terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O ENTERRO FLUVIAL

Certa vez, cruzo, na avenida, com o Carlos Heitor Cony. Ele olha para os lados e baixa a voz: — “Preciso falar contigo”. Fazia tanto suspense e tanto mistério que perguntei: — “Mas o que é que há?”. Arrastou-me para um canto. E, então, num escândalo total, começou: — “Teu artigo de hoje está de um reacionarismo!” — pausa e repetiu de olho rútilo e lábio trê­mulo: — “De um reacionarismo, rapaz!”.
Até hoje, não sei se a sua irritação era mesmo irritação ou deslumbramento. Ainda perguntei: — “Artigo sobre quem?”. Ah, sou um autor sujeito a lapsos fatais. Quantas vezes me es­queço do que escrevi há meia hora? Foi o próprio Cony que me alumiou a memória: — “O artigo da fome!”. Era verdade. Naquele dia, escrevera eu sobre a fome de 1917, 18, 19.
É de caso pensado que ponho as datas. E, com efeito, a fome muda o seu comportamento de época para época. Nos anos citados, ela não tinha o apelo, o patético, a promoção dos nossos dias. Bem me lembro dos meus seis, sete anos. De vez em quando, vinha gente bater na nossa porta: — “Um pedaço de pão! Um pedaço de pão!”. Eis a palavra e a ima­gem: — pão. Há uns quarenta anos que não vejo ninguém pedir pão, ninguém.
Outro dia, ocorreu um episódio que me parece singular­mente ilustrativo. Uma santa senhora deu pão a um mendigo. O sujeito apanhou o pão, e o olhou, esbugalhado, como se não entendesse a esmola. E, súbito, deu-lhe uma ira, um ódio. Agre­diu a senhora, deu-lhe uma surra de pão. A vítima pôs a boca no mundo. Com um rapa fulminante, o mendigo a derrubou e, por cima da senhora, queria enfiar-lhe o pão pela goela abaixo.
Assim se comporta a fome da nossa época. Vive do ódio. Outrora, não. Na “Confissão” que provocou o divertido hor­ror do Cony, eu escrevia, justamente, sobre os famintos da mi­nha infância. Ah, naquele tempo, tínhamos por aqui uma fome sem raiva, sem agressividade, dócil, mansa e como que consen­tida.
Um dia, houve um enterro em Aldeia Campista. Salvo en­gano, o morto era um “seu” Ferreira, português rico, dono de um armazém. Naquele tempo, quatro cavalos, de crepe e pena­cho, puxavam o carro fúnebre. Na hora certa, o enterro vai par­tir. E, então, acontece o seguinte: — o cocheiro desmaia, sim­plesmente desmaia (caiu-lhe a cartola).
Corre-corre no portão. Dois ou três agarram o homem; dão-lhe tapinha na cara. Finalmente, abre os olhos; arquejante, ge­me: — “Quero comer, quero comer”. E fazia o apelo, por en­tre lágrimas. Foi carregado para dentro da casa enlutada. Lá den­tro, alguém improvisa um prato fundo de feijão com arroz. O cocheiro começa a comer. Súbito, pára, e, de boca cheia, per­gunta: — “Tem uma pimentinha?”.
Aquele homem não comia há dois dias. E não faltou ao emprego. Lá estava, de cartola, fazendo o enterro de luxo. E, não fosse derrubado pela inanição, chegaria ao cemitério. Eis o que eu queria dizer: — era uma fome sem Ministério do Trabalho, sem greve, sem reivindicações salariais. Ainda garoto, tivemos uma cozinheira que fazia um filho por ano, matematicamente. Chamava-se Hortência. Era uma fecundida­de radiante. Dizia, na cozinha, esplêndida de vaidade: — “Te­nho meus filhos em pé”.
E, assim, chegou aos nove, dez, onze filhos. A fome levou nove. Exatamente nove filhos. Os mais resistentes morriam aos cinco, seis anos. Pois a mãe os enterrava sem pena nem ressen­timento. Ter os filhos e perdê-los era a sua rotina. Ela própria não odiava a fome, e repito: — não havia desespero, nem tris­teza, na sua fome.
Muitos anos depois, vou a Caxias e a encontro lá. Já se ti­nham incorporado à vida brasileira os direitos trabalhistas. Falava-se, na época, que o novo salário mínimo seria de 6 mil cruzeiros antigos. A minha ex-cozinheira, já alquebrada, já avó, ralhava com o genro: — “Seis contos é demais. Onde já se viu? Seis contos é abuso”.
Claro que o Cony queria que eu apresentasse uma cozinhei­ra retórica como La passionaria. E, como eu não a descrevi derrubando bastilhas e decapitando Marias Antonietas, o Cony me chamava de reacionário. Excelente Carlos Heitor. Quando deixar de fazer concessões às esquerdas, quando pensar literariamente e não politicamente os seus textos — fará a sua obra-prima.
O Brasil da minha infância não tinha assaltos por isso mes­mo: — porque a fome não assaltava, e digo mais: — a fome ain­da não assalta. O assaltante não quer comer. Mata e fere para ter o supérfluo. Dirá alguém que estou falsificando a verdade. Mas insisto em que só a fome literária do Zola arromba padarias e pendura o padeiro num pedaço de pau.
Hoje, há uma fúria. Quantos vivem da fome? Por exemplo: — d. Hélder. Sempre teve o gênio promocional e nunca foi um obscuro. Mas o d. Hélder anterior não tem o dramatismo, a po­tência, a fama do d. Hélder da fome. A fome tem-no feito. Po­díamos apresentar a fome como a autora de d. Hélder. Ele pre­cisava ter, por fundo, a mortalidade infantil. Mas, coisa curiosa! Os grandes indignados da fome não são as suas vítimas, mas os que não a têm. Sim, são os bem alimentados que vociferam e dão patadas.
Ainda ontem, uma grã-fina batia o telefone pára mim. Mi­nha “Confissão” de sábado tratava, justamente, da fome da Ín­dia. E a excelente senhora agrediu-me como se eu fosse o cul­pado da fome do Nordeste, da Índia e de todas as misérias pas­sadas, presentes e futuras.
Perguntou-me a formosa dama: — “Você acha que a Ín­dia gosta de passar fome? Acha que a Índia gosta de ver o pró­prio cadáver no rio? Sua literatura sobre a fome é desumana”. Eu poderia responder-lhe: — “Meu anjo, por que é que não asfalta uma favela com seu colar de 500 milhões antigos?”. Mas sou um tímido e um delicado. E conversei longamente no telefone.
Disse-lhe eu o óbvio total: — a fome é o mais antigo dos hábitos humanos. Ora, um hábito não dói, não faz ninguém sofrer. Por exemplo: — a Índia. Há 6 mil anos que o cadáver é atirado no rio. E o cadáver já não se espanta mais. Lá, milhões de sujeitos não moram. E bebem, a mãos ambas, a água da sar­jeta. Do outro lado da linha, a grã-fina esperneava: — “Isso é blague. Não brinque com coisas sérias”. Por fim, como ela to­mava a verdade por piada, disse-lhe: — “As vítimas da fome so­frem menos. Quem se descabela, e soluça, e quer chupar a ca­rótida das classes dominantes, somos eu, a senhora, d. Hélder e o meu doce Hélio Pellegrino”.

[17/7/1968]

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