quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

OS FALSOS CANALHAS

Um dos momentos mais patéticos da minha infância foi quando ouvi alguém chamar alguém de “canalha”. Note-se: — era a primeira vez. Teria eu que idade? Cinco anos, talvez. Ou menos. Vá lá: — cinco anos. E me crispei de espanto. Minto: — de medo. Foi medo e não espanto. Para mim, uma palavra estava nascendo, era o nascimento de uma palavra.
Paro de escrever. Por um momento, repito para mim mes­mo: — “Canalha, canalha”. O som ainda me fascina como na infância. E pergunto a mim mesmo se “o canalha” é uma di­mensão obrigatória de cada um. Pode haver alguém que não tenha um mínimo de canalha? Um santo, talvez, ou nem isso. Disse não sei quem que há santos canalhas.
Eis o que eu queria dizer: — o medo dos cinco anos per­dura em mim até hoje. Ainda agora me pergunto se alguém tem o direito de chamar um semelhante de canalha. Poderão obje­tar que pulha é um insulto equivalente. Ilusão. Vi um sujeito ser chamado de “pulha”. Retrucou ao outro: — “Pulha é vo­cê!”. E o incidente morreu aí. Dez minutos depois, os dois pu­lhas estavam, na esquina, bebendo cerveja.
O sujeito pode ser pulha e como tal beber cerveja. Não há incompatibilidade entre o pulha e a cerveja. Mas ninguém po­de ser canalha. A simples palavra constrói uma solidão inapelável e eterna. Eis o que eu queria dizer: — o canalha é o pior solitário. Esse destino de solidão é o seu, eternamente.
Mas tinha eu, como já disse e repeti, cinco anos. Meio século depois, me pediram um programa de televisão. Recomen­daram: — “Coisa original”. Tratei de recorrer à minha origina­lidade. E, então, lembrei-me da cena de Aldeia Campista. Diante de mim estava um sujeito chamando o outro de canalha (e meio século depois, a minha úlcera teve contrações de víbora agoni­zante). Imediatamente, ocorreu-me a idéia. Liguei para o patro­cinador. Disse-lhe: — “Já tenho o título”.
O anunciante esperou. E eu anunciei: — Os falsos cana­lhas. Era o título. Expliquei o resto. Seria uma revisão de valo­res. No Brasil, como em qualquer país, a história, a glória, a lenda são tecidas de equívocos fatais. Nunca se sabe se o grande ho­mem é grande homem, se o gênio é um débil mental, se a se­nhora honesta é uma messalina.
Eu queria fazer, justamente, o processo dos nossos falsos canalhas. Assim como há a falsa virtude, existe a falsa abjeção. E os falsos canalhas andam por aí. Nós os encontramos nas pri­meiras páginas, nos editoriais; ou na boca das esquinas e dos botecos. Estão no parlamento, nos consultórios, nos lares e no banho de mar.
Começaríamos o programa, exatamente, com Roberto Cam­pos. A meu ver, não há, em todo o Brasil, e por toda a nossa história, um falso canalha mais translúcido e mais exemplar. Ou por outra: — era tão canalha como O inimigo do povo, de Ibsen. O herói ibseniano acabou apedrejado como uma adúltera bíblica. E, súbito, ele descobriu que o grande homem é o que está “mais só”.
Falei em solidão e já retifico. O falso canalha é mais solitá­rio do que o verdadeiro. O poder foi, para Roberto Campos, a solidão total. Não houve ninguém tão só, não houve ninguém mais só. Queriam matá-lo, simplesmente matá-lo. Vi um pau-d’água berrando: — “Dou um tiro nesse Roberto Campos!”. Ao mesmo tempo que dizia isso, pendia-lhe do lábio a baba elásti­ca e bovina do homicida.
E Roberto Campos seria o meu primeiro falso canalha. Mas acabei desistindo do programa e explico. Foi tudo o medo an­tigo, pueril e insuportável de uma palavra, de um som, de um efeito auditivo. Quando me sentei à máquina para fazer o script do programa e escrevi a palavra canalha, aconteceu isto: — senti a minha úlcera vibrando como uma víbora. Tirei o papel da má­quina e o rasguei. Liguei para o patrocinador; disse-lhe: — “Olha. Nada feito. Esse título me dá vômito”.
Ao mesmo tempo, prometi a mim mesmo não chamar nin­guém, jamais, de canalha. Queria-me parecer que é mais puro o sujeito que nasce, vive, envelhece e morre sem usar, contra outro homem, a mais cruel e inapelável das palavras. E, no en­tanto, vejam vocês, nem pensei nas surpresas do mundo.
Eis o caso: — li, ontem, isto é, anteontem, um artigo do dr. Alceu. Sou, não nego, o seu mais fiel e obstinado leitor. Diga-se de passagem que, quando repasso os seus escritos, caio em frustração e pena. Durante vários anos, tentei ser seu amigo e fracassei. Muito bem: — e que diz em tal artigo o notável pen­sador católico?
Houve, em Cuba, um congresso, ou coisa que o valha, de quatrocentos intelectuais. E começa o dr. Alceu: — “Não sei, realmente, se os quatrocentos intelectuais reunidos em Cuba se esqueceram ou não de protestar contra o resultado iníquo de mais esse crime contra a liberdade de inteligência que acaba de ser cometido em Moscou”. Bem. Em primeiro lugar, ninguém “esqueceu” nada. Os totalitários são insuscetíveis de tais lap­sos. Simplesmente, os quatrocentos intelectuais estão inteira­mente a favor da polícia soviética e apóiam, de alto a baixo, “mais esse crime”.
Mas o que me faz rilhar os dentes de horror é que venha o dr. Alceu, para a imprensa, dizer que “não sabe”. Não sabe que, por trás de toda a Cortina de Ferro, e em qualquer regime totalitário, inclusive Cuba, não existe nenhuma liberdade de pen­samento, de criação artística, de inteligência ou que seja? E se o dr. Alceu “não sabe”, nem desconfia do óbvio ululante, co­mo ousa assinar uma coluna de jornal? Insisto: — se “não sa­be”, então que devolva o dinheiro que o dr. Britto lhe paga pe­la colaboração tão cega e tão surda.
Mas sabe. Aí é que está o grave, o patético, o inconcebí­vel: — o dr. Alceu sabe. Sabe que, há pouco tempo, um poeta foi processado, em Moscou, por vadiagem, e condenado. Quan­do lhe perguntaram pela profissão, respondeu: — “Sou poeta”. E o juiz, fulminante: — “Isso não é profissão!”. A Rússia encar­cerou o poeta pelo crime de ser poeta. Aliás, esse juiz não é juiz, mas um tira abjeto.
Insinuará alguém a seguinte hipótese: — o dr. Alceu tem uma boa-fé obtusa. Nem isso. Sabe. E insisto na pergunta: — “E, se sabe, por que vem dizer, de olhos baixos: — ‘Eu não sei’?”. Mas, se sabe, não deve nem rezar. O dr. Alceu pode en­ganar, a mim, ou ao dr. Britto, ou aos seus leitores. Mas não enganará a Deus. Deus também sabe e sabe que o dr. Alceu sa­be. Ou achará que Deus é um dr. Britto? Mas eu direi ao emi­nente sábio, sob minha palavra de honra: — Deus não é o dr. Britto. Amém.
O que é que eu ia dizer mais? Já sei. Ia dizer que o dr. Al­ceu vê a torpeza e não a identifica, vê a podridão e não lhe sen­te o cheiro. Direi, por fim, que os quatrocentos intelectuais de Cuba em nada diferem dos oitocentos que, na Rússia, assassi­naram Pasternak. São canalhas uns e outros.

[5/2/1968]

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