sexta-feira, 10 de outubro de 2008

A MISSA CÔMICA

Uma das figuras obrigatórias desta coluna é a minha úlce­ra. Com o tempo, porém, criou-se entre mim e a ferida uma aco­modação recíproca e total. Trato-a a pires de leite, como uma gata. Outras vezes, dou-lhe mingaus hediondos. E não raro, quando ela está bem, pacificada, sinto a falta de sua dor.
Ah, se eu fosse um são Francisco de Assis, diria: — “Nossa irmã, a úlcera”. Ontem, alta madrugada, ela me despertou. Está ardendo em minhas entranhas. Como queima, meu Deus! Saio da cama e, no escuro, persigo os chinelos. Achei, achei. Venho para a cozinha. Teria de vencer uma última dúvida: — “Mingau ou copo de leite?”. A minha opção foi o mingau. A dor vai pas­sando. Acabo a papinha, venho para a janela. Acendo um cigar­ro, embora o fumo seja um veneno para minha úlcera (Lúcia vive dizendo: — “Você só deve fumar seis cigarros por dia”. Eu, com o maior descaro, prometo, juro, dou-lhe a minha pala­vra de honra),
Na janela da madrugada, penso: — “D. Hélder está quieto. Vou passar um mês sem falar em d. Hélder”. E não me ocorre que esse mês de silêncio será uma desfeita para o arcebispo. Sua figura, sua batina e sua alma exigem promoção. Ter o nome im­presso, a cara impressa, a palavra impressa — eis a sua gloriosa fome. Seja como for, achei que, durante trinta dias, podia dar-lhe o abominável silêncio.
Volto para cama e durmo. De manhã acordo e peço os jor­nais. Leio um, leio outro e não vejo o nome, o retrato de d. Hél­der. Começo a não entender. Eis o que me pergunto: — “Por que não fala? Por que não faz declarações?”. Tão irreal, tão ab­surdo d. Hélder calado. E, súbito, estremeço. Na última página de um suplemento, vou ler “As frases que ficaram” e encontro uma que me lança na mais dolorosa perplexidade.
Era de d. Hélder. Lá explicava o arcebispo de Olinda que não é nada demais rezar missa ao som da música popular. “Por que apenas os órgãos, os violinos, apenas os címbalos podem louvar a Deus, e não o reco-reco, a cuíca e o tamborim?” Li aqui­lo e reli. Por um momento, imaginei uma catedral. Passo a ou­tro tópico porque o assunto justifica.
Estamos na catedral. Já começou a missa. Mas não uma missa como há muitas, como há milhares, como há milhões. Não e absolutamente. Desta feita, a missa, a santa missa tem, por fun­do, “Mamãe, eu quero mamar”. Lá estão os padres, os coroi­nhas. E, ao mesmo tempo que cumprem o cerimonial, os pa­dres e os coroinhas fazem toda uma ginga de ventre e quadris e sambam com uma impressionante variedade rítmica.
Se vocês visualizaram a coisa, hão de imaginar o infalível efeito visual e auditivo. Os reacionários poderão objetar que uma catedral nunca foi uma gafieira. Aí está um desprimoroso sofisma. Acaso a gafieira não será também filha de Deus? E, além dis­so, se bem entendi o arcebispo de Olinda, também a missa tem de ser atualizada.
E existe o tempo que, como se sabe, não perdoa. Há um desgaste das horas, dias, meses e anos. Na década de vinte a trin­ta, Benjamim Costallat era o Proust. Dançava-se o charleston. O tango ainda não era um defunto. Do mesmo modo, a Igreja não pode sentir, pensar, agir como na Idade Média. O dr. Alceu escreve sobre o “progressismo”. E, seguindo a mesma linha que o d. Hélder, propõe a “missa cômica”. O sobrenatural na ga­fieira.
Convoco um leitor a um terreno baldio. Não há ninguém por perto ou por outra: — há uma cabra vadia e, felizmente, uma cabra de bem, digna de toda a confiança. E, aqui, neste capinzal paradisíaco, eu e o leitor podemos dizer as últimas um ao outro. Não sejamos injustos com d. Hélder. Se não, vejamos: — cada época tem a sua fé. Só os bovinos, os pascácios podem imaginar uma fé perfeita, irretocável, imutável. É preciso dan­çar de acordo com a música ou, melhor dizendo, de acordo com a moda.
Depois de assim falar ao leitor, no terreno baldio, eu passo a comunicar-lhe as minhas fantasias. Já que d. Hélder colocou a fé em termos de gafieira, eu, de bom grado, vou enriquecer a sua missa cômica. Eis a cena: — os padres e coroinhas estão sambando. E, súbito, os santos entram no brinquedo. Por sua vez, as velhinhas beatas se sacodem como patas no tanque.
Há números espetaculares. São Benedito revela-se um pas­sista emérito. Com um dedo roda o pandeiro. Outro santo equi­libra laranjas no focinho, como uma foca amestrada. Ainda ou­tro planta bananeira e põe labaredas pelas ventas etc. etc. etc. E notem como d. Hélder enxerga longe. A gafieira estava fazen­do concorrência à fé. Portanto, vamos trazer para as catedrais o reco-reco, a cuíca e o tamborim.
(Eis que me dá, de repente, um tédio mortal dos tambo­rins, cuícas e reco-recos de d. Hélder.) Mas tenho ainda outro assunto paralelo. É o seguinte: — eu era garotinho quando uma tia leu para mim os Dez Mandamentos. Súbito ouço, pela pri­meira vez o “Não matarás”. Ninguém imagina o espanto, o me­do e o deslumbramento que senti. Foi o Mandamento que mais doeu e mais fascinou a minha infância. E, muitos anos depois, já adulto, e até hoje, continuo ouvindo o “Não matarás”, eternamente.
(Em 1929, meu irmão Roberto foi assassinado. E como me feriu, na carne e na alma, o “Não matarás”.) Quero saber se vo­cês leram o que disse o dr. Alceu sobre guerrilhas. Se não le­ram, vamos lá. Eis o que declara o eminente pensador católico: — só não é favorável às guerrilhas no Brasil porque os nossos camponeses não são politizados. Por uma dedução obrigatória verificamos que, em caso de tal politização, nosso Tristão nada teria a opor às guerrilhas brasileiras. No resto do mundo, ótimo que elas continuem bebendo sangue.
Eis o que eu desejaria perguntar ao piedoso Tristão de Athayde. Que idéia faz ele de guerrilha? Pensa talvez que é al­gum piquenique? Não sabe que guerrilha mata? Mata, dr. Alceu, mata. E como é que o senhor enxota o “Não matarás” como quem afasta, com o lado do sapato, uma barata seca?
[17/3/1968]

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