terça-feira, 20 de janeiro de 2009

A DOENÇA INFANTIL DO PALAVRÃO

Que estaria fazendo eu, ontem, às três da madrugada? Sei que isso é intranscendente, irrelevante, mas vamos lá. Simples­mente, eu estava adulando minha úlcera com leite gelado. (Minha úlcera lambe leite como uma gata.) Pacificada a dor, vim para a janela espiar a noite. E comecei a pensar no teatro brasileiro.
(É triste ser inteligente com dor.) Escrevi, há dois ou três dias, que lavra, por todo o Brasil, a doença infantil do palavrão. Não há lembrança de outra época tão pornográfica. Dirá alguém que o brasileiro sempre foi um neto retardatário e ululante de Bocage.
Isso é e não é verdade. De fato, o povo sempre teve a boca suja. O nosso Pedro i, segundo informam a história e a lenda, soltava, com larga e cálida ênfase, alguns dos mais truculentos palavrões da língua. E, assim, através dos tempos, cada geração recebe das anteriores um farto legado obsceno.
(Claro que a linguagem das mulheres sempre foi muito mais limpa.) Eis o que eu queria dizer: — no passado, o palavrão era muito mais solene, patético, vital. Bem me lembro de uma vizi­nha nossa, que perdeu a filhinha, de febre amarela. (Era ainda a cidade dos lampiões e da febre amarela.)
Quando a menina morreu, e a mãe sentiu a morte, podia ter rezado. Rezado, em pé, ereta, a fronte alçada. Não. Ela se esganiçou em palavrões hediondos, inclusive alguns que os ho­mens, os latagões presentes, não conheciam. Houve, junto à ca­ma da agonia, um escândalo total. Mas logo todos perceberam que a dor pornográfica é ainda mais terrível.
Uns vinte anos depois, passo, com um amigo, pela praia de Ipanema. E, por um momento, ficamos, ali, feridos de es­panto. Que dizer de um poente do Leblon? Um de nós poderia declamar a seguinte imagem de D’Annunzio: — “O crepúsculo rola em quedas de silêncio e de luz”. Em vez disso, o meu ami­go arrancou, das próprias entranhas, um palavrão deslumbra­do. Aquele poente de folhinha como que exigia o uivo obsce­no, não convencional.
Disse obsceno e já retifico. Não houve obscenidade nenhu­ma. Houve, repito, uma unção e uma carga de espanto que a palavra comum não suportaria. Não sei se me entenderam. Mas o que eu queria dizer é que o palavrão não tinha nada de gratui­to, de irresponsável. Nunca. E ainda outro exemplo: — fui ver um amigo que estava morre, não morre. Encontrei-o já com a dispnéia pré-agônica. Houve um momento em que a mulher curvou-se e lhe fez a pergunta: — “Meu bem?”. Sem abrir os olhos, ele soluçou um palavrão e morreu.
O homem era pornográfico para morrer. Ou ainda: — era pornográfico por ódio, medo, paixão. Havia sempre um senti­mento forte. Hoje não. O chamado nome feio deixou de ser feio. Esvaziou-se o palavrão de toda a transcendência, de todo o dramatismo. Ele já não causa o velho impacto heróico.
Realmente, é a doença infantil dos adultos. Ontem, con­tei, de passagem, as reações da platéia do Rei da vela. Um belo espetáculo e um elenco admirável. O diretor, José Celso, fez um nobilíssimo esforço. No fim, o texto era uma laranja chupada (o diretor extraíra todo o caldo). Um amigo, que foi comigo, dizia-me da peça: — “Não tem estrutura”. E, de fato, se lhe re­tirassem os palavrões enxertados, o Rei da vela não ficaria de pé cinco minutos.
O que explica o êxito do espetáculo é, exatamente, o en­genho diabólico de José Celso. Não conversamos sobre a exe­cução cênica do original. Mas quero crer que ele percebeu, em toda a sua força epidêmica e incontrolável, a doença infantil do palavrão. As falas de Oswald de Andrade não chegam ao públi­co ou, na melhor das hipóteses, são de uma eficácia mínima. Quem reinou, através dos três atos, foi o palavrão.
Claro que há, no Rei da vela, uma mensagem. Mensagem para a qual a platéia é surda, cega e muda. Em dado momento, no terceiro ato, a peça emposta a voz e se torna gravíssima. O tédio do público é então indescritível. Ah, por que fazer um Os­wald de Andrade solene, encasacado como um mordomo de filme policial inglês?
Já o rendimento plástico e auditivo do palavrão foi absolu­to. Na minha frente estava um rapaz com a noiva. Passei duas horas seguindo as reações do casal. Diga-se de passagem que era a platéia mais antipolítica, mais antiideológica que já entrou no João Caetano. Volto ao rapaz (um latagão de vastas boche­chas). A única coisa que o fascinava no espetáculo era a porno­grafia e toda a gesticulação correspondente.
E sempre que explodia um palavrão, nada descreve e nada se compara à delícia auditiva do noivo. Ficava escarlate de pra­zer (e os outros também). Lembro-me que, na minha peça, O beijo no asfalto, um velhinho trepou na cadeira e pôs-se a ber­rar: — “Indecentes! Imorais! Tarados!”. Houve porém uma re­sistência solitária. Alguém, não identificado, estourou: — “Cala a boca, burro!”. E o carequinha: — “Burro é a mão na cara!”.
O momento mais alto do Rei da vela foi quando a platéia, em sua unanimidade ululante, aplaudiu, de pé, o palavrão mais violento dos três atos. Ninguém fez cara feia; nenhuma senho­ra deu muxoxo; jamais um casal se retirou. No dia seguinte, en­contro o doce Eduardo Chermont de Brito. Conto-lhe toda a minha experiência brasileira do Rei da vela. Pergunto: — “Cher­mont, que fazem os nossos sociólogos? Que faz o padre Ávila que ainda não deu uma aula sobre a doença infantil do pala­vrão?”. O Chermont suspira: — “É o Brasil, é o Brasil!”.
E há de ser também o Brasil o Roda-viva do Chico. Um dos Guinles foi lá, com a senhora, ver a peça. Queria o Chico terno, tímido, nostálgico. Pois bem: — e deu de cara com o truculen­to José Celso. Em Roda-viva há uma presença devoradora: — o José Celso. O casal Guinle saiu, no meio, como se fugisse do anti-Brasil. Mas é o Brasil, o novo Brasil com potencialidades imprevisíveis.
O público só irá, daqui por diante, ao espetáculo porno­gráfico. A platéia exige as duas coisas: — o palavrão e o gesto que lhe corresponde. É como se a obscenidade de palco justifi­casse e absolvesse a obscenidade do espectador. Se eu conhe­cesse o padre Ávila, ou outro sociólogo, ou quem sabe um psi­canalista, ou ainda um pediatra, havia de perguntar-lhe: — há ou não, por todo o Brasil, a doença infantil do palavrão?

[1/2/1968]

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