou. E foi aí que percebi subitamente tudo. Ali estava uma nova geração, sem nenhuma semelhança com as an­teriores. Durante meia hora a pobre mulher ficou em pé, no meio da passagem. Faço uma idéia das cambalhotas que não vi­rou o filho. E, quando um saltava, eu imaginava: — “O menino vai nascer agora!”. Eis o que importa destacar: — ela viajou e desceu, e não teve a caridade de ninguém.
Na minha infância tal episódio seria impossível. Digo mais: — um velho não viajaria em pé nem a tiro. Sim, também o ve­lho era uma espécie de senhora grávida e merecia homenagens semelhantes. Nos meus seis, sete anos, vi um velhinho esbofe­tear um latagão imenso. Se o agredido exalasse um suspiro, o agressor havia de aluir miseravelmente. Mas o jovem não ensaiou um gesto. Baixou a cabeça, virou as costas e foi à vida. Nessa bofetada sem revide estão definidas as relações entre os jovens e os mais velhos do meu tempo.
Vejam bem o respeito, a modéstia, a humildade do moço antigo. Tal comportamento era possível porque existiam limi­tes nítidos, fronteiras claras entre as gerações. O menino era me­nino, o moço era moço e o velho era velho. Ou por outra: — o menino se comportava como menino, o rapaz como rapaz, o velho como velho. Pode parecer que simplifico, e faço realmente uma simplificação.
E agora? Agora a situação mudou, ou por outra: — inverteu-se. Outrora havia o respeito dos jovens pelos velhos; hoje são os velhos que respeitam os jovens. Não, não. Não se trata de respeito. Eu diria “adulação”. Eis o escândalo da nossa época: — os velhos adulam os jovens e fazem rapapés e os corrom­pem. Repito: — corrompem e imbecilizam.
E nem se pense que estou falando de velhos irresponsáveis, cuja caducidade explicaria tudo. Falo de nobres espíritos, co­mo, por exemplo, o dr. Alceu. É um líder, um sábio, um pensa­dor e, eu quase dizia, um santo. Mas há certos artigos do dr. Alceu que, para quem não o conheça, podem parecer obra de ginasiano. O leitor mal informado há de imaginar: — “Isso foi escrito depois de uma gazeta na Quinta da Boa Vista”. E, por cima do escrito, logo abaixo do título, está o pseudônimo gra­víssimo, soleníssimo, respeitabilíssimo do Tristão de Athayde.
Dirão que exagero ou faço caricatura. Ainda ontem comen­tei a carta surpreendente de uma leitora. E, entre outras coisas já referidas, diz a santa senhora que, em nosso tempo, só os ve­lhos estão interessados em umbigos e quadris femininos. Tam­bém ela não exagera, nem faz caricatura. Mas pasmem para o testemunho da leitora: — a juventude tem, pela nudez, o maior desapreço, o tédio mais cruel. Não está interessada em Sexo, não está interessada em Amor. Se a Ava Gardner aparecer de Salomé ou sarong, sei lá, a juventude bocejará como um leão de anedota. Ao passo que os velhos vibram, exultam, estrebucham com a plástica feminina.
Portanto, a velhice atual nada tem a ver com as figurinhas nostálgicas, espectrais, da porta da Colombo. Em absoluto. O velho age e age como os belos sátiros vadios. E que faz o jovem com a sua bestial vitalidade, ninguém o sabe, nem a leitora diz. Mas volto ao dr. Alceu (sempre este homem fatal, como o Pi­nheiro Chagas). Desejo falar de dois recentes artigos seus, que parecem escritos por um jovem, e bem “pra frente”.
Diz ele que há uma “imagem convencional” e mesmo ca­ricatural da Igreja Católica, e que seria a seguinte: — “uma ins­tituição rigidamente hierarquizada, conservadora” etc. etc., “de­fensora dos ricos, da propriedade privada, dos latifúndios”. Ve­jam bem: — “defensora dos ricos” etc. etc. Esta é a assim cha­mada caricatura. Mas eu pergunto, no meu imenso e divertido espanto: — “Quem é o autor de tal caricatura e quem é o caricaturista?”. Por mais que me custe admitir semelhante verda­de, o autor, ou um dos autores, é o próprio dr. Alceu; o caricaturista, ou um dos caricaturistas, é, ainda e sempre, o mesmo dr. Alceu.
Recentissimamente, ao chegar de Roma, onde falara ao pró­prio papa e lhe beijara a mão, declarou o eminente pensador católico o seguinte: — que, no passado, a Igreja primara por de­fender os privilégios das classes dominantes etc. etc. Só agora, de João xxiii a esta data, é que ela, Igreja, descobrira o cami­nho certo (portanto com um atraso de, pelo menos, 1960 e tan­tos anos). Dois ou três meses depois, vem o nosso Tristão de Athayde e chama de “imagem convencional”, de “caricatura”, um julgamento taxativo, um retrato inapelável, que ele próprio fizera de sua Igreja.
Portanto, ficamos sabendo, pela primeira fala, que a sua re­ligião e ele próprio não foram outra coisa, em vinte séculos, se­não lacaios das classes dominantes. E, ao mesmo tempo, com um simples piparote, pôs ele por terra todo um prodigioso pas­sado. Se tirarmos o passado da Igreja, se a reduzirmos aos seus últimos quinze dias, não sobrou, dr. Alceu, nada. E são Francis­co de Assis, com aquela vigarice de passarinhos? E a Joana d’Arc, torrando-se como um bife, como um churrasco? Também esta estava a serviço do capitalismo, da burguesia, do feudalismo, vendida a qualquer classe dominante. Quem o disse, desembar­cando de Roma, foi o dr. Alceu, embora com dois mil anos de atraso.
Meu Deus, meu Deus! Só uma violenta, uma jucunda ju­ventude de espírito levaria o nosso mestre a se dilacerar em tais contradições. Outro exemplo: — o seu artigo contra a censura. Imaginem vocês que eu não fui tão feliz. O mesmo dr. Alceu que ergue barricadas contra a censura é aquele que aplaudiu a interdição de Álbum de família; o mesmo que, há pouquíssi­mo tempo, só via obscenidade nos meus textos. E, de repente, vem ele e se dispõe a abençoar todos os palavrões. No caso de Álbum de família, solidarizou-se com a polícia. Disse que a po­lícia tinha direito sim, etc. etc. Mais uma vez é a juventude que explica tamanha ginástica espiritual. Como se sabe, o jovem não tem nada de cristalizado, ou de petrificado, ou como queiram. O jovem da véspera pode não ser o mesmo do dia seguinte (es­tou dando uma “imagem convencional”, uma “caricatura” da juventude). E o dr. Alceu é um ser múltiplo, coletivo. Podemos pluralizá-lo. Há um dr. Alceu a favor da polícia, outro dr. Alceu contra a polícia; mais outro a favor da censura, outro ainda con­tra a censura; um quinto dr. Alceu a favor da minha obscenida­de e outro que me considera, de alto a baixo, um tarado.

[9/3/1968]

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