sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

MARIDOS JOVENS E VELHOS

Qualquer um de nós já disse não sei quantas vezes: — “Até aí morreu o Neves”. Por que só o Neves e não o Batista, o Sepúlveda, o Tavares ou o Pacote? Até hoje ninguém sabe por que o povo escolheu esse nome, exatamente esse e não outro qual­quer. Ainda hoje, ao sair de casa, ouvi alguém dizer a alguém a propósito não sei de quem: — “Ora, ora, até aí morreu o Ne­ves”. Aquilo ficou nos meus ouvidos. Eis a verdade: — “Ne­ves” tornou-se, para mim, algo de impessoal, de encantado, de alucinatório.
Mas vejam a coincidência ou, para ser mais enfático, a fata­lidade. Ontem mesmo vou dobrar a esquina da rua Irineu Mari­nho quando uma voz me chama: — “Nelson, Nelson!”. Viro-me e dou de cara com um gordo, desses que têm uma papada maior do que a de Dumas pai. Não sei se sou famoso. Mas ad­mitindo que o seja, tenho um tipo de relação inefável: — o “des­conhecido íntimo”. São sujeitos que eu nunca vi e que me tra­tam com uma intimidade jucunda e fulminante. Pois o gordo citado já abria para mim um riso total.
Antes de me estender a mão enxugou-a num vasto lenço, explicando: — “Suo muito nas mãos”. De minha parte tive bas­tante descaro e o tratei como a um amigo de infância. E ele me perguntava: — “Não se lembra mais de mim?”. Há um suspen­se e o desconhecido íntimo insiste: — “Vê bem”. Palavra de honra, eu não me lembrava. Ao longo de minha vida tenho ti­do vários amigos gordos. Mas não conseguia me lembrar nem daquela papada, nem daquelas bochechas. Na minha frente ele continuava a enxugar as mãos de um suor talvez imaginário.
E, súbito, exausto do suspense, o outro dá o berro: — “Eu sou o Neves!”. Sim, era um Neves radiante de o ser. O Neves, o Neves! E o simples nome deflagrou em mim todo um maravi­lhoso fluxo de memória. Na minha infância profunda o Neves fora meu vizinho. Muitas vezes pulara eu o muro para ir roubar carambolas no seu quintal. Disse-lhe: — “Se me lembro!”. E, já varado de nostalgia, suspirei: — “Bom tempo, bom tempo”. Durante uns vinte minutos, em cima da calçada, permutamos as nossas lembranças.
Quase no fim da conversa retrospectiva o Neves pergunta, à queima-roupa: — “Você não é universalista? Ou é?”. Não en­tendi nada. Limpo um pigarro: — “Universalista como?”. Veio a explicação: — “Você só fala no Brasil. E acusa as esquerdas de alienadas”. Pausa e diz: — “Mas você se esquece que as es­querdas são universalistas”.
Bem percebi a volúpia, a salivação intensa com que o bom Neves dizia aquela palavra deliciosa: — universalista. Ao desco­brir que ele, além de outras virtudes, tem a de ler-me, me senti ainda mais terno e ainda mais lírico. Pousei a mão no seu om­bro: — “Escuta, Neves. Você tem razão, mas eu também tenho razão”. E comecei a explicar “a minha”.
Eis o que disse eu, por outras palavras: — “Está certo que as esquerdas sejam universalistas”. O outro ajuntou: — “Eu tam­bém sou universalista”. Balancei a cabeça: — “Exato, exato”. Comecei a achar que eu e o gordo estávamos fazendo, ali, uma conversa de débeis mentais. E continuei, no mesmo nível su­perior do Neves: — “Está certo que as esquerdas sejam univer­salistas. Mas por que não põem o Brasil ao menos no galinheiro do seu universo? Você não acha que as esquerdas podiam reservar um poleiro para o Brasil?”.
Foi uma conversa, entre nós dois, que se arrastou por ho­ra, hora e meia. Falta-me espaço para contar todas as verdades eternas que dissemos um ao outro. Mas estava ficando tarde e quis me despedir. Foi aí que, mudando de tom, o Neves exala um gemido. Baixando a voz, começa: — “Preciso de uma opi­nião, um palpite”. Novo gemido: — “É o seguinte: tenho uma filha linda, linda. Dezoito anos, aluna da puc, um crânio. Mais inteligente do que eu, do que a mãe, do que os tios. Um por­tento. A garota estava noiva de um rapaz de vinte anos”. Faz uma pausa e puxa um cigarro. Ou por outra: — o Neves não fuma. Não puxa o cigarro e diz trêmulo: — “Com data marca­da para o casamento, minha filha se apaixona, e sabe por quem?”.
Disse, por entre lágrimas: — “Por um velho”. E como ele chorava na via pública ao meu lado, tive uma vergonha brusca e desalmada daquele pranto de gordo. Não sei por que, talvez injustamente, sempre achei que a lágrima do magro constrange menos. Apelei: — “Não faça isso!”. Olhava para os lados, esbaforido, como se o homem que chora fosse, por isso, obsceno: — “Filha única! Filha única!”. Arrisquei a pergunta: — “Mas é tão velho assim?”. Disse: — “Quarenta anos!”.
O Neves estaria disposto a aceitar que a menina deixasse um jovem por outro jovem. E repetia, desatinado: — “Mas, por um velho! Um velho!”. Digo-lhe: — “Calma, calma!”. Pula, fu­rioso: — “Você diz calma porque a filha não é sua. Nós somos calmíssimos com as filhas dos outros. Queria ver se fosse conti­go. Responde: não é uma tragédia?”. Fui taxativo: — “Tragédia nenhuma! Pelo contrário: sorte para sua filha, sorte para você, para a sua mulher, para a sociedade brasileira. Você e o Brasil estão de parabéns”. Aterrado, balbucia: — “Que piada é essa?”.
Tive de jurar-lhe que não fazia nenhuma piada. Estava fa­lando com uma seriedade total. Expliquei o que acho: — a es­posa pode ter qualquer idade e não importa. Mas o marido não pode ser jovem. É trágica a união do homem e da mulher da mesma idade. Falei da minha experiência pessoal. Aos vinte anos eu não sabia como se cumprimenta uma mulher, como se diz “bom dia” a uma mulher, como se olha, ou sorri para uma mu­lher, como se protege e como se salva uma mulher. Claro que, aos dezessete, vinte anos, o sujeito tem uma plenitude de bár­baro. Mas é uma vitalidade cega, feroz, destrutiva. Quando ma­rido e mulher são jovens a convivência é o próprio inferno. Nun­ca se improvisou um marido. Marido é métier, é tempo, é virtuosismo, sabedoria, lúcida paciência.
O Neves repetia, fora de si: — “Mas o cara tem quarenta anos!”. Parecia-lhe que, aos quarenta anos, o homem é de uma velhice infinita, milenar. Achei graça no seu terror. Disse-lhe que, a partir dos quarenta, o homem já pode ser marido. Aprendeu fazendo sofrer outras mulheres, dilacerando outras mulheres.
Ao passo que, aos vinte, com a sua feroz vitalidade sem alma, ele pode ser tudo, menos marido. Não tem nem alma, porque a alma vem depois, vem com o tempo. Neves ouvia, atônito. Por fim, admitiu: — “Realmente, aos vinte anos eu era uma boa besta”. E pergunta, quase convertido: — “Quer dizer que não é uma desgraça?”. Só faltei jurar: — “Uma sorte grande”. O ou­tro já sorria. E quando, brincando, disse-lhe “até aí morreu o Neves”, riu, escarlate de prazer. Voltava a ser o feliz Neves. Estendeu-me a mão suada, radiante de ter um nome que era um trocadilho, uma piada.

[18/5/1968]

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