Pode parecer uma verdade exagerada, violentada, mas eu diria o seguinte: — no Brasil, a glória está mais no insulto do que no elogio. Se não me entendem, paciência. Mas ouçam uma boa e honrada conversa de brasileiros com brasileiros. Reparem como nós cochichamos o ditirambo e berramos o ultraje. Por coincidência, só ultrajamos os melhores.
Eu diria ainda que a nossa reputação é a soma dos palavrões que inspiramos nas esquinas, salas e botecos. Bem me lembro do dia em que Roberto Campos deixou o Poder. Já escrevi que o verdadeiro contínuo é o ex-ministro. E queria me parecer que Roberto Campos ia ser, como tantos, um dos contínuos sem uniforme da República.
Todavia, há coisa de um mês, entro num sarau de grã-finos. Num grupo, discutia-se o ex-ministro. E um dos presentes, chamado a opinar, largou um palavrão que eletrizou as senhoras próximas. Foi uma cena atroz. O sujeito sapateava como em transe mediúnico. Do seu lábio pendia a baba elástica e bovina do homicida. Disse e repetiu: “Dava-lhe um tiro! Dava-lhe um tiro!”.
E, então, subitamente, percebi que Roberto Campos era um falso defunto político. Um simples palavrão deu-me a medida de sua vitalidade histórica. De mais a mais, o sujeito gostaria de matá-lo. Eis a verdade: — as fantasias homicidas perseguem os estadistas. Ninguém quer fuzilar os idiotas do Estado, os cretinos do Poder.
Outra figura brasileira consagrada pelos palavrões: — Gustavo Corção. Ninguém diria, de maneira sucinta e inapelável: “É uma besta!”. Bem que as esquerdas gostariam que o fosse. Mas os seus piores inimigos sabem, e não teriam o cinismo de negar, que Gustavo Corção é uma das inteligências mais sérias do Brasil. Certa vez aconteceu-me uma passagem extraordinária com o grande pensador católico.
Era domingo. Voltava eu, não sei se de um clássico ou de uma pelada. Na saída do Estádio Mário Filho, alguém me chama. Volto-me e dou de cara com um amigo, uma flor das esquerdas, um doce radical como o Antônio Callado ou como o Hélio Pellegrino. Eu e o amigo caminhamos no meio da torcida. Acontecera um empate e ninguém gritava. A multidão tinha algo de tristeza fluvial no seu lerdo escoamento. Então o meu companheiro falou: — “Estou besta! Com a minha cara no chão!”. Pensei que ele, Fluminense como eu, estivesse desiludido com o Tricolor (realmente, o meu clube não compra ninguém). Mas ele continuou: — “Nunca pensei que o Corção...”. Fez uma pausa e repetiu: — “Estou besta! Besta!”.
Entre parênteses, esse meu amigo tem, pelo Corção, um ódio comovente. Não lhe diz o nome sem lhe acrescentar... Acrescentar, não. Não lhe diz o nome sem lhe antecipar um palavrão. Chega ao nome pelo palavrão. E, súbito, falava do inimigo com uma empostação diferente e, mesmo, inédita. Perguntei-lhe: — “Mas estás besta por quê?”.
Esquecia-me de dizer que o meu amigo levava um radinho de pilha. Abriu uma pausa na conversa para ouvir os comentários do João Saldanha e as gravações dos gols. Só depois do Saldanha é que voltamos ao Corção. Rádio desligado, e o outro me perguntou, na sua impressão profunda: — “Leste o artigo que ele escreveu? Que escreveu sobre o filho? Ó rapaz! O artigo do Corção sobre o filho?”.
Não era um artigo do dia ou da véspera. Da sua publicação, transcorrera toda uma semana. E, através dos sete longos dias, o artigo do Corção ficara badalando dentro do meu amigo como um sino inexorável. Membro da “festiva”, freguês do Antonio’s, havaiano de praia, relera o inimigo umas quinze vezes. E a cada leitura a sua perplexidade era cada vez mais amarga. Súbito, via um novo Corção, um Corção jamais suspeitado, um anti-Corção.
Vejam vocês: — o grande prosador escrevera uma página sobre o filho, Rogério. Foi um artigo de funda e dilacerada ternura. O nosso Rogério estava no Vietnã, como um dos representantes do Brasil. Lá, as balas não escolhem, não discriminam, e tanto estouram a cara do americano como do brasileiro. E havia no artigo todo um amor insuportável e uma solidão desesperadora.
O assombro do meu amigo tinha a sua lógica. Durante anos, criara e recriara, dia após dia, uma imagem hedionda do “reacionário”. Ele imaginava que, se o Corção passasse a mão pela face, havia de sentir a própria hediondez. Nunca lhe ocorrera que aquela besta-fera pudesse ter costumes, usos, gestos, como outro qualquer. Impossível um Corção tomando cafezinho ali na esquina; inadmissível uma gargalhada do Corção, ou um assovio do Corção. E aquele Corção pai, simplesmente pai, e simplesmente terno, e simplesmente infeliz, e simplesmente órfão do próprio filho, contrariava toda uma imagem feita de palavrões, de insultos, de baba.
Mas vejam toda a operação psicológica do meu amigo. A princípio, não entendera uma palavra, tão desconhecido, tão estrangeiro, tão alienado parecia aquele Corção vergado, sofrido, perdidamente solitário. Só depois é que, limpando a figura dos palavrões, dos ultrajes, das calúnias, é que o freguês do Antonio’s pôde chegar à luz última e verdadeira do inimigo.
Por fim, quem estava infeliz, na volta do Estádio Mário Filho, era o membro da “festiva”. A partir daquele momento, os seus palavrões soariam falsos aos próprios ouvidos. O meu amigo estava comovido e, pior, furioso com a própria comoção.
E então chegou a minha vez. Não me lembro de tudo o que disse de Gustavo e de Rogério. O esquerdista ouvia só, numa desesperada impotência para negar a imagem que eu ia elaborando de Corção. Expliquei-lhe que tudo em Corção é amor; poucas pessoas conheço com tanta vocação, tanto destino para o amor. O que parece ódio, nos seus escritos, é ainda amor. Amor que assume a forma das grandes e generosas procelas.
Bate forte, muitas vezes. Mas sempre por amor. Está fatalmente ao lado da pessoa e contra a antipessoa. É a luta que o apaixona. Todos os dias, lá vai ele atirar o seu dardo contra as hordas da antipessoa. Eis o que eu repeti para o meu amigo das esquerdas: — o Corção tem um coração atormentado e puro de menino.
Quem o sabe ler, percebe em todos os seus escritos o pai de Rogério, sempre o pai de Rogério, querendo salvar milhões de filhos, eternamente.
[7/3/1968]
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
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