Qualquer um de nós já disse não sei quantas vezes: — “Até aí morreu o Neves”. Por que só o Neves e não o Batista, o Sepúlveda, o Tavares ou o Pacote? Até hoje ninguém sabe por que o povo escolheu esse nome, exatamente esse e não outro qualquer. Ainda hoje, ao sair de casa, ouvi alguém dizer a alguém a propósito não sei de quem: — “Ora, ora, até aí morreu o Neves”. Aquilo ficou nos meus ouvidos. Eis a verdade: — “Neves” tornou-se, para mim, algo de impessoal, de encantado, de alucinatório.
Mas vejam a coincidência ou, para ser mais enfático, a fatalidade. Ontem mesmo vou dobrar a esquina da rua Irineu Marinho quando uma voz me chama: — “Nelson, Nelson!”. Viro-me e dou de cara com um gordo, desses que têm uma papada maior do que a de Dumas pai. Não sei se sou famoso. Mas admitindo que o seja, tenho um tipo de relação inefável: — o “desconhecido íntimo”. São sujeitos que eu nunca vi e que me tratam com uma intimidade jucunda e fulminante. Pois o gordo citado já abria para mim um riso total.
Antes de me estender a mão enxugou-a num vasto lenço, explicando: — “Suo muito nas mãos”. De minha parte tive bastante descaro e o tratei como a um amigo de infância. E ele me perguntava: — “Não se lembra mais de mim?”. Há um suspense e o desconhecido íntimo insiste: — “Vê bem”. Palavra de honra, eu não me lembrava. Ao longo de minha vida tenho tido vários amigos gordos. Mas não conseguia me lembrar nem daquela papada, nem daquelas bochechas. Na minha frente ele continuava a enxugar as mãos de um suor talvez imaginário.
E, súbito, exausto do suspense, o outro dá o berro: — “Eu sou o Neves!”. Sim, era um Neves radiante de o ser. O Neves, o Neves! E o simples nome deflagrou em mim todo um maravilhoso fluxo de memória. Na minha infância profunda o Neves fora meu vizinho. Muitas vezes pulara eu o muro para ir roubar carambolas no seu quintal. Disse-lhe: — “Se me lembro!”. E, já varado de nostalgia, suspirei: — “Bom tempo, bom tempo”. Durante uns vinte minutos, em cima da calçada, permutamos as nossas lembranças.
Quase no fim da conversa retrospectiva o Neves pergunta, à queima-roupa: — “Você não é universalista? Ou é?”. Não entendi nada. Limpo um pigarro: — “Universalista como?”. Veio a explicação: — “Você só fala no Brasil. E acusa as esquerdas de alienadas”. Pausa e diz: — “Mas você se esquece que as esquerdas são universalistas”.
Bem percebi a volúpia, a salivação intensa com que o bom Neves dizia aquela palavra deliciosa: — universalista. Ao descobrir que ele, além de outras virtudes, tem a de ler-me, me senti ainda mais terno e ainda mais lírico. Pousei a mão no seu ombro: — “Escuta, Neves. Você tem razão, mas eu também tenho razão”. E comecei a explicar “a minha”.
Eis o que disse eu, por outras palavras: — “Está certo que as esquerdas sejam universalistas”. O outro ajuntou: — “Eu também sou universalista”. Balancei a cabeça: — “Exato, exato”. Comecei a achar que eu e o gordo estávamos fazendo, ali, uma conversa de débeis mentais. E continuei, no mesmo nível superior do Neves: — “Está certo que as esquerdas sejam universalistas. Mas por que não põem o Brasil ao menos no galinheiro do seu universo? Você não acha que as esquerdas podiam reservar um poleiro para o Brasil?”.
Foi uma conversa, entre nós dois, que se arrastou por hora, hora e meia. Falta-me espaço para contar todas as verdades eternas que dissemos um ao outro. Mas estava ficando tarde e quis me despedir. Foi aí que, mudando de tom, o Neves exala um gemido. Baixando a voz, começa: — “Preciso de uma opinião, um palpite”. Novo gemido: — “É o seguinte: tenho uma filha linda, linda. Dezoito anos, aluna da puc, um crânio. Mais inteligente do que eu, do que a mãe, do que os tios. Um portento. A garota estava noiva de um rapaz de vinte anos”. Faz uma pausa e puxa um cigarro. Ou por outra: — o Neves não fuma. Não puxa o cigarro e diz trêmulo: — “Com data marcada para o casamento, minha filha se apaixona, e sabe por quem?”.
Disse, por entre lágrimas: — “Por um velho”. E como ele chorava na via pública ao meu lado, tive uma vergonha brusca e desalmada daquele pranto de gordo. Não sei por que, talvez injustamente, sempre achei que a lágrima do magro constrange menos. Apelei: — “Não faça isso!”. Olhava para os lados, esbaforido, como se o homem que chora fosse, por isso, obsceno: — “Filha única! Filha única!”. Arrisquei a pergunta: — “Mas é tão velho assim?”. Disse: — “Quarenta anos!”.
O Neves estaria disposto a aceitar que a menina deixasse um jovem por outro jovem. E repetia, desatinado: — “Mas, por um velho! Um velho!”. Digo-lhe: — “Calma, calma!”. Pula, furioso: — “Você diz calma porque a filha não é sua. Nós somos calmíssimos com as filhas dos outros. Queria ver se fosse contigo. Responde: não é uma tragédia?”. Fui taxativo: — “Tragédia nenhuma! Pelo contrário: sorte para sua filha, sorte para você, para a sua mulher, para a sociedade brasileira. Você e o Brasil estão de parabéns”. Aterrado, balbucia: — “Que piada é essa?”.
Tive de jurar-lhe que não fazia nenhuma piada. Estava falando com uma seriedade total. Expliquei o que acho: — a esposa pode ter qualquer idade e não importa. Mas o marido não pode ser jovem. É trágica a união do homem e da mulher da mesma idade. Falei da minha experiência pessoal. Aos vinte anos eu não sabia como se cumprimenta uma mulher, como se diz “bom dia” a uma mulher, como se olha, ou sorri para uma mulher, como se protege e como se salva uma mulher. Claro que, aos dezessete, vinte anos, o sujeito tem uma plenitude de bárbaro. Mas é uma vitalidade cega, feroz, destrutiva. Quando marido e mulher são jovens a convivência é o próprio inferno. Nunca se improvisou um marido. Marido é métier, é tempo, é virtuosismo, sabedoria, lúcida paciência.
O Neves repetia, fora de si: — “Mas o cara tem quarenta anos!”. Parecia-lhe que, aos quarenta anos, o homem é de uma velhice infinita, milenar. Achei graça no seu terror. Disse-lhe que, a partir dos quarenta, o homem já pode ser marido. Aprendeu fazendo sofrer outras mulheres, dilacerando outras mulheres.
Ao passo que, aos vinte, com a sua feroz vitalidade sem alma, ele pode ser tudo, menos marido. Não tem nem alma, porque a alma vem depois, vem com o tempo. Neves ouvia, atônito. Por fim, admitiu: — “Realmente, aos vinte anos eu era uma boa besta”. E pergunta, quase convertido: — “Quer dizer que não é uma desgraça?”. Só faltei jurar: — “Uma sorte grande”. O outro já sorria. E quando, brincando, disse-lhe “até aí morreu o Neves”, riu, escarlate de prazer. Voltava a ser o feliz Neves. Estendeu-me a mão suada, radiante de ter um nome que era um trocadilho, uma piada.
[18/5/1968]
sexta-feira, 2 de janeiro de 2009
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