No futuro, quando as gerações sapatearem em cima das nossas cinzas, bastará recorrer às suas coleções. E os curiosos saberão como nós sorríamos e vestíamos, e calçávamos, e amávamos etc. etc. Eis o que eu queria sublinhar: — há coisas que só o Jornal do Brasil diz, faz, afirma ou insinua. Por exemplo, a sua primeira página de ontem, aliás anteontem. Os colecionadores deviam guardá-la, amorosamente. Sim, ela há de valer, no futuro, tanto quanto um Rembrandt, um Goya, um Van Gogh ou um Gauguin.
Mas disse eu, mais acima, que há coisas que só o Jornal do Brasil faz, só o Jornal do Brasil ousa. E aqui abro um parêntese para falar de um dos muitos prodígios do grande órgão. Eis o caso: tempos atrás, houve um jogo de futebol. Era um desses clássicos que param uma população. A cidade deixou de matar, de morrer, de roubar, de assaltar. As nossas Kareninas, as nossas Bovarys, dataram o adultério para depois do jogo.
E houve o clássico. Uma multidão inédita. Quando se anunciou a renda, a massa tremeu como se aquele dinheiro viesse para o bolso de cada um. Por um motivo que não me lembro, fui eu o único brasileiro, vivo ou morto, que não compareceu ao Estádio Mário Filho. No dia seguinte corro ao Jornal do Brasil. A primeira página abria um espaço generosíssimo para a batalha. Li os títulos, os subtítulos, as legendas e o resto.
Assim como a expedição do Jornal do Brasil tem uma frota de caminhões, sua redação tem outra frota de estilistas. Há sempre um Flaubert que redige ou faz o copydesk de sua primeira página. Imaginemos um atropelamento de cachorro. Pois um Proust o descreveria. Ou por outra: a hipótese mencionada é a única que não cabe no Jornal do Brasil. Por ordem do dr. Brito, acabou a seção de polícia. Nas suas páginas, nem homem, nem cachorro são atropelados.
A crônica sobre o clássico era uma obra-prima. Tinha tudo, menos o resultado do jogo. Vejam bem: — menos o resultado. Não se fazia a mais vaga, tênue, remota, longínqua menção à vitória, derrota ou empate. Simplesmente, ninguém empatara, ganhara ou perdera. O meu despeito, a minha frustração, a minha impotência assumiram proporções homicidas. Reli mais uma vez e nada. Deflagrou-se em mim todo um processo de angústia. E, até hoje, o Jornal do Brasil guarda o escore para si, em suas profundezas. Jamais o dirá, nem à própria mãe. Mas há pior, e, repito, há pior. Um clássico tem um interesse frívolo, transitório, secundário. Mas o que aconteceu anteontem envolve, compromete valores eternos.
Como vocês sabem, o papa falou. Mesmo um ateu nato e hereditário, mesmo um anti-Cristo profissional há de reconhecer o óbvio, ou seja: — a importância de Sua Santidade. De mais a mais, era um pronunciamento dramático, ligado ao destino da Igreja. A Fé treme, a Fé entra em pânico. E que faz o Jornal do Brasil? Sua manchete limpa o próprio pigarro, alça a fronte e anuncia, patética: — sublegenda chega ao senado e provoca a divisão da arena.
Eis que, para horror nosso, a divisão da arena torna-se mais transcendente do que a divisão da Igreja. No momento em que d. Hélder propõe a missa cômica, isto é, a missa ao som de cuícas, tamborins, reco-reco e pandeiro, vem o papa e diz que Deus não está morto. E qual é a atitude do Jornal do Brasil? Do mesmo modo que esconde o resultado do jogo, enterra a palavra do Vigário de Cristo. Não há o papa na sua primeira página, mas há d. Hélder.
Pasmem. O Santo padre, que sempre foi notícia, foi manchete, foi primeira página, deixou de sê-lo. E d. Hélder lá está, flamejante. Sim, instalou-se na primeira página do velho órgão e em todas. Mas as outras abrem espaço para o papa e d. Hélder. O Jornal do Brasil, não. Parece que, em nossos dias, d. Hélder, só d. Hélder vende jornal.
Parece, não. Vende. Aliás, o arcebispo chega a ser um caso inédito na história do homem. Como se sabe, todos os assassinatos exigem duas figuras obrigatórias: — de um lado, a vítima; de outro lado, o criminoso. Segundo se presume, não há crime sem uma vítima, não há um assassinato sem assassino. Mas d. Hélder é uma experiência inédita para todos nós. Para uma platéia romana, ele descreveu o próprio assassinato. Portanto, aí está a vítima. Falta, porém, a figura indispensável, insubstituível, do matador.
E, assim, d. Hélder vai passar o resto da vida. A vítima já existe, e salubérrima. Nós podemos apalpá-la, farejá-la; podemos pedir-lhe, até, dinheiro emprestado. Mas eis que vem Gilberto Freyre e, com exata e risonha objetividade, nega o tal assassinato mesmo como hipótese. O sociólogo chega a insinuar, inclusive, uma outra possibilidade mais verossímil e humilhante. Como d. Hélder anda muito a pé e como o tráfego brasileiro é uma bagunça, pode o arcebispo ser atropelado. Atropelado.
Numa das minhas peças, Viúva, porém honesta, um crítico teatral é atropelado por uma carrocinha de Chicabon. Imaginem: Kennedy leva um tiro no queixo, Luther King outro no peito, Guevara uma rajada de metralhadora. E d. Hélder atropelado pela carrocinha amarela.
Volto ao Jornal do Brasil. Sou um obstinado. O Santo padre não merecera a sua primeira página. Mas eu imaginei que, na pior das hipóteses, o velho órgão concedesse ao papa uma meia dúzia de linhas numa página de dentro. E fui procurar. Ah, o Jornal do Brasil tem a extensão territorial deste país. Li tudo. Primeiro caderno, segundo. E fiz mais — li os anúncios classificados. Quem sabe se, por um desses equívocos fatais de paginação, a notícia do papa não estaria no meio das lavadeiras, cozinheiras, copeiras? Ainda concedi ao dr. Brito este crédito de confiança. Se o grande jornalista abrisse, nos classificados, um mínimo de espaço para o Vigário de Cristo, eu louvaria a concessão de sua fé à Igreja. Nem isso. Nem uma vírgula.
[29/4/1968]
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