domingo, 19 de outubro de 2008

O TRANSLÚCIDO CANALHA

Às três horas da manhã acordei. Rápido e elástico, salto da cama. Fico um momento em pé, no quarto, e descalço. A pe­quenina lâmpada, na mesinha-de-cabeceira, faz uma penumbra de boate. E, súbito, começo a sentir uma falta desesperadora não sei de quê. Venho para a sala, sento num canto. Algo me falta, algo. Até que, de repente, baixa a luz em mim: — falta a dor da úlcera.
Via de regra, a dor me acorda às três da manhã, religiosa­mente. Parece fantasia, mas é verdade. Imaginem uma dor ames­trada, que vem na hora certa. E, hoje, pela primeira vez, faltou. Deu-me o bolo. Estou sentado e me levanto. Começo a andar de um lado para outro. A lesão está quieta como nunca. Mas repito: — falta a dor, exatamente: a dor. É o sono da úlcera.
Sem dor, acabo tomando a papinha analgésica. E, ao mes­mo tempo, começo a pensar em Jean-Paul Sartre. (No meio do mingau, a ferida começa a doer.) De onde vem o meu horror a Sartre? Foi numa conferência do mestre. Lembro-me de tu­do. Conferência, ali, na abi. Lá fora, chovia. Houve um tempo em que Olegário Mariano punha uma chuva em todos os seus versos. E fazia um mau tempo de Olegário Mariano.
Repito a pergunta: — como começou o meu horror a Sar­tre e por que começou? Vamos lá. Eu estava na sala superlota­da. Diria, como nas minhas crônicas esportivas, que tinha gen­te até no lustre. Por mais estranho que pareça, eu não prestava a menor atenção ao conferencista. Mais que a palavra de Sartre, fascinou-me a cara dos seus admiradores.
A cara! Numa de minhas peças, um personagem propõe uma folha de parreira para o rosto. E alegava, com uma certeza fanática: — “Só o rosto é obsceno”. Assim falou o meu persona­gem. Eu, porém, não seria tão radical. Nessa mesma peça, um outro personagem objetou: — “Só o rosto do morto não é obs­ceno” etc. etc. Eis o que eu queria notar: — a cara dos admira­dores de Sartre merecia, sim, a folha de parreira.
Homens e mulheres lambiam com a vista o filósofo. Por certo, há admirações nobilíssimas e outras que são abjetas. Na­quela tarde, e naquela sala, eu só via admirações abjetas. (Se que­rem saber, não sei francês. Não sei nenhuma outra língua além da minha. As coisas só existem na minha própria língua.) Con­tei essa passagem para acrescentar, finalmente: — o meu hor­ror a Sartre começou nos seus admiradores e, mais precisamente, começou na cara dos seus admiradores.
Só posteriormente é que tratei de fazer uma revisão da obra sartriana. Mas o ficcionista, ou o filósofo, ou seja lá o que for me interessa muito menos do que o homem. Deixo de lado as suas peças, toda a sua ficção, a sua filosofia, artigos, ensaios. Vou-me ocupar, apenas, de algumas “indignidades” do “grande ho­mem”. Sua obra é todo um gigantesco julgamento dos valores de vida. Vamos também julgá-lo.
Sartre recusou o Prêmio Nobel. Convém esvaziar tal renún­cia de todo o falso patético, de todo pseudo-sublime. O filóso­fo não perdeu um tostão. Pelo contrário: — foi um gesto pro­mocional de gênio e que serviu apenas para aumentar a sua bi­lheteria. Mas vamos esquecer a aparente grandeza da atitude. Façamos a releitura do documento, falsamente nobre, falsamente altivo, em que repudia o cheque sueco.
Argumenta o filósofo que o Prêmio Nobel foi concedido a Boris Pasternak. Mas quem é Pasternak? Diz ele: — “Um es­critor que não é lido em sua própria terra”. Vejam: — “Um escritor que não é lido em sua própria terra”. Aí está o canalha, o límpido, o translúcido canalha Jean-Paul Sartre. Se disse isso, é um canalha (e o disse num claro e deslavado documento para o mundo).
E repito: — de uma simples frase emerge todo o canalha. Vejam bem. Um crime contra a inteligência impediu que Pas­ternak fosse lido em sua própria língua. E Sartre está a favor do “crime” e contra a vítima. Pasternak é um poeta, um romancis­ta, um pensador que o totalitarismo soviético havia de extermi­nar, até fisicamente. E Sartre não pinga uma palavra de compai­xão sobre o assassinato de um artista.
(Preciso falar também de um prodigioso documento. É um manifesto de Oitocentos intelectuais russos. E lá se faz também a excomunhão do autor em desgraça. Oitocentos intelectuais russos, Oitocentos canalhas.) Mas a miséria não pára aí. Pergun­tem aos nossos intelectuais de esquerda: — “Vocês leram o que Sartre disse sobre o Pasternak?”. Ninguém leu, ninguém viu, nin­guém sabe. O monstruoso documento saiu em todos os idio­mas. E nós, que o lemos e o relemos, fingimos um pequeno, irrelevante, cínico lapso de memória.
Agora mesmo vejo um telegrama de Moscou, que todos os jornais publicaram: — nove intelectuais russos foram julgados e condenados sumariamente. Imagino se esses também assina­ram o manifesto contra Pasternak. Leiam os nossos próximos suplementos dominicais. Os nossos intelectuais de esquerda não vão exalar um mísero e tênue suspiro. É um crime contra a in­teligência. Mas Jean-Paul Sartre disse, aqui, que a Rússia era “a Revolução”. E, como tal, tem todo o direito de enfiar na cadeia a canalha intelectual.
Eis o que eu queria dizer: — convém ter pudor de ser artis­ta. Nunca a inteligência se degradou tanto.
[22/4/1968]

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