E assim, num simples gesto, temos o perfil, o retrato, a alma do antigo jovem. Hoje, não. Outro dia, fui testemunha auditiva e ocular de um episódio patético. Vinha eu, em pé, num ônibus apinhado. Passageiros amassados uns contra os outros. Essa promiscuidade abjeta desumanizava todo mundo. O sujeito perdia a noção da própria identidade e tinha uma sensação de bicho engradado. Pois bem. E, de repente, o ônibus pára e entra, exatamente, uma senhora grávida. Oitavo ou nono mês.
Ao vê-la tive um desses movimentos regressivos, um desses processos proustianos. Voltei à minha infância, à rua Alegre, à Aldeia Campista. O ônibus estava vibrante, rumoroso de ginasianos. Imaginei que esses latagões iam dar uns dez lugares à mater recém-chegada. Pois bem. Ninguém se mexeu e, repito, ninguém piou. E foi aí que percebi subitamente tudo. Ali estava uma nova geração, sem nenhuma semelhança com as anteriores. Durante meia hora a pobre mulher ficou em pé, no meio da passagem. Faço uma idéia das cambalhotas que não virou o filho. E, quando um saltava, eu imaginava: — “O menino vai nascer agora!”. Eis o que importa destacar: — ela viajou e desceu, e não teve a caridade de ninguém.
Na minha infância tal episódio seria impossível. Digo mais: — um velho não viajaria em pé nem a tiro. Sim, também o velho era uma espécie de senhora grávida e merecia homenagens semelhantes. Nos meus seis, sete anos, vi um velhinho esbofetear um latagão imenso. Se o agredido exalasse um suspiro, o agressor havia de aluir miseravelmente. Mas o jovem não ensaiou um gesto. Baixou a cabeça, virou as costas e foi à vida. Nessa bofetada sem revide estão definidas as relações entre os jovens e os mais velhos do meu tempo.
Vejam bem o respeito, a modéstia, a humildade do moço antigo. Tal comportamento era possível porque existiam limites nítidos, fronteiras claras entre as gerações. O menino era menino, o moço era moço e o velho era velho. Ou por outra: — o menino se comportava como menino, o rapaz como rapaz, o velho como velho. Pode parecer que simplifico, e faço realmente uma simplificação.
E agora? Agora a situação mudou, ou por outra: — inverteu-se. Outrora havia o respeito dos jovens pelos velhos; hoje são os velhos que respeitam os jovens. Não, não. Não se trata de respeito. Eu diria “adulação”. Eis o escândalo da nossa época: — os velhos adulam os jovens e fazem rapapés e os corrompem. Repito: — corrompem e imbecilizam.
E nem se pense que estou falando de velhos irresponsáveis, cuja caducidade explicaria tudo. Falo de nobres espíritos, como, por exemplo, o dr. Alceu. É um líder, um sábio, um pensador e, eu quase dizia, um santo. Mas há certos artigos do dr. Alceu que, para quem não o conheça, podem parecer obra de ginasiano. O leitor mal informado há de imaginar: — “Isso foi escrito depois de uma gazeta na Quinta da Boa Vista”. E, por cima do escrito, logo abaixo do título, está o pseudônimo gravíssimo, soleníssimo, respeitabilíssimo do Tristão de Athayde.
Dirão que exagero ou faço caricatura. Ainda ontem comentei a carta surpreendente de uma leitora. E, entre outras coisas já referidas, diz a santa senhora que, em nosso tempo, só os velhos estão interessados em umbigos e quadris femininos. Também ela não exagera, nem faz caricatura. Mas pasmem para o testemunho da leitora: — a juventude tem, pela nudez, o maior desapreço, o tédio mais cruel. Não está interessada em Sexo, não está interessada em Amor. Se a Ava Gardner aparecer de Salomé ou sarong, sei lá, a juventude bocejará como um leão de anedota. Ao passo que os velhos vibram, exultam, estrebucham com a plástica feminina.
Portanto, a velhice atual nada tem a ver com as figurinhas nostálgicas, espectrais, da porta da Colombo. Em absoluto. O velho age e age como os belos sátiros vadios. E que faz o jovem com a sua bestial vitalidade, ninguém o sabe, nem a leitora diz. Mas volto ao dr. Alceu (sempre este homem fatal, como o Pinheiro Chagas). Desejo falar de dois recentes artigos seus, que parecem escritos por um jovem, e bem “pra frente”.
Diz ele que há uma “imagem convencional” e mesmo caricatural da Igreja Católica, e que seria a seguinte: — “uma instituição rigidamente hierarquizada, conservadora” etc. etc., “defensora dos ricos, da propriedade privada, dos latifúndios”. Vejam bem: — “defensora dos ricos” etc. etc. Esta é a assim chamada caricatura. Mas eu pergunto, no meu imenso e divertido espanto: — “Quem é o autor de tal caricatura e quem é o caricaturista?”. Por mais que me custe admitir semelhante verdade, o autor, ou um dos autores, é o próprio dr. Alceu; o caricaturista, ou um dos caricaturistas, é, ainda e sempre, o mesmo dr. Alceu.
Recentissimamente, ao chegar de Roma, onde falara ao próprio papa e lhe beijara a mão, declarou o eminente pensador católico o seguinte: — que, no passado, a Igreja primara por defender os privilégios das classes dominantes etc. etc. Só agora, de João xxiii a esta data, é que ela, Igreja, descobrira o caminho certo (portanto com um atraso de, pelo menos, 1960 e tantos anos). Dois ou três meses depois, vem o nosso Tristão de Athayde e chama de “imagem convencional”, de “caricatura”, um julgamento taxativo, um retrato inapelável, que ele próprio fizera de sua Igreja.
Portanto, ficamos sabendo, pela primeira fala, que a sua religião e ele próprio não foram outra coisa, em vinte séculos, senão lacaios das classes dominantes. E, ao mesmo tempo, com um simples piparote, pôs ele por terra todo um prodigioso passado. Se tirarmos o passado da Igreja, se a reduzirmos aos seus últimos quinze dias, não sobrou, dr. Alceu, nada. E são Francisco de Assis, com aquela vigarice de passarinhos? E a Joana d’Arc, torrando-se como um bife, como um churrasco? Também esta estava a serviço do capitalismo, da burguesia, do feudalismo, vendida a qualquer classe dominante. Quem o disse, desembarcando de Roma, foi o dr. Alceu, embora com dois mil anos de atraso.
Meu Deus, meu Deus! Só uma violenta, uma jucunda juventude de espírito levaria o nosso mestre a se dilacerar em tais contradições. Outro exemplo: — o seu artigo contra a censura. Imaginem vocês que eu não fui tão feliz. O mesmo dr. Alceu que ergue barricadas contra a censura é aquele que aplaudiu a interdição de Álbum de família; o mesmo que, há pouquíssimo tempo, só via obscenidade nos meus textos. E, de repente, vem ele e se dispõe a abençoar todos os palavrões. No caso de Álbum de família, solidarizou-se com a polícia. Disse que a polícia tinha direito sim, etc. etc. Mais uma vez é a juventude que explica tamanha ginástica espiritual. Como se sabe, o jovem não tem nada de cristalizado, ou de petrificado, ou como queiram. O jovem da véspera pode não ser o mesmo do dia seguinte (estou dando uma “imagem convencional”, uma “caricatura” da juventude). E o dr. Alceu é um ser múltiplo, coletivo. Podemos pluralizá-lo. Há um dr. Alceu a favor da polícia, outro dr. Alceu contra a polícia; mais outro a favor da censura, outro ainda contra a censura; um quinto dr. Alceu a favor da minha obscenidade e outro que me considera, de alto a baixo, um tarado.
[9/3/1968]
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