quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

FLOR DE OBSESSÃO

De vez em quando, alguém me chama de “flor de obses­são”. Não protesto, e explico: — não faço nenhum mistério dos meus defeitos. Eu os tenho e os prezo (estou usando os prono­mes como o Otto Lara Resende na sua fase lisboeta). Sou um obsessivo. E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro idéias fixas? Repito: — não há santo, he­rói, gênio ou pulha sem idéias fixas.
Só os imbecis não as têm. Não sei por que estou dizendo isto. Ah, já sei. É o seguinte: — recebo a carta de uma leitora. Leio e releio e sinto a irritação feminina. E, justamente, a leito­ra me atribui a idéia fixa do “umbigo”. Em seguida, acrescenta: — “Isso é mórbido ou o senhor não desconfia que isso é mór­bido?”. Corretíssima a observação. Realmente, jamais neguei a cota de morbidez que Deus me deu.
A minha morbidez. Ela me persegue e, repito, ela me atro­pela desde os três anos de idade. Eu ainda usava camisinha de pagão acima do umbigo. E, um dia, na rua Alegre, apareceram quatro cegos e um guia. Juntaram-se na esquina, na calçada da farmácia, e tocaram violino. Três anos. Quando os cegos par­tiram, caí de cama. Debaixo dos lençóis, tiritava de tristeza, co­mo de malária. A partir de então, sou um fascinado pelos cegos.
Ainda na infância, eu fechava os olhos e, dentro de minhas próprias trevas, me imaginava cego. Claro que tudo isso é mor­bidez. Eis o que eu queria dizer à minha leitora: — infelizmen­te, não tenho nem a saúde física, nem a saúde mental de uma vaca premiada. Na sua irritação, ela continua: — “Bem se vê que o senhor é um velho”. E, de fato, sou tão velho quanto o Antônio Houaiss.
Por coincidência, almocei, ontem, com o já referido Antô­nio Houaiss, o Francisco Pedro do Coutto e o José Lino Grünewald. (Vejam como Grünewald é um nome naval, sim, o nome de um primeiro-tenente morto no afundamento do Bismarck.) Durante o almoço, o Antônio Houaiss batia na tecla fatal: — “A minha geração é a do Nelson”. E dizia ao José Lino e ao Coutto: — “Vocês que são brotos”. E, pouco a pouco, eu e o próprio Houaiss íamos ficando lívidos de idade, amarelos de velhice, es­pectrais como a primeira batalha do Marne ou como o fuzila­mento de Mata-Hari.
Depois do almoço, volto para a redação e vejo a carta da leitora. Lá está a mesma e crudelíssima acusação de velhice. Ca­be então a pergunta: — e por que me chama de velho? Respos­ta: — porque ainda me impressionam os umbigos do biquíni, do sarongue, dos bailes. E, sem querer, a leitora toca num dos mistérios mais patéticos da nossa época. Os jovens não estão interessados na nudez feminina. Essa rapaziada dourada de sol, esses latagões plásticos, elásticos, solidamente belos como ha­vaianos não desejam como as gerações anteriores. Só os velhos é que ainda se voltam, na rua, ou na praia, para ver as belas for­mas. Quem o diz é a leitora.
Mas o melhor está do meio para o fim. De repente, perce­bo a origem da carta e da irritação. A leitora defendia alguém. Eis o caso: — no baile do Municipal, irrompeu um umbigo especialíssimo. Uma lindíssima senhora, e, se não me engano, embaixatriz, foi fotografada, televisada de sarongue. Mais tarde, os jornais e as revistas falavam do umbigo diplomático. A impren­sa rendia suas homenagens à beleza. Mas a leitora via, nas foto­grafias e legendas, uma inconfidência visual, quase um ultraje. Parece-lhe que não estamos longe do jornalismo de escândalo ou, para usar a cor exata, marrom.
Vejam vocês como os papéis se invertem. Já a televisão foi chamada de obscena, porque pôs no vídeo a nudez coletiva, geral, ululante. Eis o que me pergunto: — queriam o quê? Que as câmaras e os microfones vestissem os nus, calafetassem os umbigos, enfiassem espartilhos nos quadris? Ao mesmo tempo, o Jornal do Brasil deitou um judicioso editorial afirmando que, depois da praia, a nudez perdera todo o mistério e todo o suspense. Era assim no Brasil e em todo o mundo. Portanto, se­gundo o velho órgão não há nada que objetar ao impudor eugênico, salubérrimo e “pra frente” da praia. E, todavia, o mes­mo Jornal do Brasil e no mesmo editorial condena a televisão que devia ter tapado os quadris, umbigos etc. etc.
Do mesmo modo, o caso da leitora e da embaixatriz. Que uma bela senhora ponha um sarongue assim e vá ao baile é um fato intranscendente, normalíssimo. Mas, se um cronista deixa escapar uma referência ao umbigo do Itamaraty, vem o mundo abaixo. E por que, meu Deus do céu? Imoral é a televisão e não os nus frenéticos que vinham posar para as câmaras. Antigamen­te, havia, em torno de um beijo, todo um sigilo, toda uma soli­dão. Lembro-me de uns namorados, na minha infância, que iam para debaixo da escada. E, nos bailes recentes, os casais caçavam as câmaras e iam beijar para milhões de telespectadores.
Seja como for, algo restou do último Carnaval. Refiro-me aos nus arrependidos. Na própria quarta-feira de Cinzas, cru­zei, ao chegar em casa, com uma menina da vizinhança. Fora, nos quatro dias, um dos umbigos mais insistentes da televisão. Em qualquer canal, lá estava ele. E, no entanto, enterrado o Car­naval, eu via a menina passar, rente à parede, de cabeça baixa, na sua vergonha tardia e crispada.
A minha leitora, que assume a irada defesa da embaixatriz, também é outro nu arrependido. Diz, a folhas tantas: — “Eu também brinquei no Carnaval”. E levando mais longe a sinceri­dade, confessa: — “Vesti o meu sarongue e não me arrepen­do”. Mentira. Está arrependida, e insisto: — é um dos nus arre­pendidos da cidade.
É linda, embora inútil, essa vergonha póstuma. Também as famílias estão horrorizadas com o nudismo carnavalesco. Fui a um jantar e lá as senhoras diziam: — “Não eram meninas de família. Eram aventureiras”. Perdão: vamos dizer a casta e sin­gela verdade: — os nus saíam dos lares. Já escrevi isto e repito, porque é meio vil trapacear com o nosso próprio impudor. Se a cidade se despiu, deve ter o nobilíssimo cinismo de o pro­clamar.
Mas vamos crer que não houve nus em lugar nenhum. Não adianta. Para nós não há saída. Por que ter pudor no Carnaval e não na praia? Aí está o biquíni, que é a forma mais desesperada da nudez. Como é triste o nu que ninguém pediu, que ninguém quer ver, que não espanta ninguém. O biquíni vai comprar grapete e o crioulo da carrocinha tem o maior tédio visual pela plás­tica nada misteriosa. E aí começa a expiação da nudez sem amor: — a inconsolável solidão da mulher.

[28/3/1968]

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