segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

O BERRO DE: — “FOGO!”

Não sei se vocês se lembram de Charles Dickens. Cada épo­ca sepulta uns tantos autores. E a nossa enterrou Dickens. Se perguntarmos à “Geração Paissandu” por David Copperfield, ela dirá que jamais em tal ouviu falar. Pode parecer estranho, mas não é estranho. Uma mesma geração não comportaria Godard e Dickens.
Entre parênteses, acho Godard um idiota (desculpem). O que envelheceu em Dickens não foi o próprio Dickens. Não. Foi a sua ternura que desapareceu da nossa época. Olhem em torno. Não há mais o terno, o compassivo. Vivemos uma época feroz. Contei, outro dia, o que aconteceu com o “Marinheiro Sueco”. Foi almoçar comigo, ali, no Nino’s. Mas, ao chegar o amigo, verifiquei que havia, entre o “Marinheiro Sueco” do dia e o “Marinheiro Sueco” da véspera, uma dessemelhança bru­tal. Estava mais eriçado do que as cerdas bravas do javali.
Perguntei-lhe: — “Que bicho te mordeu?”. Sentou-se, ven­tando fogo por todas as narinas. Gemeu, abundantemente: — “Não sei o que há comigo, não sei”. Simplesmente, estava in­dignado. Imaginei que tal indignação teria uma vítima ou um culpado. Nem uma coisa nem outra. Perguntei: — “Você bri­gou?”. Não, não brigara. Simplesmente, estava indignado. E o pior é que era uma fúria contra ninguém. Tinha vontade de que­brar a cara, não sabia de quem, nem por quê.
Vocês percebem que o “Marinheiro Sueco” não será um caso único. Tal agressividade é um estado de alma universal. Presentemente, na França, todo mundo tem vontade de que­brar a cara dos outros. Cabe então a pergunta: — que faria Dick­ens num mundo de ressentimento? Que me lembre, nunca, em seus escritos, um personagem quebra a cara de outro persona­gem.
Mas não era de Dickens que eu queria falar. Ou por outra: — era, sim, de Dickens. Por mais estranho que pareça, ainda restam, em nossa época, três ou quatro personagens do velho autor. Domingo, depois da Resenha da tv Globo, alguém veio me dizer: “Tem um cara te procurando”. Vou ver e tenho a sur­presa: — era o Vianinha. Ao usar o diminutivo, preciso desfiar o nome completo, como num cartão de visitas: — Oduvaldo Viana Filho.
Ele é teatrólogo e eu também. Mas sou autor de velhas ge­rações, ao passo que ninguém mais atual, mais moderno, mais “pra frente” do que o Vianinha. Como se não bastasse o abis­mo das idades, há também o abismo ideológico, ainda mais ca­vo e ainda mais fundo. Portanto, o colega devia olhar para mim, de esguelha, com a maior suspeição e desprazer. Mas, quando nos cruzamos, há uma alegria recíproca e inexplicável. Eu caio nos braços do Vianinha e o Vianinha nos meus braços.
Mas disse “inexplicável” e já retifico: — há explicação, sim, para tamanha efusão. É uma longa história, mas que vale a pena ser contada. Qualquer brasileiro é suscetível ao pequeno subor­no. Tenho um amigo que conquistou uma senhora inatacável — com uma entrada do Cineac. Vejam bem: — uma carona ba­rata pôs por terra não sei quantos preconceitos educacionais, de família, de religião, de classe. Se fosse um colar de pérolas, teria metido o presente na cara do tarado. Mas por um nada o brasileiro se compromete ao infinito. Foi exatamente o que acon­teceu com o nosso Vianinha.
Por dinheiro nenhum ele se venderia. Mas eu o dobrei — vejam vocês — com um pequeno suborno. Vamos aos fatos. Tudo aconteceu no Estádio Mário Filho. Era o jogo Vasco x Botafogo. A olho nu, qualquer um imaginaria uma renda de 400 milhões ou mais. Como digo nas minhas crônicas esportivas, havia gente até no lustre. Eu vi, e juro que vi, um brasileiro su­bindo pelas paredes como uma lagartixa profissional. Depois de tomar meia garrafa de Lindoya, voltava eu para a tribuna de imprensa (gosto de Lindoya porque é pura e santa água da bi­ca).
Vou passando e ouço aquele brado patético: — “Nelson, Nelson!”. Não sei se vocês já ouviram o último apelo de um afo­gado. Foi exatamente a sensação que me deu. Era alguém que, antes de se afundar, clamava por mim. Viro-me e dou de cara com o Vianinha. Imediatamente, compreendi a sua angústia de asfixiado. O colega era, exatamente, o náufrago da multidão. Tentara enfiar-se na massa ululante. E a massa o expeliu. De mais a mais, era ele o carro-chefe de três garotinhos.
Do outro lado das grades, pediu: — “Como é? Não me ar­ranja uma carona?”. Eis o que eu queria dizer: — fiz da carona do Vianinha uma causa sagrada. Lutei ferozmente. E me senti­ria desonrado se não o pusesse lá dentro. Movi céus e terras e com uma pertinácia tão fanática que varri todas as resistências. Não pensem que o coloquei num galinheiro. Deixei-o, com o batalhão de crianças, no melhor lugar do estádio, ou seja, nas cadeiras perpétuas. Insisto na distinção: — não nas cativas, mas nas perpétuas.
Foi esse, em rápidas pinceladas, o pequeno suborno. Se eu chegasse com um cartório, e o oferecesse ao Vianinha, ele ha­via de reagir com rútilas patadas. Mas era uma simples, franciscana carona. Pela minha mão, ele e os garotinhos puderam as­sistir às botinadas de Vasco e Botafogo. E notem como eu e ele agimos como brasileiros: — eu, na ânsia de servir; ele, na ânsia de aceitar. Resultado: — uma carona tapou o abismo ideológi­co que outrora nos separou.
O Vianinha é a única, a solitária gratidão que jamais inspi­rei. A partir de então, sempre que nos encontramos, ele ri para mim e eu para ele. Alguém, que nos veja, pensará: — “É uma geração rindo da outra”. Não. Rimos porque a amizade deve ser uma relação engraçadíssima.
Nem se diga que a gratidão do Vianinha é um sentimento vago, estéril, contemplativo. Pelo contrário. É uma gratidão ati­va, dinâmica, de uma eficiência humilhante. Domingo, às duas horas da manhã, a presença do Vianinha explodiu de repente, na tv Globo. Fazia um frio de rachar catedrais. E o Vianinha es­tava ali para me prestar um obséquio. Lá fora, era a própria Si­béria. E, apesar da madrugada gelada e eu quase dizia cadavérica, o Vianinha não faltou. E aqui entra, de novo, o nosso Dick­ens. De repente comecei a achar que o Vianinha era, fisicamen­te, um personagem do velho autor. Sem que Dickens o decla­re, sempre achei que seus jovens têm espinhas na cara. É o caso do Vianinha. Tem espinhas como os rapazes de antigas gera­ções, Hoje, não. Hoje, todo mundo tem uma pele ótima.
Ah, é problemática a sorte de um velho “reaça”, como me chama o Hélio Pellegrino. E sei eu que as nossas gerações são ferocíssimas. Se, um dia, o meu fuzilamento depender do Via­ninha, sei que ele não dará jamais o berro de: — “Fogo!”.

[22/5/1968]

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