segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

SAPOS E PIRILAMPOS ULULANTES

Chego à redação e o contínuo vem avisar: — “Telefona­ram para ti”. Estou tirando o paletó: — “Homem ou mulher?”. E o outro: — “Homem”. Ponho o paletó na cadeira: — “Dei­xou recado?”. Não, não deixara. Sento-me. Um telefonema anô­nimo é uma janela aberta para o infinito. Já num começo de an­gústia, imagino quem seria, quem? Podia ser o alfaiate, ou o lei­teiro, ou o açougueiro, ou o Chico Buarque de Hollanda.
Passei em revista todos os meus amigos e todos os meus inimigos. E, de repente, ocorreu-me uma hipótese inusitada: — e se fosse o rei Gustavo, da Suécia? Na Suécia, há sempre um rei Gustavo, um rei Gustavo que joga tênis. Não governa, mas joga tênis. E, por um momento, com imenso deleite, sonhei com o telefonema real.
E, súbito, volta o contínuo, esbaforido: — “Telefone. É o cara”. Saí tropeçando em mesas e cadeiras. Agarro o aparelho: — “Alô? Alô?”. Ouço a voz: — “Nelson Rodrigues?”. Confir­mo: — “Sou eu”. E pergunto: — “Quem fala?”. Ia desfazer-se o mistério insuportável. A voz respondeu: — “Vladimir Palmei­ra”. Cavou-se, então, no telefone, uma pausa abismai.
Fui, por uns dez segundos, o sujeito mais espantado da Ter­ra. Vejam vocês: — minutos atrás, imaginara eu o telefonema do rei Gustavo. E eis que a realidade ultrapassava, de muito, a fantasia paranóica. (De fato, nem rei de baralho telefona para mim.) Vladimir Palmeira era muito mais insólito do que qual­quer Gustavo passado, presente e futuro. Como que rachado por um raio deslumbrante, solucei no telefone: — “Vladimir? Mas oh! Eu não mereço tanto!”.
Abro um breve parêntese. Como se sabe, estão invertidas as relações de jovens e velhos. Hoje, um ministro, ou profes­sor, ou sacerdote se dará por muito feliz de servir cafezinho e água gelada à juventude. Outro dia, passou por nós um jovem de peruca e costeletas. E um velho catedrático o lambeu com a vista. Eis o que me perguntava: — e por que o Vladimir fazia a mim, um velho trôpego, a concessão surrealista de um telefonema?
No caso de Vladimir, não era apenas “O Jovem”, era tam­bém “O Líder”. Desmanchei-me: — “Quanta honra”. Exage­rei, e o confesso, a minha subserviência. (Eu estava me sentin­do o próprio contínuo das Novas Gerações.) Vladimir começa­va a falar: — “Nelson, preciso de um favor teu”. Interrompi-o tumultuosamente: — “Você manda, você manda!”.
Tratava-o por “você” com escrúpulo e dúvida. Sim, eu es­tava temeroso de um passa-fora, Vladimir cria um suspense e faz o pedido: — “Preciso que você faça comigo uma ‘entrevis­ta imaginária’ urgentíssima! Entende?”. Arremessei-me: — “Quantas quiser! Hoje mesmo! Quer hoje? Será hoje!”. Ele já se despedia: — “Combinado”. E desligou.
Dessa vez, fui mais cedo para o terreno baldio. Reuni mos­cas, pirilampos, gafanhotos, sapos e fiz-lhes o apelo: — “Comportem-se! Vem aí ‘O Jovem’! Comportem-se!”. Chamei também os faunos e as ninfas que fazem seus idílios nos terre­nos baldios. Falei como não o faria melhor a própria Bernarda Alba: — “Tomem juízo! Ou vocês não receberam educação se­xual?”. Também os faunos e também as ninfas prometeram um comportamento estritamente familiar.
Finalmente, chegou Vladimir Palmeira. Meia-noite em pon­to. O papel picado caía como neve de Papai Noel. E o líder en­tra de chapelão e capuz de Michel Zevaco. Só não entendi o bi­gode de cossaco. E, então, o Vladimir explica: — “Pedi empres­tado o bigode do Hugo Carvana. Estou despistando. Se me vis­sem contigo, que diriam os liderados?”. Achei aquilo de uma clarividência estarrecedora. Disse-lhe: — “Você é vivo, hem, Vladimir?”. Em seguida, perfilei-me e disse: — “Estou às suas ordens”.
Vladimir ia começar. Súbito, viu a cabra vadia que, adian­te, comia o capim, isto é, comia o cenário. Toma um susto: — “Essa cabra é de confiança?”. Tive de jurar que não era do dops. Uma última dúvida lhe corroeu a alma: — “Vê lá, vê lá!”. Novamente, dei-lhe a minha palavra: — “Cabra de bem! Cabra de bem!”. E, então, o líder falou.
Disse: — “Vim aqui pedir”. Imaginei que fosse pedir des­culpas pelos 2 mil anos da Igreja. No momento, os sacerdotes, os intelectuais, os arquitetos, os cineastas, os artistas plásticos, os professores, todos, todos pedem desculpas pelos dois mil anos de Igreja. Mas não era isso. Vladimir continua: — “Nel­son, não me elogia mais! Nunca mais!”.
O meu espanto assumiu proporções quase dolorosas: — “Como? Como? Não elogiar a quem e por quê?”. Nos comícios estudantis, Vladimir é de uma pura, exata, imaculada objetivi­dade. Dessa vez, falou com rompantes de um Tartarin: — “Seu idiota! Seu elogio é, na minha vida, uma mácula. Entende? Fisi­camente, uma mácula. Depois do seu elogio, tive que tomar um banho! Tive que me esfregar com palha de aço! Está proibido de me elogiar! Proibido!”.
Na minha confusão trágica, eu já não ousava nenhuma inti­midade. Chamei-o de “Excelência”, de “Excelentíssimo”. E esse tratamento de envelope apaziguou a sua fúria. Reconheceu mes­mo que se excedera: — “Desculpe a minha exaltação. Mas vo­cê não imagina. Você é o reaça. Mais um elogio de você e eu caio do cavalo”. Crispado de vergonha, limitava-me a repetir, obtusamente: — “Excelência, Excelência!”. E disse: — “Não tive a intenção! E nem pensei que...”.
Foi aí que a cabra se intrometeu: — “Um momento, um momento”. Paramos. A cabra vira-se para mim: — “Faz o se­guinte: — escreve um artigo xingando o Vladimir. É a solução!”. Vladimir exulta: — “Isso mesmo! Luminosa idéia! A senhora é uma George Sand!”. A cabra baixou a vista, rubra de modéstia. E tinha mesmo um ar de George Sand sem Chopin. Vladimir me agarra: — “Escreve o tal artigo. Me xinga de todos os no­mes. Diz que eu sou o último, o último dos... Diz o que você quiser. Contanto que não me elogie”. Ainda quis objetar: — “Mas eu o admiro, eu o admiro!”. O Líder zangou-se novamen­te: — “Elogios, não admito!”. E, mudando outra vez de tom, com ardente humildade: — “Põe isso na tua cabeça. Tem uns quinhentos sujeitos, na classe, querendo ser líder. E cada vez que sai meu nome no jornal, querem me comer vivo. Os con­correntes me acusam de vedetismo. Aqui entre nós, que ninguém nos ouve, sou uma prima-dona, mas não posso parecer prima-dona”. Vira-se para a cabra: — “A senhora me entende?”. E a cabra: — “Vladimir, pra mim você é um livro aberto!”. A entrevista imaginária chegara ao fim. Eu e a cabra fomos levar o líder ao táxi. E, quando ele partiu, foi patético. Os sapos, pirilampos, gafanhotos, corujas berravam como nos comícios do Brigadeiro: — “Já ganhou, já ganhou!”.

[6/7/1968]

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