sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

OS DRÁCULAS

Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo: — a nossa. Ainda anteontem, falei da idéia inusitada de d. Hélder. O nosso querido arcebispo propõe uma missa cô­mica (se duvidarem, leiam a última edição dominical de O Jor­nal). Por trás de suas palavras, sentimos o tédio cruel de uma missa que se repete, com uma monotonia já irrespirável, há 2 mil anos. E ele sugere que se substitua o órgão, o violino, a har­pa, o címbalo, pelo reco-reco, o tamborim e a cuíca.
Por aí se vê que ele, como o dr. Alceu, é um progressista. Não sei se o leitor entendeu todo o alcance da sugestão. D. Hél­der propõe, se bem o entendi, que se enfie o sobrenatural na gafieira ou por outra: — que se faça da catedral uma gafieira gó­tica. Parece ao arcebispo de Olinda que se pode louvar a Deus, igualmente ou até com vantagem, com a cuíca, o pandeiro, o reco-reco e o tamborim.
A missa, como a conhecemos, nos últimos vinte séculos, é triste, é depressiva, é neurótica. E quem sabe se a Virgem, se Jesus, se os santos não hão de preferir, por fundo musical, o samba? Seria uma boa maneira de espanar o pó que 2 mil anos depositaram em certas representações católicas.
Mas falei acima nas épocas que parecem doentes mentais. Só em nossos dias um arcebispo poderia irromper num jornal, na televisão ou rádio e lançar a idéia da missa cômica. Estamos pertinho da Semana Santa. É o caso de, na Sexta-Feira da Pai­xão, cada um levar seu reco-reco, sua cuíca, seu tamborim e seu pandeiro. Nada de lúgubres e mórbidas procissões. E chorar por que, se tristezas não pagam dívidas? Mas, como eu ia dizendo: — se em qualquer outra época, de razoável sanidade, alguém sugerisse tal coisa, seria um escândalo inominável. Em sua indignação, os fiéis dariam arrancos triunfais de cachorro atrope­lado. Hoje, não.
Hoje, achamos perfeitamente normal que se instale a vida eterna numa gafieira. Daqui a pouco, um outro há de propor que, dentro das igrejas, garçons passem bandejas de salgadinhos, mães-bentas, caldo de cana, grapete e chicabon. Mas volto à minha observação anterior: — d. Hélder não espantou ninguém. Não houve escândalo, ninguém arrancou os cabelos etc. etc.
Essa impotência para o espanto dá que pensar. Eis o que me pergunto: — e por que, meu Deus, por quê? Vejo católicos justificando a guerrilha, achando a guerrilha uma atividade nobilíssima. E o dr. Alceu só não a recomenda para o Brasil, por­que, diz ele, os nossos camponeses não são politizados. Eu me lembro de que, antes da esquerda católica, não tínhamos dráculas neste país.
E já os temos. Amaldiçoados? Não. Abençoados. Sim, abençoados, absolvidos por respeitáveis homens de fé. Quando vi o dr. Alceu falando, com indisfarçável simpatia, das guerrilhas, pensei numa outra e singular figura: — o Lawrence das Arábias. Vocês o conhecem da História e da Lenda. O próprio Lawren­ce conta uma de suas passagens mais patéticas. Vale a pena lem­brar o episódio.
Em dado momento, Lawrence teve que matar. Jamais tira­ra a vida de ninguém. Em criança, era contra a matança até de passarinho. E, além disso, havia um mandamento, o único do qual se lembrava e, também, o único que cumpria: — o “Não matarás”. Lawrence estaria disposto a roubar e, aqui entre nós, já roubara. Matar, jamais. Mas precisava tirar a vida de um se­melhante. Era um homem como ele e igual a ele.
E, então, Lawrence preparou-se para matar. Nobilíssimos motivos o impeliam para o assassinato. Na véspera do crime, não dormiu; passou a noite em claro. Houve um momento em que o fascinou a idéia de morrer para não matar. Se estourasse os miolos, estaria dispensado do crime hediondo. Outro que matasse. O diabo é que o sentimento do dever o empurrava. E o dever passa por cima dos mandamentos, por cima dos es­crúpulos, por cima da misericórdia. Por dever, Lawrence saiu de casa para matar.
Viu a vítima. Ia morrer e não sabia. Ele, Lawrence, seria, por um momento, Deus; tiraria uma vida, como se Deus fosse. E Lawrence matou. O primeiro tiro já seria mortal. Mas a vítima poderia não morrer imediatamente e também atirar. Então, Law­rence deu o segundo tiro, igualmente mortal. Não precisava mais; ele poderia correr, pular o muro e sumir. Mas Lawrence ficou.
O sujeito já estava morto, tecnicamente morto. Mas saiu o terceiro tiro. Eis a pergunta que o assassino fazia a si mesmo: — por que o terceiro tiro se, desde o primeiro, a vítima já era um inequívoco, indubitável cadáver? Com grande assombro para si mesmo, continuou atirando. Quarto, quinto, sexto tiro. E só parou quando esgotou a carga. Era a hora de fugir. Mas ficou ainda. Virou a arma e meteu a coronha na cara do cadáver. E o fato de não ter mais balas, para continuar atirando, deu-lhe um sentimento atroz de frustração. Só então fugiu.
Mais adiante, Lawrence pára, assustadíssimo. O que o apavorava, em si, era a ausência de qualquer horror. Matara, pela primeira vez matara, e não estava horrorizado. Matara gostan­do de matar. Ao varar de balas a vítima, sentira um prazer ja­mais suspeitado. Era uma volúpia que não conhecia. Olhou em torno. Passava, lá adiante, uma senhora, uma velha; e, mais além, uma criança. Teve a súbita e inefável tentação de matá-las tam­bém. Matar, sempre matar, matar na véspera, no dia seguinte, eternamente matar.
Não quero ser enfático. Mas me parece estar havendo, no Brasil, uma degringolada de valores. Vimos d. Hélder propor a missa cômica; e ninguém se espantou. Vimos o dr. Alceu de­clarar que, por causa de um passarinho, pode-se matar um ho­mem. Uma coisa está ligada à outra e ambas se explicam. Se d. Hélder pode propor a gafieira gótica, e se o dr. Alceu absol­ve um monstruosíssimo assassinato (se bem que hipotético), tu­do é permitido e vale tudo.
O brasileiro é uma espécie de Lawrence na véspera do cri­me. Vozes piedosas, batinas consagradas e a ferocíssima esquer­da católica doutrinam as massas sobre a “violência justificada”. Aí esta uma janela aberta para o infinito. E se o brasileiro matar, um dia? E se, como Lawrence, gostar de matar? E se começar a beber o sangue como groselha?

[5/4/1968]

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