
Simplesmente, ele, Barrault, está ali para comunicar a própria morte. Eis, na íntegra, as suas palavras: — “Anuncio-vos que não sou mais diretor deste teatro. Sou um ator como os outros”. Está de gesto erguido e faz pausa, faz suspense. E, então, berra com invejabilíssima saúde vocal: — “Barrault morreu!”. Explode uma ovação formidável. Nunca uma morte foi tão aplaudida. Barrault vive o seu grande momento de ator. Nunca morrera tão bem.
Via de regra, cada um de nós morre uma única e escassa vez. Só o ator é reincidente. O ator ou a atriz pode morrer todas as noites e duas vezes aos sábados e domingos. Sarah Bernhardt não fez outra coisa senão morrer no 5º ato de A dama das camélias. E o nosso Barrault tem feito da morte profissional o seu ganha-pão. No palco, fremente, era um defunto salubérrimo.
Só não entendo como se pode ser ator “como os outros”. Ninguém é ator “como os outros”. E repito: — só um soldadinho de chumbo é igual a outro soldadinho de chumbo. De mais a mais, qualquer ator reage como um Narciso. Ninguém mais Barrault do que Barrault. Estava, ali, arrancando mais um efeito plástico. Por outro lado, a apoteose parece descabida. Por que aplaudir um sujeito que se demite de uma simples função burocrática? Deixara de ser funcionário, e daí? Onde está o heroísmo, sim, onde está o martírio?
A propósito da França, resmungava um amigo meu: — “Tudo isso é bobagem!”. E perguntava: — “Você não acha bobagem?”. Neguei com a maior ênfase: — “Absolutamente!”. E, de fato, tudo que a França faz tem uma platéia mundial. Qualquer suspiro ou rugido francês é histórico. Aqui, as gerações não perdem uma representação de França. É a mais teatral das nações. Mesmo que o quisesse, a França não seria boba, jamais.
Mas vejamos o que lá acontece. Deixemos de lado o nosso Barrault. O que fez, no Odeon, não teve nenhuma densidade. Foi apenas uma pirueta profissional de ator. O patético é o comportamento da própria França. De repente, o país é varado de correrias. Todo mundo começa a correr. E eu me pergunto que mão atirou a primeira pedra. E de onde partiu o primeiro grito? Ninguém sabe. Ao mesmo tempo, explodiu uma solidariedade nunca vista. Todo mundo está solidário com todo mundo. Os franceses parecem ferozmente unidos. Ninguém é contra os estudantes. Mas essa unanimidade tem um defeito: — falta-lhe uma causa.
A primeira Revolução Francesa era profunda e nítida. Tinha razões precisas. O próprio Terror era lúcido. Ao passo que a presente agitação não tem profundidade, nem nitidez. Os estudantes começaram tudo. Em seguida, os operários ocuparam as fábricas. E mais: — seqüestram os gerentes e não os devolvem. A única perplexidade que se conhece, na França atual, é o Partido Comunista. Ora dá a sua solidariedade, ora a retira. Lá os professores estão com os estudantes. E também os cineastas. Cannes entra em greve. Mas não há um líder. Os estudantes carregam cartazes de Mao Tsé-tung, Guevara, Lenin. Mas Lenin está no seu túmulo de vidro. Nunca um túmulo foi líder de coisa nenhuma. Enquanto isso, os estudantes, no seu formidável dinamismo destrutivo, viram carros e os incendeiam, e arrancam das avenidas a capa de asfalto. Mas, eis o que o mundo pergunta: — além dos carros virados, o que querem os estudantes? Atiram pedras. E por que apedrejam?
Aqui começa a singularidade da atual Revolução Francesa: — seu Terror não tem reivindicações. Ou por outra: — tem um nome. Chama-se “revolução cultural”. É pouco. Queremos saber o que se esconde por trás do nome. Dois ou três sujeitos, estreitamente positivos, respondem: — “Não se esconde nada”. Mas comparem as duas imagens: — a presente França e a Rússia de 17. Na Rússia, foi a guerra perdida que instalou o caos. Todas as estruturas desabaram. Mas a França não luta com nenhum inimigo externo. Perdeu a sua última guerra, mas em seguida a ganhou (graças aos Estados Unidos).
Por outro lado, em 17, houve um Lenin para tirar partido do caos, para organizá-lo, discipliná-lo. Deu ao caos uma linguagem, uma inteligência, uma ordem. Mas era Lenin e tinha, a seu lado, toda uma seletíssima elite de revolucionários. Ao passo que, na França, estamos vendo o caos gratuito. Sim, o caos com a obtusidade do caos. E nada mais.
O patético da agitação estudantil não é a festa dos carros virados, nem os gerentes seqüestrados, que ninguém devolve. O pior, repito, é um cartaz, um simples cartaz, que os estudantes empunharam, desde o primeiro dia. Lá está escrito: — de gaulle assassino. Vejam vocês: — assassino. Eis o que o mundo pergunta numa perplexidade total: — “Será mesmo assassino?”.
Vejamos o seu retrospecto, como se De Gaulle fosse um cavalo de corrida. Na última guerra, a França tinha o maior Exército da Europa e entregou-se. Hoje, Barrault morre no palco e, em seguida, vai comer um bom bife. Por que, na guerra, não se atirou debaixo de um tanque nazista? Na capitulação, a França era uma paisagem sem franceses. Nenhum francês, nenhum. Ou por outra: — restava, na solidão de França, um único francês. Era o assassino De Gaulle. Não me falem em Resistência. A Resistência só tem um nome: — De Gaulle.
E, mais tarde, quando o país precisou de um líder, de um herói, só encontrou um: — o assassino, que já a salvara uma vez. Assim foi todo o povo, inclusive os comunistas, que pôs De Gaulle no poder. Cabe então a pergunta: — e por que, de repente, esse mesmo povo trai o seu amado líder? O cartaz citado parece-me o dado essencial. Aí está o ódio ao herói. Jamais se viu um sentimento de culpa tão nítido e tão cruel. Sentimento de culpa apenas latente e que, por fim, explode. Os que capitularam precisam destruir o que não se rendeu.
[21/5/1968]
Um comentário:
Oi Jana! Cheguei até seu blog por meio de meus seguidores(blogger!!!!)linkei vc lá em meu palco...
beijo! feliz 2009!
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