Por onde andará o Carlos Heitor Cony? Há dois ou três meses, ele tomou um avião e partiu. Ia fazer a Europa. Na véspera, ofereci-lhe um cafezinho, ali no boteco da esquina. Dei-lhe conselhos desesperados: — “Não faça isso. O brasileiro não deve viajar nunca”. Expliquei que o europeu pode viajar, porque continuará europeu. Um inglês será eternamente inglês, no céu ou no inferno. Já o brasileiro pode deixar de ser brasileiro.
O Cony fez a pergunta: — “E quem deixou de ser brasileiro?”. Respondi: — “O Cláudio Mello e Souza”. Contei-lhe o estranho caso desse meu amigo. Certa vez o Cláudio foi, a título profissional, à Europa. Levei-o ao Galeão. E, no aeroporto, já o via como um brasileiro a menos. Aí está o mistério abominável: — o brasileiro que viaja deixa de ser brasileiro. Não sei por que, e apenas constato. O Cláudio passou dois dias em Roma. Não mais: dois dias.
Essa visita fulminante devia mudá-lo, até fisicamente. Ou por outra: — fisicamente, não digo. Ele há de ser o claro havaiano e insisto: — é o único havaiano branco da vida real. Em Roma, o Cláudio saía de um espanto para outro espanto. Lá, descobriu o tempo. O Tempo, o Tempo! No Brasil não há tempo. Temos quinze minutos de História. Ao passo que, na Itália, um pires, uma xícara, uma pia, uma bica, têm mil anos. O quadril de uma menina é de uma graça milenar e terrível.
Nas escassas 48 horas de Roma, o Cláudio deixou de ser brasileiro. E aí está dito tudo. O pior estrangeiro é o brasileiro que vem de fora, vem de outro idioma, vem de outra geografia. Daqui partira um maravilhoso ser recente, sem nenhuma História. E o que voltava era um Cláudio saturado de mil anos.
Na volta do Galeão houve entre ele e o Pão de Açúcar um grave equívoco visual. Os dois não se reconheciam. Sim, eram dois estrangeiros que se olhavam com suspeita e desprazer, E a própria baía, e a própria luz, os verdes, os azuis. Para que entendesse a nossa paisagem, o meu amigo precisou de seis meses de acomodação óptica. E tudo porque passara em Roma 48 horas.
Eu temia que o Cony, a partir da ilha Rasa, deixasse de ser brasileiro. Deus me livre de um Cony parisiense, ou romano, ou londrino. Esse meu amigo precisa ter, por fundo, o boulevard 28 de Setembro ou os oitis de São Francisco Xavier. E mais: precisará ser o moleque e, repito, é o moleque que lhe dá uma dimensão universal.
Falei de viagem e não era de viagem que eu queria falar. Simplesmente a minha intenção original era contar a minha conversa com o Carlos Heitor na véspera da partida. Vinte e quatro horas antes, o Cony era mais europeu do que brasileiro. E bateu um papo bem carioca comigo. Súbito surgiu na conversa o nome de Flávio Rangel, da nova geração de diretores teatrais.
Não sei se vocês o conhecem. O Flávio é do teatro, e ai de nós. No Brasil só a televisão dá fama, dá glória e, mais, dá imagem. Outrora o sujeito era conhecido pelo nome, e a cidade ou o Brasil tinha os grandes nomes. Com a televisão, a celebridade exige a cara, o terno, a camisa, a voz. E o nosso Flávio Rangel está por trás do espetáculo. Tem a invisibilidade do contra-regra. Será famoso para uma meia dúzia e solidamente desconhecido para o grande público. Portanto tentarei dar uma informação física do consagrado artista.
Direi que, fisicamente, é bem brasileiro (não tem nada de havaiano como o Cláudio). Quem o veja, no meio da rua, há de imaginá-lo um desses bancários cheios de reivindicações salariais. Sem querer, descobri a semelhança exata. Flávio Rangel, bancário, e ganhando pouco além do salário mínimo. Em suma, não há nele nada que lembre o herói. Sim, seu gesto, sua inflexão, suas poses, não têm nenhum toque patético ou sublime.
E, por esse lado, é muito brasileiro. Realmente, a vida do brasileiro me parece a antiepopéia. Temos pouco que fazer. Mesmo olhando para trás falta-nos o dramatismo, e insisto: — falta-nos História. Não temos Bórgias e, nisso, o Cláudio tem razão. Jamais floresceu por aqui um único e escasso Bórgia. E, como não há história de sangue, não vamos exigir de Flávio Rangel nenhuma densidade especial.
Mas, se nós somos a antiepopéia, temos por vezes, excepcionalmente, certos rompantes de grande povo. Justamente, o Cony referiu um desses episódios raros na vida do brasileiro. Foi por ocasião dos ensaios de Liberdade, liberdade, de Flávio Rangel e Millôr Fernandes. Os dois, Flávio e Millôr, juntaram vários crimes contra a liberdade cometidos em vários países. Como é óbvio, a Rússia não podia ficar de fora. E os autores foram exemplarmente honrados: — meteram, no texto e no espetáculo, a contribuição russa.
Liberdade, liberdade ainda estava em ensaios. E começou a pressão contra os autores. Contam que um idiota, depois de um ensaio corrido, berrava no meio da platéia: — “Peça reacionária! Peça reacionária!”. Millôr resistiu com a maior decência. E, uma noite, três enviados do Partido cercaram Flávio Rangel. Um deles começou: “Você não pode fazer isso. Não pode admitir isso!”.
O Partido Comunista está podre. Não tem força real, não elege ninguém. Ainda outro dia dizia-me o Hélio Pellegrino (e me autorizava a publicá-lo): — “Não há nada mais perempto, nada mais alienado e mais reacionário do que o Partido Comunista Brasileiro!”. E, no entanto, vejam vocês: — esse partido idiota, que já morreu e não sabe que morreu, esse partido sem massa e sem liderança — ainda tem certa capacidade de pressão sobre nossos intelectuais, estudantes e grã-finos. Mas vejamos a tentativa de intimidação que sofreu Flávio Rangel.
Um dos imbecis do Partido tomou a palavra. Limpou um pigarro e disse, como um súbito Barroso: — “O Partido espera que cada um...”. Não foi bem assim. Disse o seguinte: — “Os trabalhadores do Brasil esperam que você tire a Rússia”. Vejam vocês: — tirar a Rússia. Queriam, em suma, que o nosso Flávio Rangel agisse como um pulha, um covarde da pior espécie. Ele disse corajosamente: “Não posso fazer isso”. E perguntava: “Não é a liberdade? Crime contra a liberdade? E não aconteceu?”. Os outros falavam em “trabalhadores”, “massas”, “História”, “classes”, “camponeses”, “imperialismo” etc. etc. etc.
Essa coação miserável se exercia num sigilo de catacumba, quase à luz de archotes. E Flávio Rangel deu a última palavra: — “Não, não e não”. O leitor, que é de uma espessa ingenuidade, não sabe como valorizar e dramatizar o ato de Flávio Rangel. Parece pouco, mas é tanto, tanto. No medo de passar por reacionário o brasileiro comete as mais negras abjeções. E o Partido, o famoso Partido, sabe como tocar as nossas mais secretas pusilanimidades. Ao reagir, Flávio foi o “inimigo do povo” da linha ibseniana, capaz de uma resistência assim solitária e formidável.
[23/3/1968]
sábado, 11 de outubro de 2008
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