sábado, 10 de janeiro de 2009

A SOLIDÃO DO LÍDER

Primeiro, o homem não sabia estar só. Andava sempre em hordas ululantes. E quando, por acaso, desgarrava dos demais, uivava até morrer. Era assim o medo que juntava os homens e repito: — a multidão nasceu do medo. E o ser humano só se tornou humano, e só se tornou histórico, quando aprendeu a ficar só.
O primeiro solitário foi também o primeiro homem. E, de­pois, outros, e outros, e outros, fundaram novas solidões. O ho­mem começava a ser homem. E um poeta dizia, no final do sé­culo passado: — “Humano é aquele que ‘está mais só’”.
Claro que as multidões não morrem, porque o medo está cravado no homem. E é o medo que nos junta em assembléias, em comícios, em maiorias, em unanimidades. Eu diria que não há nada mais forte e criador do que o medo. (Não sei se estou sendo claro.) Eis o que eu queria, finalmente, dizer: — assim como faz a multidão, o medo também faz o líder.
Aí está a figura que é hoje o centro desta coluna: — o líder. Nós sabemos o que é a multidão. Bernard Shaw tinha-lhe hor­ror e explicava: — “Gosto de quem tem uma cara só”. Mas a multidão não tem nem isso. Simplesmente não tem cara. Como cronista esportivo, faço minhas experiências com as massas. Bem me lembro do jogo Vasco x Flamengo. Renda de 400 milhões e quebrados.
Quando olhei o estádio lotado, deu-me a vontade de solu­çar, como o astronauta: — “A multidão é azul”. Mas não im­porta a cor parnasiana. Pouco depois, notei que já não era mais azul. Era negra. E assim, até o fim do jogo, a multidão teve to­das as cores. Mas o que importa é a constatação: — ela não é humana, não tem nada a ver com a condição humana.
Em outra ocasião, e no próprio Estádio Mário Filho, fiz uma outra experiência ainda mais profunda (e meio alucinatória). Era um jogo, se não me engano, do Botafogo com o Vasco. Exata­mente, a decisão do título. E lá fui eu me meter nas arquibanca­das. Era uma das quase 200 mil pessoas presentes. Aconteceu então que, imediatamente, perdi qualquer sentimento da minha própria identidade. Ali, tornei-me também multidão. Esqueci a minha cara, senti a volúpia de ser “ninguém”. Se, de repente, o povo começasse a virar cambalhotas, e a equilibrar laranjas, e a ventar fogo, eu faria exatamente como os demais. E, então, senti que multidão não só é desumana, como desumaniza.
(Não sei se estou falando demais. Paciência.) Lá estávamos eu e os outros desumanizados. Pouca diferença faria se, em vez de 200 mil pessoas, fossem 200 mil búfalos, ou javalis, ou hie­nas. Há, porém, um momento em que a multidão se humaniza. Sim, em que a multidão se faz homem.
É quando tem um líder. Acontece, então, o milagre: — aqui­lo que era uma massa pré-histórica assume forma, sentimento, coração de homem. E, ao mesmo tempo, o medo que junta as multidões morre em nossas almas. Já não sentimos o medo, o velho, velhíssimo medo das primeiras hordas dos primeiros ho­mens. O líder tem coragem por nós, e ama por nós, e sofre por nós, e traz a verdade tão sonhada.
Mas há uma dessemelhança entre o líder e os que o seguem: — nós somos multidão e ele, nunca. Como no texto ibseniano, ele é o que está “mais só”. Todos os seus gestos, e palavras, e paixões, e sonhos, amadureceram na solidão. Entendam: — convive com os demais. Mas no meio de 100 mil, e 200 mil, ele se preserva. Continua solitário, entre tantos, entre todos. Não será jamais multidão.
Fiz a meditação acima para chegar a Vladimir Palmeira. An­teontem, ao voltar da passeata, dizia o meu amigo e companheiro Álvaro Nascimento: — “Quando eu me encontrar com esse Vla­dimir, hei de beijá-lo”. Ora, o português Álvaro, mais velho que o século, não é um qualquer. Tem 74 anos já cumpridos, foi coveiro voluntário na “Espanhola” e tem visto o diabo. Costu­ma dizer: — “Já vi tudo”. E, anteontem, espantou-se com o lí­der. Excelente Álvaro! Avô de duas ginasianas, como que se sen­te avô do jovem líder e quer beijá-lo.
Bem. O que me interessa é saber se os estudantes têm ou não têm líder. Ah, os novos meios promocionais são de uma eficácia demoníaca. Se um consórcio qualquer cismar de fazer um deus, não tenham dúvidas: — fará um deus, uma nova fé, um novo fanatismo e uma gigantesca massa de fiéis. Basta que, para isso, use e conjugue rádio, televisão, jornal e cartazes. Pron­to. E o novo deus terá um sucesso de refrigerante. Mas o patéti­co é que Vladimir Palmeira se tornou célebre antes de qualquer promoção.
E vejam como nasce um líder. De repente, a cidade come­çou a falar em “Vladimir”. Nas esquinas e botecos, o simples nome ia passando de um para outro. As pessoas diziam: — “O Vladimir fez”, “O Vladimir aconteceu”, “O Vladimir disse”. E todos queriam conhecer o gesto, a palavra e a idéia do Vladimir. Por outro lado, há a bela composição dos nomes: — Vladimir e Palmeira. Vladimir tem um gosto tolstoiano, lembra o Wronski de Ana Karenina. E Palmeira, sem o “s”, no singular, é um no­me paisagístico.
Vladimir fez-se famoso do dia para a noite e de graça. An­tes de vê-lo, de ouvi-lo, as pessoas já estão convencidas. Con­versei com o Cláudio Mello e Souza. E dizia o meu amigo: — “O Vladimir foi lá. Estive com o Vladimir”. Doente de curiosi­dade, quis saber: — “E que te disse o Vladimir?”. O Cláudio já não se lembrava. E, realmente, importa pouco o que o jovem líder pense, ou faça, ou diga. Só importa que o sigam. Stevenson dizia de Kennedy: — “Eu sou mais culto, mais preparado, e sei mais a doutrina. Mas a Kennedy, todo mundo segue; e a mim, não”. Os estudantes seguem Vladimir.
E, assim, a cidade se tornou íntima de um desconhecido absoluto. Repito: — foi uma cálida intimidade, que nasceu an­tes de um cumprimento, de um “olá”, de um “oba”. Eu pró­prio só o vi na passeata. E fiz a fulminante constatação: — é, sim, um líder. Imaginem um jovem que sobe num pára-lama e, com um gesto, e antes da palavra, faz a unanimidade. Eu o vi trabalhar a multidão. Dizia: — “Vamos fazer isso, aquilo e aqui­lo outro”. Até pessoas que não tinham nada com a passeata, sim­ples transeuntes, entravam na disciplina. Mesmo os inimigos da passeata eram tocados e convencidos. E foi impressionante no fim da marcha. De repente, Vladimir falou (com irresistível sim­plicidade, sem nenhuma ênfase). Disse: — “Estamos cansados”.
Ninguém estava cansado. E completou: — “Vamos sentar”. E todos sentaram, como na passagem bíblica (não há tal passagem. Desculpem). Assim ficamos, sentados, como se estivéssemos de joelhos. Senhoras, mocinhas, intelectuais, estudantes, avós, ca­da qual se sentou no meio-fio, no asfalto, na calçada. E foi um maravilhoso quadro plástico. Não sei, ninguém pode saber, qual será o destino desse rapaz. Mas sei que é esta coisa cada vez mais rara: — um homem.

[28/6/1968]

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