Às três horas da manhã acordei. Rápido e elástico, salto da cama. Fico um momento em pé, no quarto, e descalço. A pequenina lâmpada, na mesinha-de-cabeceira, faz uma penumbra de boate. E, súbito, começo a sentir uma falta desesperadora não sei de quê. Venho para a sala, sento num canto. Algo me falta, algo. Até que, de repente, baixa a luz em mim: — falta a dor da úlcera.
Via de regra, a dor me acorda às três da manhã, religiosamente. Parece fantasia, mas é verdade. Imaginem uma dor amestrada, que vem na hora certa. E, hoje, pela primeira vez, faltou. Deu-me o bolo. Estou sentado e me levanto. Começo a andar de um lado para outro. A lesão está quieta como nunca. Mas repito: — falta a dor, exatamente: a dor. É o sono da úlcera.
Sem dor, acabo tomando a papinha analgésica. E, ao mesmo tempo, começo a pensar em Jean-Paul Sartre. (No meio do mingau, a ferida começa a doer.) De onde vem o meu horror a Sartre? Foi numa conferência do mestre. Lembro-me de tudo. Conferência, ali, na abi. Lá fora, chovia. Houve um tempo em que Olegário Mariano punha uma chuva em todos os seus versos. E fazia um mau tempo de Olegário Mariano.
Repito a pergunta: — como começou o meu horror a Sartre e por que começou? Vamos lá. Eu estava na sala superlotada. Diria, como nas minhas crônicas esportivas, que tinha gente até no lustre. Por mais estranho que pareça, eu não prestava a menor atenção ao conferencista. Mais que a palavra de Sartre, fascinou-me a cara dos seus admiradores.
A cara! Numa de minhas peças, um personagem propõe uma folha de parreira para o rosto. E alegava, com uma certeza fanática: — “Só o rosto é obsceno”. Assim falou o meu personagem. Eu, porém, não seria tão radical. Nessa mesma peça, um outro personagem objetou: — “Só o rosto do morto não é obsceno” etc. etc. Eis o que eu queria notar: — a cara dos admiradores de Sartre merecia, sim, a folha de parreira.
Homens e mulheres lambiam com a vista o filósofo. Por certo, há admirações nobilíssimas e outras que são abjetas. Naquela tarde, e naquela sala, eu só via admirações abjetas. (Se querem saber, não sei francês. Não sei nenhuma outra língua além da minha. As coisas só existem na minha própria língua.) Contei essa passagem para acrescentar, finalmente: — o meu horror a Sartre começou nos seus admiradores e, mais precisamente, começou na cara dos seus admiradores.
Só posteriormente é que tratei de fazer uma revisão da obra sartriana. Mas o ficcionista, ou o filósofo, ou seja lá o que for me interessa muito menos do que o homem. Deixo de lado as suas peças, toda a sua ficção, a sua filosofia, artigos, ensaios. Vou-me ocupar, apenas, de algumas “indignidades” do “grande homem”. Sua obra é todo um gigantesco julgamento dos valores de vida. Vamos também julgá-lo.
Sartre recusou o Prêmio Nobel. Convém esvaziar tal renúncia de todo o falso patético, de todo pseudo-sublime. O filósofo não perdeu um tostão. Pelo contrário: — foi um gesto promocional de gênio e que serviu apenas para aumentar a sua bilheteria. Mas vamos esquecer a aparente grandeza da atitude. Façamos a releitura do documento, falsamente nobre, falsamente altivo, em que repudia o cheque sueco.
Argumenta o filósofo que o Prêmio Nobel foi concedido a Boris Pasternak. Mas quem é Pasternak? Diz ele: — “Um escritor que não é lido em sua própria terra”. Vejam: — “Um escritor que não é lido em sua própria terra”. Aí está o canalha, o límpido, o translúcido canalha Jean-Paul Sartre. Se disse isso, é um canalha (e o disse num claro e deslavado documento para o mundo).
E repito: — de uma simples frase emerge todo o canalha. Vejam bem. Um crime contra a inteligência impediu que Pasternak fosse lido em sua própria língua. E Sartre está a favor do “crime” e contra a vítima. Pasternak é um poeta, um romancista, um pensador que o totalitarismo soviético havia de exterminar, até fisicamente. E Sartre não pinga uma palavra de compaixão sobre o assassinato de um artista.
(Preciso falar também de um prodigioso documento. É um manifesto de Oitocentos intelectuais russos. E lá se faz também a excomunhão do autor em desgraça. Oitocentos intelectuais russos, Oitocentos canalhas.) Mas a miséria não pára aí. Perguntem aos nossos intelectuais de esquerda: — “Vocês leram o que Sartre disse sobre o Pasternak?”. Ninguém leu, ninguém viu, ninguém sabe. O monstruoso documento saiu em todos os idiomas. E nós, que o lemos e o relemos, fingimos um pequeno, irrelevante, cínico lapso de memória.
Agora mesmo vejo um telegrama de Moscou, que todos os jornais publicaram: — nove intelectuais russos foram julgados e condenados sumariamente. Imagino se esses também assinaram o manifesto contra Pasternak. Leiam os nossos próximos suplementos dominicais. Os nossos intelectuais de esquerda não vão exalar um mísero e tênue suspiro. É um crime contra a inteligência. Mas Jean-Paul Sartre disse, aqui, que a Rússia era “a Revolução”. E, como tal, tem todo o direito de enfiar na cadeia a canalha intelectual.
Eis o que eu queria dizer: — convém ter pudor de ser artista. Nunca a inteligência se degradou tanto.
[22/4/1968]
domingo, 19 de outubro de 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário