quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

O GRANDE COMÍCIO

Tenho dito, obsessivamente, que sou uma flor de obses­são. Ora, uma coisa muito repetida vai perdendo a solenidade inicial e tornando-se humorística. Amigos meus já me saúdam assim: — “Olá, flor de obsessão”, “Como vais, flor de obses­são?”. Eu respondo com esplêndida naturalidade: — “Vou in­do. Estou caprichando”. Agora mesmo, recebo um bilhete do Raul Brandão, o pintor de igrejas e de grã-finas. Começa assim: — “Nelson, minha flor de obsessão”.
E de fato, sou um homem de fixações inarredáveis. Insisto em assuntos e figuras de nossa época com uma pertinácia qua­se doentia. Ontem, o Marcello Soares de Moura passa por mim e adverte: — “Você está falando muito do comício!”. A princí­pio, não entendi. E o Marcello, afobadíssimo, já se afastava, em passadas largas e firmes. Fiquei dando tratos à bola, sem saber que comício seria esse, que tanto atribulava o amigo. Até que baixou uma luz em mim. Só podia ser o comício de 1º de Maio, ali, no Campo de São Cristóvão.
Realmente, na data universal do Trabalho, as esquerdas de­ram uma demonstração de força. Até então, elas não existiam historicamente, e explico: — não tinham feito nada. O nosso homem de esquerda bate papo e só. Mas não sai do Leblon, não larga a praia e, à noite, vai para o Antonio’s, gozar a sua boêmia ideológica. Sabemos que a História faz exigências mais severas. Não basta namorar no Antonio’s, ou lá babar os pileques liber­tários.
E eis que as esquerdas resolvem agir. A data escolhida, e não sem uma intenção óbvia, foi o Dia do Trabalho. Por coin­cidência, na mesma data, havia o jogo Flamengo x Vasco. Seria inevitável a competição. De um lado, o discurso; de outro la­do, a botinada. A retórica teria que derrotar o chute.
Mas um comício histórico impõe certas provações amar­gas. A primeira delas foi o local imposto. Sempre digo que o nosso esquerdista é um ser do Leblon ou, na pior das hipóte­ses, de Copacabana. E as esquerdas nada conhecem desse Bra­sil que se esconde para lá da praça Saenz Pena. Estava decidido que seria no Campo de São Cristóvão. Muitos oradores jamais em tal ouviram falar. Houve quem recorresse aos guias turísticos.
(Alguém dirá que já contei a mesma história umas dez ve­zes. É possível. Mas sou ou não sou uma flor de obsessão? E tal assunto me fascina, eis a verdade, me fascina. A meu ver, o comício de 1º de Maio ensina a conhecer o Brasil dos nossos dias. E eu confesso que escreveria um ano inteiro, dia após dia, sobre tal acontecimento.)
O que eu queria dizer é que, na hora marcada, não compa­receu ninguém. Minto. Os oradores estavam presentes. Uns quinze, segundo uma estimativa generosa. Esperava-se uma mas­sa nunca inferior a 200 mil pessoas. Muito bem. O último ora­dor já imaginara o seguinte fecho para o seu discurso: — “Quem for brasileiro que me siga!”. E os quinze oradores e mais as 200 mil pessoas partiriam, do Campo de São Cristóvão, para salvar, não o Brasil, mas o Vietnã.
Os cálculos das esquerdas não estavam tão longe da verda­de. As 200 mil pessoas existiam. Só que estavam no Estádio Má­rio Filho. Ao Campo de São Cristóvão, não foi, repito, ninguém. Cochichou-se: — “Por que é que o nosso comício não foi pre­liminar do jogo?”. Era uma idéia perfeita, mas desgraçadamen­te tardia.
(Imaginem as esquerdas fazendo as preliminares do fute­bol. Para melhor efeito, os oradores poderiam falar de calções e chuteiras. Seja como for, a platéia estaria garantida.) No dia seguinte, um dos oradores me procurou. Exalando uma cava depressão, abriu-me a alma, de par em par. Disse: — “Nunca mais, nunca mais!”. E contou-me a sua medonha experiência. Sem sair do Brasil, tivera, em plena canícula, uma experiência siberiana.
Imaginem vocês um orador que se prepara para um audi­tório de 200 mil sujeitos. Pois bem. E chega lá e vê um deserto total, sem um mísero camelo, sem uma mísera bica. Adiar para o dia seguinte, não podia ser. O comício de 1° de Maio exige o 1º de Maio, assim como a parada de 7 de Setembro precisa do 7 de Setembro. Os oradores esperam quinze, vinte minutos. Fora algumas moscas vadias e divertidas, ninguém mais. E, súbito, para maior desprazer dos tribunos, um casal de moscas põe-se a fazer amor na testa de um deles.
Mas falei em “experiência siberiana” e preciso explicar. Há na Sibéria uma ilha tão deserta, tão deserta, que nem micróbios tem. E quando não há nem micróbios, a solidão é perfeita. Pois cada orador sentiu-se exatamente em tal ilha. Cada um dos pre­sentes começou a sentir, na própria carne, um frio horrendo. Todos tiritavam, rilhavam os dentes. E a aragem fina que soprava parecia siberiana. Os oradores quase voltaram de trenó.
O esquerdista do “Nunca mais! Nunca mais!” perguntava: — “Por que, meu Deus, por quê?”. No Brasil, há platéia para tudo e o brasileiro é, por vocação, platéia. Se um camelô vende caneta-tinteiro, junta gente; se morre um cachorro atropelado, junta gente; e, se passa um batalhão, nós vamos atrás. Eis o que dizia eu e aqui repito: — o brasileiro tem uma alma de cachor­ro de batalhão. Não há batalhão sem um cachorro para acompanhá-lo. Pois do nosso pau-de-arara ao Walther Moreira Salles, todos aderimos a qualquer passeata. De igual porte, en­tramos em qualquer comício. E, no de 1º de Maio, ninguém pa­rou. Os oradores de esquerda não conquistaram nem a curiosi­dade vadia que inspiram os camelôs e os cachorros atropela­dos. Daí o deserto siberiano que se instalou no Campo de São Cristóvão. Falei nas moscas frívolas, inclusive nas duas que transformaram a testa do orador em tálamo nupcial. Retiro as mos­cas. Tal como na ilha da Sibéria, enquanto durou o comício até os micróbios sumiram. E o meu amigo desesperado insistia, mo­notonamente: — “E por quê?”.
Dei-lhe a resposta, sucinta, inapelável e obtusa: — “Não sei”. Pela primeira vez, um fato na História do Brasil deixara de ter a sua platéia. O orador saiu, rosnando como no poema: — “Nunca mais! Nunca mais!”. E, até ontem, não conseguira eu entender a Sibéria sem micróbios em que se meteram as nos­sas esquerdas.
Ontem, porém, passei de táxi, por São Salvador, a cami­nho do túnel Santa Bárbara. Comecei a ver todos os muros pi­chados com vivas aos vietcongs, vivas à vitória vietcong. Vietcong para lá, vietcong para cá. Só então compreendi por que as esquerdas do Brasil não atraem nem os micróbios brasilei­ros. O que há é um pequeno engano geográfico. A retórica de 1º de Maio teria platéia no Vietnã e nunca no Campo de São Cristóvão. Se fosse um comício sobre uma bica entupida em Bo­ca do Mato, ou um cano furado na praça Sete, sempre aparece­riam umas donas-de-casa para dizer “bravos bravíssimos”, co­mo na ópera.

[17/5/1968]

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