quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O MENINO KENNEDY

Vocês devem estar lembrados. Era um dia como outro qualquer, ou por outra, não era um dia como outro qualquer. E repito: — era um dia dramatizado pela greve do rádio e da televi­são. Dirá alguém que os jornais circulavam.
Mas o tempo da imprensa é um e outro o das câmaras e microfones. Em jornal, o fato leva 24 horas para ser notícia. Ao passo que tanto o rádio como as tvs são fulminantes (mais uma vez, estou aqui proclamando o óbvio). Eis o que eu queria lem­brar: — Kennedy morreu e custamos a saber. Entre nós e a tra­gédia houve a greve. Um tiro arrancou o queixo presidencial. E, aqui, ninguém desconfiava de nada. Quando as extras saíram, Kennedy já estava no caixão, Johnson tomara posse, Jacqueline improvisara o luto de sua viuvez atônita.
(Aliás, foi furada a greve do rádio e da televisão. Se não me engano, a Roquette Pinto estava no ar. Mas o rádio educativo faz sua audição para surdos. Ninguém o ouve, ninguém, ou por outra: — só uma meia dúzia o ouve. E foi essa meia dúzia que saiu contando para os amigos, os familiares, os conhecidos; e assim, de boca em boca, a notícia tomou conta, paulatinamen­te, da cidade. Todavia o silêncio do rádio e da televisão parecia humilhar, parecia desfeitear a catástrofe.)
Estou falando de Kennedy e de sua morte porque meu fi­lho Joffre chegou de Nova York. Está aqui de passagem e volta­rá. E, nos Estados Unidos, ele vai de um assombro a outro as­sombro. Lá, vive ele num mundo quase absurdo. Um dia, abre a televisão e vê um filme sobre “as atrocidades norte-ameri­canas”. O mesmo filme passara, antes, normalmente, num gi­gantesco circuito de cinemas.
Só um país, no mundo, ousaria tamanha antipropaganda, tamanha antipromoção. E o Joffre, em conversas intermináveis, fala de tudo que há de pueril, trágico, jamais concebido, na vi­da americana. Súbito, meu filho chega a Bob Kennedy. Nós o conhecemos fisicamente; nós o vimos, aqui, na praia, de cal­ção, dourando-se ao sol como um camaleão (rimou com calção, e desculpem).
Mas o Bob que por aqui passou e viu muitos poentes de Leblon nada tem a ver com o Bob candidato. Naquele tempo, ele preservava, como um segredo, como um pudor, a sua in­tenção presidencial. Fazia de conta que o sonho do poder ain­da não se instalara no seu coração. Mas, ao falar de Bob, não resisto à tentação de contar um episódio brasileiro. Vamos lá.
Certa noite, o nosso Bob teve um encontro com vários pa­trícios nossos, inclusive o dr. Alceu. Eram intelectuais, estudan­tes, cada qual fazendo a sua pose e cada qual dando seu recado. Por coincidência, todos vendiam a mesma imagem do Brasil. Houve um momento em que o Tristão empostou-se, ergueu o gesto e disse, textualmente, o seguinte: — “Posso assegurar-lhe que não havia o menor perigo comunista no Brasil!”. Foi imen­samente divertido o tom inapelável de verdade eterna com que ‘ o mestre atirava na cara do ilustre visitante tamanha barbaridade.
Os presentes, menos Bob Kennedy, balançaram a cabeça, e com o maior descaro. Mas nada descreve a amarga perplexi­dade do americano. Eis as perguntas que ele, espantadíssimo, teve o decoro de não fazer: — “Como não há perigo comunis­ta? Isto aqui não é um país subdesenvolvido? Não há fome? Exis­te ou não existe o Nordeste? A tal mortalidade infantil é pura escroquerie?”. Com a conivência e o descaro dos brasileiros pre­sentes, o dr. Alceu estava sendo de uma monstruosa e consciente inveracidade. Digo “consciente” porque ele não ignora, decerto, a fome, o Nordeste, a mortalidade infantil etc. etc.
Volto aos Estados Unidos. Conta Joffre que Bob mudou, até fisicamente. Há pouquíssimo tempo era, na televisão, um modesto, um humilde, um cerimonioso. Não olhava, cara a ca­ra, os vários milhões de telespectadores. Baixava a cabeça. Tinha como que a vergonha física do poder. E, súbito, o candidato secreto, inconfesso, começou a borbulhar, irresistivelmente. Bob Kennedy se deflagra. Seu gesto, sua inflexão, sua ênfase, sua ira, tudo, tudo promove, impõe, desfralda o candidato.
E, com isso, ficamos sabendo que a modéstia, a humilda­de, a suavidade anteriores eram uma pose. Aliás, pode-se datar a sua candidatura: — no dia, ou, melhor dizendo, no momento em que John Kennedy morreu, ele começou a ser candidato, automaticamente candidato. Não importa o pudor que, por mui­to tempo, disfarçou, negou o automatismo dessa candidatura.
Eu diria que, no seu caminho presidencial, só resta uma dúvida. E, de fato, custa crer que existam, numa mesma famí­lia, dois Kennedys. Seria o mesmo que pretender dois Napoleões. E, quando dois nomes coincidem, passamos de um Napoleão, o Grande, para o Napoleão iii, o idiota. Há, todavia, uma hipótese para o nosso Bob: — de que o verdadeiro Kennedy não seja o morto, mas o sobrevivente.
Sempre me pareceu que John Kennedy era, como líder, um equívoco. Escrevi, aqui mesmo, que o verdadeiro líder é um canalha. E Kennedy era um pobre ser crispado de humanidade, igual a um de nós, perplexo, frágil, dilacerado, menino, como um de nós. Menino sim, infinitamente menino. Kennedy tinha uma mulher bonita; amava e era amado. Não há Jacqueline na História e na Lenda de Lenin, Stalin, Hitler. E a mulher bonita só tem sentido para o líder quando o trai. E mais: — o líder mor­re na hora certa, e não antes. John Kennedy morreu antes, e repito: — morreu antes da obra. Um Napoleão que morresse na tomada da Bastilha não seria Napoleão. Um Cristo morto aos três anos de idade, de coqueluche, já não seria Cristo. De mais a mais, o verdadeiro líder há de morrer com o rosto. Sim, a mor­te tem que preservar seu perfil para a moeda, a cédula, a meda­lha. O último rosto, o rosto do caixão, precisa estar intacto. E tiveram que fechar o caixão de Kennedy para esconder o quei­xo arrancado.

[25/3/1968]

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