sábado, 18 de outubro de 2008

O ESPÍRITO MORTO

De repente, parou, abriu os braços para o céu: — “Ai de ti, Sion! Ai de tua mulher e dos teus filhos, se esqueceres o es­pírito!”. Era velho, velho de uma velhice infinita, milenar. Dei­xou para trás o seu horrendo soluço e partiu. De vez em quan­do, parava e, levantando o gesto profético, repetia: “Ai de ti, Sion! Ai de tua mulher e dos teus filhos, se esqueceres o espíri­to!”. Até que atravessou um deserto. Ninguém para ouvi-lo, nin­guém.
Mas ele falou também para o deserto. Não esquecer o espí­rito, jamais esquecer o espírito. O deserto se povoou de espan­to. E assim, com suas duras e feias sandálias, o grande velho vem gritando, sem nunca parar. Todos o apontam: — “Olha o hebreu! Olha o hebreu!”.
Eis o que eu queria perguntar: — que será do brasileiro, da mulher e dos filhos do brasileiro? A verdade é que não faze­mos outra coisa, na vida, senão esquecer o espírito. Ainda ou­tro dia, alguém me dizia: — “Não há mais espírito!”. E, no seu patético, que raiava pelo sublime, o meu amigo fala de um pa­dre progressista, sim, um sacerdote “pra frente”. Do alto do púlpito, exortava os fiéis: — “Manda brasa, pessoal! Manda brasa!”.
Decerto, ali estava, à sombra dos círios, um desafeto do es­pírito. Mas não era bem isso que eu queria dizer. Eu ia falar dos grã-finos, que os há e altamente politizados. E o velho hebreu foi, nesta crônica, uma presença inesperada e vociferante. Reti­ro de cena a sua retórica senil e passo adiante.
Voltemos ao palácio do Alto da Boa Vista. Falei dos smok­ing e decotes vietcongs, das poses marxistas (e havia também um mordomo de casaca, como no filme policial inglês). Mas, por um desses lapsos fatais, esqueci-me de mencionar a “nota realista” do sarau. Foi uma página de Os Matas. Vocês se lem­bram do Alencar, do Eça. O velho romântico fez um soneto que terminava assim: — “E, ao longe, um burro, pensativo, pasta”. Justamente, o burro era a “nota realista”.
E a reunião citada teve também a “nota realista”. Vamos lá. Na altura de três da manhã, uma bela senhora, recente capa de Manchete, diz vivamente: — “Sabe que Marx sofria de furúnculos?”. E, aqui, abro um breve parêntese. Ninguém sofre mais, em nossa mão, do que o velho Karl Marx. É impressionante como cada um de nós se empenha em aviltar e imbecilizar o marxis­mo. De vez em quando, vem um idiota dizer-nos nas salas, es­quinas e botecos: — “Marx mudou a face do mundo”.
Nada mais inexato. Não foi Marx que mudou a face do mun­do. Foi o mundo que mudou a face de Marx. A Rússia, a China, Cuba e toda a Cortina de Ferro mudaram a face de Marx. Mao Tsé-tung chama de “tigre de papel” a bomba atômica e acha graça na guerra nuclear. Eis o seu raciocínio: — se a China per­der quatrocentos milhões de chineses, sobrarão outros quatrocentos milhões. É óbvio que esse argumento de prodigiosa de­bilidade mental nada tem de marxista.
(Mao Tsé-tung é o antiMarx, do mesmo modo que é a anti-pessoa.) Tenho dito que a nossa época está ferida pela solidão. Não vejo outro tema mais urgente e fascinante. Somos todos solitários. Odiamos, matamos e morremos por solidão. Eu po­deria juntar mais uma: — a solidão de Marx. Ninguém mais fe­rozmente incompreendido, ninguém mais tenazmente falsificado. E como o corrompem.
Volto à “nota realista”. E o furúnculo, por ser marxista, tornou-se o assunto obsessivo dos grã-finos. Notei a reação das senhoras decotadas. Elas falavam da “furunculose” como uma beata falaria das chagas de Cristo. Ou por outra: — não é bem assim. Não se tratava mais de uma coceira, de uma inflamação meio folclórica. Havia um tom como que lúbrico. Os trinta ca­sais ainda chamavam Marx de “o velho”. Agora, “o velho” es­tava acrescido de mais uma virtude, que era, precisamente, a furunculose, em boa hora lembrada.
E, de fato, em sua correspondência, Marx conta os seus padecimentos físicos. Os furúnculos o perseguiam desde criança. Já velho, tinha que largar a luta de classes etc. etc., para que alguém espremesse a constelação de furúnculos. Mal sabia ele que, tanto tempo depois, num palácio do Alto da Boa Vista, ses­senta grã-finos iam dramatizar a sua furunculose como se fossem chagas místicas e radiantes.
Por aí se vê como degradamos “o velho”. (Por mim, só lhe faço a objeção já declarada: — quero que ele devolva a minha alma imortal.) Mas vejam a “nota realista”. Parou a reunião grã-fina. Todos os assuntos morreram. E só se falou, com estreme­cida volúpia, em nostálgicos furúnculos.
(Mas ao chegar a este ponto, descubro em mim a vontade de anunciar: — eu estava de smoking. É como se dissesse: — “Eu tenho smoking”. Vejam vocês o meu pudor físico. Falei do mordomo de casaca. E não dizia uma palavra sobre o meu smoking. Enfim realizo a minha vaidade pueril e terrível.)
Tenho mais uma palavra a dizer sobre a solidão. Ontem, almocei com o “Marinheiro Sueco”. Fisicamente enorme, tem ele a fragilidade indefesa dos gigantes. E o “Marinheiro” abre o coração: — “Não sei o que há comigo!”. Pausa e repete: — “Há uma coisa, não sei”. Preparava uma confidência e fez a con­fidência: — “Estou com vontade de brigar. De quebrar caras”. Olhava em torno, querendo vítimas. Só depois de muita con­versa, descobriu a origem de sua agressividade gratuita. Lera no Globo o telegrama sobre conflitos estudantis por todo o mun­do. Era assim uma ferocidade por imitação, uma ferocidade in­duzida e irresistível.
Ah, se um de nós lesse, em vez de uma notícia de ódio, uma mensagem de amor. Quero crer que a mensagem morreria em nós e não nos daria nenhuma vontade de amar. Ao passo que um vago telegrama deflagra em nós um ódio vil. Eu gostaria de falar ainda da solidão do gesto de amor. Mas paro aqui.
[19/4/1968]

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