domingo, 18 de janeiro de 2009

CAMBALHOTAS DO OTTO

Como bebem as esquerdas! Era uma sexta-feira e eu fui ao Antonio’s. Hoje, o verdadeiro sábado é a sexta-feira. E, ainda outro dia, dizia-me um pau-d’água grã-fino: — “Não há mais sá­bados, nem há mais domingos”. Depois de mutilar a semana, concluiu, com o olho parado do bêbedo: — “Sexta-feira é o dia em que a virtude prevarica”.
“A virtude prevarica” já era o efeito literário, a frase ela­borada ainda na lucidez. Seja como for, a esquerda escolhe a sexta-feira para modular seus palavrões e babar seus pileques. Não sei se em toda parte e em todos os idiomas acontece o mes­mo. No Brasil ou, mais precisamente, no Leblon, as esquerdas são pornográficas com a maior efusão e abundância.
Mas por que escolhi o Antonio’s e não, por exemplo, o Ni­no ou o Bateau, ou outro qualquer? Porque só o Antonio’s tem a função e o destino do boteco ideológico. Repito: — sem o Antonio’s, o esquerdista não estará completa e definitivamente equipado. É lá que ele vai ensaiar o seu gesto, exercitar sua ên­fase, empostar sua voz e esculpir suas caras.
Justiça se lhes faça: — são as esquerdas mais plásticas do mundo. Fazem caras, e gesticulam, e saltam, e sapateiam, e atropelam, e cavalgam as cadeiras, e trepam nas mesas. Eis o que eu queria dizer: — vale a pena atravessar três desertos para vê-las. Além disso, tinha eu um outro motivo, de natureza senti­mental, para ir ao Antonio’s. Era a esperança de lá encontrar o meu amigo Otto Lara Resende. O Otto estava no Rio, ou por outra: — esteve, porque já voltou para Lisboa.
E o meu amigo, de um lado, e as esquerdas, de outro, fize­ram da última sexta-feira uma noite inesquecível. Aqui, abro um parêntese para falar do Otto. Ele apareceu tarde da noite e logo senti que vivia um grande momento. Sem se atrelar às esquer­das, está à vontade no Antonio’s como um peixinho no seu aquá­rio natal. Mesmo porque os donos, os empregados e os fregueses o tratam na palma da mão. No Brasil, ninguém é mais doutor. O único doutor que ainda se conhece, na vida real, é o dr. Britto, do Jornal do Brasil. Pois bem: o Otto é doutor para todos os garçons do Antonio’s.
E há pior: — lá, ele jamais consegue pagar uma única e mí­sera despesa. A casa não aceita um tostão do meu amigo. Mas Otto chegou e alguém, jamais identificado, enfiou-lhe na mão uma garrafa de champanha. Não pensou duas vezes. Fez saltar a rolha e bebeu pelo gargalo. Eis a cena que arrancou aplausos até dos mais apáticos: — essa do Otto beber champanha pelo gargalo.
Nem se pense que parou aí. Contou anedotas. Fez piruetas como o acrobata que testa a própria elasticidade antes da cambalhota suprema. Imaginem que, certa vez, confidenciara a um amigo: — “Eu sou a Idade Média”. A partir de então, os ínti­mos passaram a chamá-lo assim. Sábado, o Hélio Pellegrino ba­tia o telefone para mim e perguntava: — “Viste a Idade Média?”. E eu mesmo, falando com Waldomiro Autran Dourado, dizia-lhes: — “Vou-me encontrar com a Idade Média”. E, no entan­to, o Otto de sexta-feira, no Antonio’s, era muito mais a belle époque do que a Idade Média. Ao tomar champanha pelo gar­galo, era a belle époque que irrompia, de repente, ali no Leblon. Uma euforia datada do princípio do século e, repito, anterior à primeira batalha do Marne. Só faltou beber champanha no sa­pato de uma cocote.
E, por toda uma noite, o Otto foi a ex-Idade Média. Neste momento fecho o parêntese sobre o amigo e volto às esquer­das. Até aqui tenho pluralizado; e, daqui por diante, vou dar-lhes o nome singular, e mais autêntico, de “a festiva”. Dizia eu, no início do capítulo, que “a festiva” bebe. Esqueci-me, porém, de acrescentar a pergunta: e por que bebe? Sim, por que be­bem as esquerdas?
Domingo, fui passear com o Hélio Pellegrino e acabamos no parque Laje. A luz dourava a aragem muito leve. E, súbito, não sei se eu, ou Hélio, disse ao outro: — “O parque Laje é o anti-Antonio’s!”. Em seguida levamos tal descoberta às suas úl­timas conseqüências. Aquele domingo, de um azul jamais concebido, também era o anti-Antonio’s. E a cidade, e as esquinas, a gente, e o próprio Leblon, tudo era o anti-Antonio’s.
Não exagero. Dizia-me o Pellegrino: — “O Rio é a cidade mais alegre do mundo”. Ele falava de uma alegria absurda e to­tal. Segundo o Otto, até os nossos esgotos, os nossos ralos, são um festival de ratazanas. E o Antonio’s é a antifesta. Suas me­sas, suas toalhas, seus bifes, estão embebidos de tristeza. Cabe então a pergunta: — por quê?
Tentarei explicar. Não é uma tristeza própria, mas adquiri­da. Repito: adquirida das nossas esquerdas. Estas vão para lá exa­lar suas cavas depressões. Claro que há três ou quatro melancolias auxiliares de grã-finos errantes na madrugada. Todavia, a tristeza fundamental se evola da “festiva”.
E, por isso, porque são tristes, as esquerdas bebem. Pouco a pouco, o álcool vai desatando não sei que euforias misterio­sas e frenéticas. Em seu estado normal, e enquanto sóbria, a “fes­tiva” não é festiva. Tem que, primeiro, encharcar-se. Depois, então, cada um dos seus membros torna-se um ser maravilho­samente plástico, elástico, luminoso. É capaz de virar camba­lhotas inexcedíveis; e de equilibrar laranjas no focinho; e de ventar fogo por todas as narinas.
Alguém poderia perguntar: — e por que “a festiva” é tris­te? Vejamos. O homem comum fica triste quando se lembra que morre. E a “festiva” bebe porque há de morrer um dia? Não. Nenhum perigo a ameaça. Há o Vietnã. E as esquerdas quando falam da guerra longínqua têm rompantes ferozes. Mas o Viet­nã está lá e nós aqui. Há uma sábia distância entre os heróis do Leblon e o perigo.
E, assim, sem arredar pé do Antonio’s, a “festiva” chegará aos setenta, oitenta e, eu diria mesmo, noventa anos. Saí do An­tonio’s, no fim da madrugada. Lá ficaram as esquerdas, baban­do o seu pileque e arrotando os últimos palavrões.

[30/1/1968]

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