terça-feira, 27 de janeiro de 2009

A FOTOGRAFIA DO ÓDIO

É uma fotografia de Manchete, e com a agravante: — colo­rida. Lá está o sangue coagulado. O olho enorme, que ninguém fechou; e os intestinos escorrendo, no seu puro escarlate; e as mãos entrevadas pela morte. Morreu, não há dúvida, morreu.
E odeia. Morreu com esgar de ódio, com a boca aberta em grito. Nem sei se é de um lado ou de outro; se é guerrilheiro ou não. Morreu, mas o ódio sobrevive. É um cadáver e conti­nua odiando. Olho a fotografia e vejo tudo. Não é americano, não pode ser americano. Tem de ser do outro lado, e explico.
O mistério de Manchete está na impressão, em cores. Seus anúncios são graficamente exemplares. Lembro-me de uma sa­lada de página inteira. A alface, as fatias de tomate, os frios, a maionese, tudo, tudo é perfeito, irretocável. Manchete impri­miu o cadáver vietnamita com o mesmo virtuosismo da salada.
Mas eu digo que devia ser guerrilheiro pela miséria dentá­ria. Eram cacos, não dentes. Dirá alguém que de um lado e do outro há maus dentes. Seja como for, instala-se em mim a cer­teza, talvez pueril, mas obsessiva: — são dentes de terrorista.
Mas não falemos mais na meia dúzia de cacos pendurados nas feias gengivas. O que realmente apavora é o ódio. Imagi­nem vocês que acabo de receber a carta de uma leitora. É uma brasileira que me escreve e não assina. A meu ver, não há carta anônima intranscendente. Se não tem assinatura, passa a valer como um documento trágico. Desde os velhos folhetins, a car­ta anônima é de uma veracidade apavorante.
A leitora fala da moça chamada Gisela, que morreu de gangrena. E morreu porque saiu, de hospital em hospital, e não encontrou um médico, uma enfermeira, um estudante, um por­teiro. Teria sido salva, sem maiores problemas, se alguém a atendesse em tempo. Mas vinha um médico, olhava o braço partido e dizia: — “Não é urgente”. E a mandava embora.
Qualquer barbeiro diria: — “É de urgência, sim”. Mas não houve, repito, um médico que reconhecesse o óbvio. Não houve uma enfermeira, nem um funcionário. Há uma escola que se cha­ma, pomposamente, Ana Nery. Pois as enfermeiras, práticas ou formadas, as serventes, ninguém teve pena, simplesmente pe­na. Temos pena de uma cachorra manca. E ninguém teve pena da gangrena em flor.
No fim, não havia a menor dúvida. Caso tão nítido, tão lím­pido, tão inequívoco. Qualquer um, a olho nu, veria a cor da gangrena e da orquídea. Mas os médicos, de vários hospitais, de todos os hospitais, continuavam a negar, de pés juntos, a gra­vidade e a urgência. Até que a menina morreu, apenas morreu, e nada mais.
E, então, a leitora me escreve. O que me impressionou na carta foi o ódio. Um ódio só comparável ao do cadáver que con­tinuava odiando. Sempre digo que o verdadeiro amor continua para além da vida e para além da morte. Mas vejo o cadáver da guerra. E sinto que também o verdadeiro ódio dura mais que a vida e dura mais que a morte. Minha leitora viu a notícia no jornal. E conheceu, não a irritação efêmera, não a raiva que pas­sa, não o protesto que se esquece. Não, não. Ela toma uma po­sição radical. É uma paixão que não conhecia. E, no seu ódio, pergunta se ninguém vai fazer nada. Nada, nada?
Sim, ninguém fará nada, nada. Exatamente nada. Mas a lei­tora tem um tesouro de ódio, íntimo tesouro, que não sabe co­mo aplicar ou contra quem aplicar. Odeia, mas a quem? E o pior é que morreu uma só e repito: — uma só Gisela. Se fossem duzentas, trezentas Giselas, talvez tivéssemos, por aí, um surto de piedade convencional e enfática. Mas uma só gangrena é de tal insignificação numérica que comove de uma maneira muito epi­dérmica e ineficaz.
E me espanta o nosso vão esforço. Pagamos toda uma imen­sa organização, toda uma estrutura gigantesca. E sabem para quê? Para que um médico olhe uma gangrena inequívoca, óbvia, evidentíssima, e diga: — “Não é de urgência”. Ora, eu sou um obsessivo. E uma das minhas idéias fixas é, justamente, a seguin­te: — o médico ou é um santo ou um gângster. Meu Deus, não vejam nas minhas palavras nem exagero, nem caricatura.
Um médico tem responsabilidades que ninguém tem. Estou dizendo o óbvio, mas paciência. O médico só devia ser médico depois de sofrer uma série de provas, de testes vitais crucialíssimos. O sujeito teria de passar três anos nos cafundós da África, tratando de negros leprosos. Como é que se pode passar um ates­tado de óbito sem tremer? Diz um amigo meu que o sujeito que assina um atestado de óbito substituiu Deus e O antecipa.
Mas não se aflijam. Os médicos que não identificaram a gangrena, que não enxergaram o óbvio e despacharam alegremen­te a moça continuarão a fazer a barba, a escovar os dentes, a namorar, a assobiar etc. etc. Mas volto ao cadáver que mereceu de Manchete uma impressão de salada. Eu falei de dois ódios e passo a um terceiro. Desta vez é um chofer de praça.
Imaginem um chefe de família, de origem italiana. Mas a origem pouco importa. Era uma criatura doce, cálida, genero­sa. Um dia foi preso porque não tinha, na hora, a sua identida­de. Sua mulher, seus oito filhos, estão em casa, esperando para o jantar. Mas ele não vem porque foi atirado no fundo de um xadrez. Passou lá, entre marginais, 24 horas, e gritando. Digo eu que o verdadeiro grito parece falso. E o motorista gritava co­mo se estivesse imitando, apenas imitando a dor da carne ferida.
Eis o que aconteceu: — fora estuprado por seis ou sete marginais. Saiu do xadrez, foi para casa. Empurrou a mulher, en­trou no quarto e trancou-se. Lá, meteu uma bala na cabeça. Mor­reu de ódio, morreu odiando, como a fotografia de Manchete. E, como a leitora, não sabia a quem odiar. Os marginais eram, decerto, os menos culpados. Episódios assim são uma rotina que jamais variou. Isso pode acontecer com o filho, o pai, o irmão de qualquer um; pode acontecer com qualquer um. A vítima pode uivar três dias e três noites. Ninguém se mexe na delegacia.
A nova peça de Plínio Marcos, Barrela, que o Teatro Jovem ia levar, se passa num xadrez. Seis ou sete marginais estão em ce­na. E, de repente, entra mais um preso, um adolescente, preso porque brigara num bar do Leblon. Os outros o agarram, e qual­quer um pode imaginar o resto. Pergunto: — que faremos nós? Desta vez, foi tomada a providência justa: — interditou-se a pe­ça. Obscena é a denúncia e não a monstruosidade. A moral está salva, porque se emudeceu uma peça. E o ser humano continua­rá sendo violentado em cada xadrez, eternamente. Porque o nosso sentimento é impotente, como o ódio do chofer.

[20/3/1968]

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