sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

ATOR EM BUSCA DE PLATÉIA

Perguntaram-me, certa vez, a minha opinião sobre d. Hélder. Respondi imediatamente, como se tivesse a resposta na pon­ta da língua. Disse eu que o nosso arcebispo era um ator que galopava, arquejante, atrás de uma platéia. Sim, d. Hélder tro­cará o paraíso por um único e escasso espectador. Precisa de alguém, e repito, de alguém que o assista, e o carregue, e bri­gue pelo seu autógrafo.
E, se é um indubitável ator, vamos admitir que nasceu no país certo. Vejo o Brasil como a pátria do gesto, da inflexão, da ênfase, do grande efeito plástico. Direi ainda que o brasilei­ro é a melhor platéia do mundo. Nas outras terras, o êxito pas­sa rápido e até o último vestígio. A Duse da véspera pode ser a canastrona do dia seguinte.
No Brasil, não. Sendo um espectador nato, o brasileiro tem um potencial generosíssimo de admiração e amor. Eu citaria o caso de Vicente Celestino. Há setenta anos faz o mesmo suces­so. Entendam: — seu sucesso tem mais idade do que o século. Do seu primeiro recital até hoje, aconteceu o diabo.
Houve a Primeira Grande Guerra, o fuzilamento de Mata-Hari, o assassinato de Pinheiro Machado, a Segunda Grande Guerra, Hiroshima, a pílula anticoncepcional, Chico Buarque etc. etc. As gerações morrem, mas Vicente Celestino sobrevi­ve. Há setenta anos merece a mesma apoteose.
Dirão que o mérito do cantor explica a glória septuagenária. Mas não vamos esquecer o mérito da platéia. O brasileiro nasceu com a vocação do aplauso. E d. Hélder é outro exemplo atualíssimo. Há setenta anos admiramos Vicente Celestino. A nossa ad­miração por d. Hélder é mais recente e não menos profunda.
Ninguém se cansa de ser platéia de d. Hélder. Quando se pensa que começou o seu desgaste, eis que ele surpreende o país com um novo impacto. Na “Confissão” de ontem, comen­tei, por alto, as suas declarações em Roma. Numa pátria extre­mamente plástica, histriônica, teatral, como a Itália, o grande ator logrou o seu maior efeito cênico. Simplesmente, apresen­tou-se como o homem que vai morrer.
Morrer seria o de menos. O homem vive atrás de pretex­tos para morrer. Morremos com a maior inconseqüência. Ain­da ontem, o meu amigo José Lino Grünewald contou-me o ges­to de um amigo de Breton. Numa reunião de artista, Breton quis falar e lhe foi negada a palavra. Então, o seu amigo ergueu-se, puxou o revólver e meteu uma bala na cabeça. O suicídio foi o seu “não-apoiado”. E assim morreu nas barbas escandaliza­das dos presentes.
Todavia, não precisamos mudar de idioma, nem de conti­nente. Aqui mesmo, ou por outra, ali, em São Paulo, um rapaz atravessava com a noiva o viaduto do Chá. E, súbito, vira-se pa­ra a noiva e diz: — “Quero ver que tal é a morte”. A garota não entendeu. Ou só entendeu quando o viu atirar-se, lá de cima, e esborrachar-se cá embaixo, no asfalto. Eis o que eu queria di­zer: — nem sempre assumimos, diante da morte, uma atitude solene, enfática, hierática. Há mortes de uma puerilidade total.
Estou dizendo tudo isso e vocês não sabem por quê. Ex­plico: porque, ontem, recebi um telefonema de outra aluna da puc. Foi logo explicando: — “Sou comunista, mas da linha chi­nesa. Acho nosso Partido Comunista o mais burro do mundo”. Observei: — “Talvez, talvez. Mas deixemos a burrice alheia e tratemos da nossa”. E, então, a menina (tinha 21 anos) começou a falar a favor de d. Hélder e contra mim. Disse: — “O se­nhor está fazendo piadinhas! O senhor acha que o d. Hélder gos­taria de ser assassinado?”.
Eu sabia que estava desafiando a ira da minha leitora. Mas respondi: — “Acho”. E ela, no seu assombro: — “Acha?”. Re­peti: — “Acho”. Se o leitor persistisse na pergunta, teria eu de responder com o mesmíssimo, mas honrado, descaro: — “Acho”. Quando d. Hélder suspira que “teme” ser assassina­do, não “teme” absolutamente e sim “deseja”.
Conversei com a Guarda Vermelha durante umas duas ho­ras. Eis o raciocínio que, debaixo dos seus protestos, fui desenvolvendo. A meu ver, a fala de d. Hélder em Roma foi um lance promocional de gênio. Ele quase descreveu, quase datou, qua­se representou o próprio assassinato. A platéia italiana já nem respirava. Uma menina, que chupava drops, cuspiu o drops. É raro que, num homicídio, a vítima tenha batina. A batina é sem­pre plástica, teatral. Em suma: d. Hélder fez toda a mise-en-scène do brutal atentado.
Mas a hipótese patética tinha um defeito. A morte violenta só fere o gesto de amor. Kennedy era o gesto de amor. E uma bala arrancou-lhe o queixo. Luther King era também amor. Ti­nha de morrer, porque todos odiamos o amor. Este mundo é a casa do ódio. Ora, d. Hélder não morrerá, porque prega a vio­lência. Há uma “violência justificada”, há uma “carnificina san­ta”, diz a ala da Igreja a que ele serve.
Dizia eu à aluna da puc que não existe mistério na fantasia fúnebre de d. Hélder. Ou por outra: — é um mistério que não esconde nada, o mais transparente dos mistérios. O que se insi­nua em cada gesto, em cada palavra de sua conferência, é a pu­ra vaidade. O nosso arcebispo faz-me lembrar aquela figura de ficção. Imaginem um sujeito que, em cima do meio-fio, espiava um grande enterro. Ao ver os cavalos de penacho, as coroas, o acompanhamento, invejou o defunto e quis estar ali, dentro daquele caixão de primeira. D. Hélder gostaria de ter as manchetes de Kennedy, as primeiras páginas de Guevara, a promo­ção de Luther King.
Pouco a pouco, e depois de muita insistência no assunto, eu e a Guarda Vermelha começamos a visualizar o crime. Afinal, so­mos brasileiros; e o assassinato de quem quer que seja enterne­ce até as pedras da nação. Por fim, com a voz úmida, ela pergun­ta: — “O senhor acha que ele vai ser assassinado?”. Tratei de dissuadi-la. Eis o meu argumento: — d. Hélder não é o arcebis­po, não é o místico e tampouco o guerrilheiro. Não. É o ator. Se pudesse morrer como a Sarah Bernhardt, no 5° ato de A dama das camélias, e se, como a Diva, pudesse levantar-se, em segui­da, para receber os bravos, os bravíssimos e as corbeilles — d. Hélder representaria, todas as noites, o próprio assassinato.

[26/4/1968]

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