segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O PALAVRÃO HUMILHADO

Quando vou ao Galeão, só uma figura me impressiona. Lá, chegam e partem reis, presidentes, rajás, grã-finos, ministros, Jorginho Guinle, velhas internacionais. Só não vi, no Galeão, um mandarim. E é, convenhamos, todo um elenco fascinante. Mas falei na figura que mais me impressiona e aqui está seu no­me: — a aeromoça.
A jovem que resolve ser aeromoça está fazendo uma opção profissional desesperadora. Bem sei que a aviação progrediu muito etc. etc. Todavia, no caso da aeromoça, a opção profis­sional não será bem profissional. É como se ela estivesse prefe­rindo morrer. Para a aeromoça, cada dia pode ser a véspera do fim. Vejo-a passar por mim no Galeão. Seu olhar tem a doçura de um adeus. Sim, ele pode estar-se despedindo da paisagem.
Não sei se as aeromoças são bonitas. Diz o Otto Lara Re­sende: — “O Brasil é o único país onde as feias são bonitas”. Seja como for, elas têm um patético irresistível. São íntimas da morte. E sua graça parece mais leve, mais efêmera, mais perecí­vel que a das outras. Ah, quando vejo uma delas, sonho: — “Essa vai morrer cedo”.
Pode parecer uma obsessão pueril (e talvez o seja). Mas eis o que eu queria dizer: — as nossas esquerdas atuais sugerem a impressão inversa, isto é, de que vão morrer tarde, muito tar­de. Pelo amor de Deus, não vejam ironia, mesmo porque te­nho vários amigos na “festiva”. A verdade é que a segurança das nossas esquerdas está acima de qualquer ameaça ou dúvida.
O brasileiro simples formou do esquerdista patrício uma imagem inteiramente irreal. O pai de família imagina que um socialista tem uma barricada em cada bolso. Eu próprio, no 31 de março e no 1º de abril de 64, andei tecendo fantasias hediondas. Imaginava que o sangue jorraria e que as ratazanas iam sair dos ralos para bebê-lo. E não se derramou nem groselha.
Só muito depois descobria eu a verdade, que é a seguinte: — as nossas esquerdas não têm nenhuma vocação do risco. E possuem a vocação inversa da segurança. Ainda ontem, falava eu da sábia distância que vai do Antonio’s ao Vietnã. Aí está di­to tudo. E, assim, sem arredar pé do Antonio’s, e bebendo cer­veja em lata, as esquerdas não morrerão jamais.
O leitor há de perguntar, com irritação e escândalo: — “Mas elas não fazem nada?”. Responderei: — “Fazem”. Insistirá o lei­tor: — “E fazem o quê?”. Direi: — “Autopromoção”. É a pura verdade. A esquerda não sai por aí, derrubando bastilhas e de­capitando marias antonietas, porque está ocupada em se auto­promover.
Abram os jornais, ouçam o rádio, vejam a televisão. O “gran­de poeta”, o “grande crítico”, o “grande ensaísta”, o “grande romancista”, o “grande dramaturgo” — são membros da “fes­tiva”. Gustavo Corção acaba de publicar um grande livro. É to­da uma meditação maravilhosa. Dois volumes de uma lucidez apavorante. E não sai, em lugar nenhum, uma linha, uma vírgu­la, nada. A imprensa, as câmaras e os microfones estão cegos, surdos e mudos para a obra de Corção.
É inédita essa capacidade promocional das esquerdas. Elas ocuparam as redações. Não brigam, nem chupam o sangue da burguesia. Em compensação, a glória, ou execração, depende do seu exclusivo arbítrio. Ou faz uma reputação literária ou, com um piparote, a derruba. É um terrorismo cultural que se exer­ce, na melhor das hipóteses, com o silêncio. Corção é reacio­nário? Silêncio em cima dele.
Ainda ontem, um revisor veio-me pedir emprego. Tem mu­lher, filhos, e contou o seu drama. Trabalhava num grande jor­nal, mas cometeu a imprudência suicida de elogiar os Estados Unidos. Não sei por que, ou por outra: — lembro-me agora. Dis­se ele que uma peça, ora em exibição em Nova York, insinuava que o presidente Johnson e senhora eram assassinos, ou co-assassinos, de Kennedy. E, por isso, concluía o revisor que ha­via liberdade nos Estados Unidos.
Foi despedido, sumariamente. Vejam como as esquerdas têm poderes para admitir, ou demitir, nos jornais, rádio e tv. Dominando em todas as artes, não podiam deixar de fora o tea­tro. (Na pintura, aquele que não for da “festiva” terá menos imprensa de que um cachorro atropelado.) E, no teatro, as esquer­das descobriram o palavrão.
Pasmem para as ironias da vida literária e dramática. Du­rante dezoito anos, ou vinte, fui o único obsceno do teatro bra­sileiro. Minhas peças Álbum de família, Anjo negro, Senhora dos afogados foram interditadas. E não tive a solidariedade de ninguém. Lembro-me de que Álvaro Lins, a maior autoridade crítica da época, declarou, por outras palavras, o seguinte: — eu saíra da literatura e era agora um “caso de polícia”. No mais, nem estudantes, nem escritores, quando passavam por mim, concediam a graça de um “oba”. O dr. Alceu, em declarações a O Globo, aplaudia a minha interdição. Sempre que se referia a mim dizia, enojado: — “As peças obscenas de Nelson Rodri­gues”.
O curioso é que nem Álbum de família, nem Anjo negro, nem Senhora dos afogados tinham um único e escasso palavrão. Eu viria a usá-lo muito mais tarde. E, no entanto, montou-se, a meu respeito, todo um folclore medonho. Segundo corria à boca pequena, eu, todos os dias, depois do almoço, fazia a sesta num caixão de defunto. E as esquerdas tinham, dos meus tex­tos, uma repugnância total.
Súbito, elas descobrem o palavrão, ou especificando: — o palavrão no teatro. Já o usavam no romance. Mas a pornografia do livro se dirige a um único e íntimo leitor e morre numa rela­ção individualíssima e secreta. Ao passo que no teatro o pala­vrão é declamado para duzentos, quatrocentos, oitocentos.
Se bem entendi, as esquerdas querem chocar a platéia. É preciso que esta não fique, nas cadeiras, comendo pipocas. O bom teatro tem de ser agressão. Muito bem, ótimo. Nada tenho a objetar. E fui ver, sábado, o Rei da vela, dirigido por meu ca­ro e simpaticíssimo José Celso. Trata-se do grande diretor do momento. Do mesmo modo que o Plínio Marcos está sendo re­presentado em todos os palcos, o José Celso parece dirigir to­das as peças. A do Chico, por exemplo, é dele.
Preparei-me para ser testemunha e vítima da agressão. Durante todo o espetáculo, não fiz outra coisa senão esperar. Di­ziam que o texto e o espetáculo eram um soco na cara. E eu estava lá para ver e receber o soco na cara. No fim de duas ho­ras e meia, saímos, eu e os outros, intactos. Éramos quatrocentos sujeitos e não havia, entre nós, um único e vago agredido. O novo teatro conseguiu desmoralizar o soco na cara. O palavrão, antes, tinha suspense, tinha mistério, tinha espanto. E a audiên­cia do Rei da vela saía arrotando a sua satisfação burguesa.
Por aí se vê como falhou o sonho de uma platéia esbugalhada, horrorizada. Imaginem que, no segundo ato, um dos per­sonagens solta um palavrão inédito e que teria horrorizado as cinzas do Bocage, não o do soneto, mas o da anedota. Era o momento de a platéia arrancar os cabelos ou subir pelas pare­des como uma lagartixa profissional. E, no entanto, vejam vo­cês: — os presentes, de pé, aplaudiam, aos vivas. Essa apoteose súbita e feroz frustrou, ofendeu e humilhou o pobre palavrão.

[31/1/1968]

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