quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O CEGUINHO DA RUA DO OUVIDOR

Um dia, num sarau de grã-finos, alguém perguntou: — “Se você fosse milionário, que faria você?”. O sujeito falava comi­go. A simples pergunta deu-me vertigem. Eu, milionário! Não respondi imediatamente. Primeiro, quis saber: — “Milionário brasileiro ou americano?”. Expliquei que, diante das fortunas americanas, o nosso Walther Moreira Salles é um mísero barnabé. Não sei se me entendem.
Mas insisto: — barnabé ou nem isso. Há um ceguinho na rua do Ouvidor. Senta-se na calçada, puxa o violino, e toca um tango, sempre o mesmo tango. Ao lado, está o pires, sim, um tristíssimo e inconsolável pires. Enquanto o ceguinho repisa o tango, os que passam pingam a moeda de sua piedade. Eis a ver­dade: — comparado ao velho Rockefeller, o brasileiro Walther Moreira Salles é o ceguinho da rua do Ouvidor. Vejam a cena por mim imaginada: — o Walther Moreira Salles tocando La cumparsita e ganhando a esmola da compaixão que vai passan­do, eternamente passando.
Mas continuava irrespondida a pergunta: — “Se eu fosse milionário, que faria eu?”. Pensei, pensei e, por fim, disse: — “Se eu fosse milionário, e americano, compraria um veleiro bran­co”. Bem sei que isso, dito assim, num sarau afetadíssimo, po­de parecer uma resposta também afetada e subliterária. O autor da pergunta fez um alegre escândalo: — “Sossega, leão!”. A gí­ria obsoleta deu-me um brusco e cruel sentimento do ridículo.
(Se descontarmos, porém, a subliteratura, o veleiro bran­co é uma das minhas utopias mais obsessivas. Sempre delirei com uma viagem absurda. Basta dizer que eu não desembarca­ria nunca. A meu ver, o que imbeciliza a viagem é o desembar­que obrigatório. Tão simples não desembarcar jamais. E eu não desceria nunca do veleiro. Nem teria nenhuma nostalgia das praias eternas. E me sentiria ébrio dos horizontes marinhos.)
Mas quando o grã-fino resmungou: — “Sossega, leão!” — desembarquei na vida real. E a conversa morreu aí. Mas se eu fosse milionário, talvez não comprasse o veleiro branco. Em vez de comprar o barco encantado, eu pagaria o riso do Walter Clark (sim, o Walter Clark, diretor-geral da tv Globo). O riso passa­ria a ser o seu ganha-pão. Vocês, naturalmente, não estão en­tendendo nada. Tentarei explicar.
Sempre digo que o adulto não existe. O homem é o meni­no perene. E a inocência de tal infância está no riso do Walter Clark. Um riso pode ser abjeto. Conheci um ministro que não ria, simplesmente não ria, para não se comprometer. Imaginem, porém, o Walter Clark numa sala. Alguém diz uma piada. E ele ri. O seu riso é a infância que absolutamente não morre. Ah, se eu tivesse o dinheiro do velho Rockefeller, sempre que me sentisse desgraçado chamaria o Walter. Diria eu como um indi­gente que pede uma esmola: — “Me dá um riso aí”. E pagaria um cachê alto, uma gratificação suntuária. Sempre que ele risse receberia um cheque. Ah, seu riso tem a euforia de um anjo.
Por que é mesmo que estou dizendo tudo isso? Já me lem­bro. Outro dia, o Walter Clark fez anos e fui festejá-lo no seu apartamento. Entro lá e dou de cara com o Di Cavalcanti. Ah, o Di, o Di! Sua figura tem a luminosidade dos antigos sátiros vadios. Em seguida, vejo, adiante, o próprio aniversariante. (A um canto, seu riso purificava os circunstantes.) E, súbito, che­ga alguém, e sou raptado. Era o Aloysio Salles.
Se me perguntarem quem é ele e o que fez ele, direi que é o autor desta frase: — “Tudo é um domingo de regatas”. As Novas Gerações talvez não entendam o berro dionisíaco. Ah, o “domingo de regatas” é uma paisagem que já morreu. É pre­ciso voltar à velha enseada. Hoje, o pavilhão Mourisco está re­duzido a uma linha de ônibus. Mas houve um tempo em que podíamos vê-lo, apalpá-lo, farejá-lo. E nada mais lindo e parna­siano do que um “domingo de regatas”. O chapéu feminino era uma paisagem ou, melhor dizendo, uma natureza-morta: — ti­nha uvas, morangos, cerejas, pitombas e tomates (tomate é exa­gero). Ponham, por cima, um céu de soneto, imaginem uma luz de Bilac e terão todo o décor. A mulher era mais chapéu do que vestido e repito: — parecia vestida de chapéu.
Na mansão do Walter Clark, o Aloysio Salles não queria fa­lar de nenhum domingo. Ao meu lado, lembrou o conde de Keyserling. Vocês não imaginam. O conde era um príncipe do es­pírito. De uma lucidez desesperadora, sabia tanto que não lia mais. (Não lia nem cartão de visitas.) E, já no tédio da própria inteligência, também não queria pensar. Com três ou quatro dias de Brasil, pediram a tão fino espírito uma palavra. Mas uma pa­lavra tão sábia que definisse o Brasil.
Vejam vocês: — uma palavra que, num golpe fulminante, explicasse os usos, costumes, valores, sentimentos de um país desconhecido. Mas o conde de Keyserling era um dos tais que não dizem um “bom-dia” sem lhe pingar gênio. Pensativo, aproximou-se da sacada do hotel. E, por um momento, deixou-se ficar silencioso, meio alado, só olhando. Embaixo, passava a multidão com algo de fluvial no seu lerdo escoamento. Eis o que via o conde: — todo mundo cumprimentava todo mundo (ainda usávamos o instrumento da reverência que é o chapéu). E o ilustre visitante percebeu que ninguém, assim na terra co­mo no céu, cumprimenta tanto quanto o brasileiro. Virou-se para a imprensa: — “Já tenho a palavra”. Os jornalistas, aflitos, apu­raram as orelhas. E Keyserling deixou cair a palavra como uma flor: — “Delicadeza”. Delicado o Brasil, delicado o brasileiro. E, assim, numa palavra fugaz, o conde pretendia ter feito a in­superável síntese do Brasil.
Muitos e muitos anos depois, o Aloysio Salles temia pela sorte da delicadeza nacional. Certos gestos e certos fatos o ater­ravam. E ele começava a ver, aqui e ali, numa notícia de jornal ou numa conversa de esquina, sintomas do anti-Brasil. Está-se deteriorando a bondade brasileira; de quinze em quinze minu­tos, aumenta o desgaste da nossa delicadeza.
E não acontecera, ainda, o episódio miserável de São Pau­lo. Vocês leram. No fim de um espetáculo de Roda viva, inva­diram o teatro. Todo mundo foi espancado: — as famílias, que se retiravam, e o elenco, que se vestia. Os bárbaros estraçalha­vam os vestidos. Fraturaram, a cacetadas, a bacia do contra-regra. Uma das atrizes, despida e pisada, gritou: — “Estou grávida! Es­tou grávida!”. Sua gravidez foi massacrada. Desde a Primeira Mis­sa, nunca se viu, aqui, indignidade tamanha. Um amigo meu veio dizer-me: — “Isso não é o Brasil! Isso nunca foi o Brasil!”. E, de repente, começamos a sentir que o Brasil deixou de ser o Brasil. Estamos sendo esmagados pelo anti-Brasil.

[23/7/1968]

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